Transcrição completa da entrevista a D. Jaime Gonçalves, a
propósito do prémio Fé e Liberdade. Ver notícia aqui.
Ficou surpreendido
com este prémio?
Foi uma surpresa na medida em que nunca esperei que eu
pudesse merecer ou ser considerado merecedor de um prémio como este. Agora que
estou em Lisboa verifico que é um prémio muito bem considerado, nos meios da Universidade
Católica e no IEP. Mesmo em Moçambique, a notícia que foi dada surpreendeu
muita gente e causou muita admiração. Pode ser que as pessoas comecem a
apreciar este gesto da UCP em conceder-me tal prémio por estas circunstâncias.
Circunstâncias essas
que têm a ver com o processo de paz. Qual foi o seu envolvimento?
O processo de paz em começou, por iniciativa da Conferência
Episcopal de Moçambique em 1987, quando a conferência, desafiando as pessoas e
até mesmo o Governo, que propunha uma solução militar para a guerra civil que
sofríamos no país, propôs o diálogo. Muitos não acreditavam que isso pudesse
ser a solução, mas nós víamos que isso era a solução e decidimos fazer alguma
coisa para provar que o caminho era o diálogo. Decidimos secretamente contactar
a Renamo, que então estava nas matas, era preciso ir falar com ela
secretamente, porque era proibido contactar os “bandidos armados” como eram
conhecidos os guerrilheiros da Renamo. Por isso decidimos contactar a Renamo
secretamente. Fui escolhido eu, juntamente com o Sr. D. Alexandre José Maria
Santos, Arcebispo de Maputo.
Empenhámo-nos e fomos procurar a Renamo. Ele descobriu a via
de Nairobi, descobriu que era possível pelo Governo do Quénia. Eu acabei por
ter a possibilidade de ir mesmo ao QG da Renamo e lá encontrei o próprio
presidente, Afonso Dhlakama. Lá foi proposta a ideia de diálogo para resolver o
conflito armado no país.
Acabámos por contactar a Renamo e tivemos algumas reuniões,
favorecidas pelo Governo do Quénia, em Nairobi.
O processo de Nairobi foi-se desenvolvendo a ponto de, no
encontro com o presidente da Renamo em Nairobi, já foi com uma delegação do
Conselho Cristão de Moçambique. Então o Presidente da República interrompeu a
negociação com a Renamo através dos Bispos e preferiu nomear os presidentes do
Zimbabué e do Quénia como negociadores, e nós ficámos fora.
Qual foi a reacção do
Governo quando soube que já tinha havido contacto dos bispos com a Renamo?
Por parte dos bispos havia muito receio de dizer que
tínhamos tido contacto com os rebeldes, porque naquela altura havia a lei da
traição. Quem falasse com a Renamo era traidor, e os traidores eram punidos com
a morte. Portanto havia receio de comunicar isso, mas acabámos por fazê-lo,
comunicámos ao presidente, e ficámos surpreendidos porque o Governo aceitou que
tivéssemos falado com a Renamo, com vista à reconciliação. Mas também o próprio
presidente ficou surpreendido quando lhe comunicámos que a Renamo acreditava
mais numa solução negociada do que numa solução militar da situação. De modo
que ambas as partes ficaram surpreendidas com o bom aspecto da iniciativa dos
bispos. Foi deste modo que continuámos o trabalho de pôr as duas partes na mesa
das conversações.
Estava a dizer que
houve a decisão de afastar os bispos do processo. Como é que isso correu?
Os dois negociadores que começaram a trabalhar em Setembro
de 89, chegaram á conclusão que o diálogo não podia ser indirecto. Era melhor
que a Renamo e a Frelimo negociassem directamente. Foi então que voltámos a um
trabalho diplomático para convencer as duas partes a encontrarem-se. Foi
difícil porque eles não confiavam uns nos outros. Usámos a diplomacia possível
para ver se o Presidente dos EUA podia influenciar o presidente de Moçambique a
aceitar um diálogo directo. No dia 9 de Março de 1990 o nosso presidente
anunciou em Washington que aceitava negociar directamente com a Renamo. Podemos
considerar o bom fruto da diplomacia então feita. Ficámos aliviados, porque
assim podiam negociar directamente. Ficou a questão do lugar, mas acabámos por
propor Roma para conversações, porque todos os outros lugares que cada um
propunha não eram aceites pela outra parte.
Acabámos por propor Roma naquela esperança para a Renamo que
tinha um grande problema de confiança no Governo de Moçambique, porque temia
ser traído pelo Governo. A Renamo aceitou as conversações em Roma naquela
confiança de que em Roma está o Vaticano e o Vaticano pode influenciar as
partes a fazer as negociações como deve ser.
A Santa Sé nomeou-me a mim para as negociações, uma vez que
estava já dentro do processo. Foi assim que começámos as negociações no
Vaticano em Julho de 1990.
Daí até à paz foi
quanto tempo?
Foram quase dois anos até 1992. Foi um trabalho delicado,
porque tratava-se de convencer as partes a confiar uns nos outros. Foi um dos
grandes temas difíceis de resolver. O grande trunfo foi saber que o Vaticano
estava a seguir as conversações. João Paulo II nomeou um secretário para seguir
as conversações.
Segundo era preciso convencer as partes a aceitar o que
estava escrito no acordo. Por exemplo, para o quadro das conversações era
preciso dizer que a Renamo reconhecia o Governo e que o Governo reconhecia a
Renamo, mas ambos rejeitaram. Foi preciso muito trabalho para os convencer a
aceitarem-se mutuamente.
Tudo isto só terá
sido possível porque a Igreja era considerada equidistante, politicamente, foi
difícil manter essa independência durante os anos da guerra?
Para a Igreja, de facto, estava numa situação difícil na
medida em que quando o país ficou independente o novo Governo escolheu o
Marxismo como filosofia da sociedade. E as teses do Marxismo em relação à
religião e à liberdade religiosa eram muito complicadas. Recusava-se o direito
à liberdade religiosa, e a Igreja defendia essa liberdade. Tendo experimentado
estar ao lado do Governo no tempo colonial, por imperativo da sociedade de
então, o acordo missionário, a concordata, devido a essas circunstâncias
históricas, considerámos que não era a melhor via estarmos ligados a um regime
político, por isso a Igreja decidiu distanciar-se da revolução moçambicana. Do
lado da Renamo, a Igreja de facto não podia pactuar com a violência, sobretudo
com a forma de terrorismo que destruía bens e a vida das pessoas para
justificar as suas teses políticas. Por isso a Igreja não esteve aliada nem ao
regime nem à Renamo. Por isso conseguimos, com uma certa diplomacia, ficar o
meio para podermos trabalhar na pacificação do país.
Sabemos que se
estabeleceu a paz. 20 anos mais tarde, como é que está o país?
A Paz social em Moçambique está segura. São já 20 anos de
paz, e criaram-se condições para planear o desenvolvimento do país. Os governos
que sucederam ao acordo de paz estão preocupados com o desenvolvimento do país,
com a educação, multiplicou-se o ensino superior. De pequenos projectos de
desenvolvimento fala-se hoje de megaprojectos. O regime toma o risco de
explorar a riqueza do país, não com as próprias mãos, mas com as mãos dos
investidores, o que faz com que a riqueza do país passe para as mãos dos
estrangeiros. O que por um lado pode ser bom, na medida em que a riqueza não
fica improdutiva, mas começa a melhorar a vida da população, mas por outro
lado, o país fica demasiado dependente dos donos dos megaprojectos.
Portanto estamos numa situação de paz que nos permite tudo
isto. Contudo há uma pequena ferida, no corpo da paz em Moçambique, uma ferida
que veio por não cumprimento de um ponto que tínhamos posto no acordo geral de
paz. Creio que já se ouviu pelo mundo fora a questão dos homens armados da
Renamo. Essa ferida que ainda continua até hoje consistem em que no acordo
geral de paz, previu-se que a segurança da Renamo seria feita por homens da
Renamo, por razões de confiança. Assim como os homens do Governo teriam a
segurança dos homens do Governo. Mas como um país não pode ter duas seguranças,
depois das eleições o novo Governo havia de pedir os nomes dos homens da
segurança da Renamo para integrar na polícia nacional, depois devia preparar os
homens da Renamo para serem seguranças na cidade, porque eles eram seguranças
na Mata, o que significava que depois de algum tempo teríamos só uma segurança
no país.
A ferida surge quando o Governo, no momento próprio de
integrar os homens da Renamo na segurança, diz que não aceita misturas, não
aceita os homens da Renamo. Para complicar a situação também tinha ficado
estipulado que o novo exército seria composto por um número igual de homens da
Renamo e do Governo. Mas no momento de unir as forças o Governo disse que só
aceitava uma parte dos homens da Renamo. De modo que a Renamo ficou com esses
homens e ficou com os seus antigos homens de segurança, e não sabia o que fazer
com eles. Esses homens estão lá no seu antigo quartel militar. Que fazer deles?
Ao longo destes 20 anos temos tentado a nível nacional resolver o problema,
porque eles estão armados. Têm as suas antigas armas. É nesse sentido que temos
uma ferida no processo de paz. Eles estão parados, não são aceites pelo
Governo, também a Renamo não os pode manter, porque é muito custoso. Por isso
há tentativas de pensar voltar à violência, o que não é aconselhável, porque a
violência não é aconselhável. Temos de pensar nessa situação dos homens que
estão aí sem um futuro claro de integração.
Estamos a falar de
quantos homens?
Eles não nos dizem quantos são, mas devem ser pelo menos
1000.
O vosso modelo foi
aplicado na África Austral?
De facto na África Austral os bispos comungaram do mesmo
plano sobretudo em 1988 quando se reuniram para fazer a Assembleia e receberam
o Papa. Nessa altura fizeram um plano comum de intervenção na solução dos
conflitos da Zona. Nessa altura já sabiam que caminhos Moçambique tinha
assumido. Que tínhamos ido à procura da Renamo. Então, sabendo-se que havia
iniciativas nesta linha os bispos de África Austral seguiram o mesmo caminho. O
que Moçambique começou a fazer e que comunicou aos outros passou de facto a ser
programa para os bispos da zona. Portanto a África Austral está hoje pacífica e
reconciliada com a intervenção significativa dos bispos da zona.
Como está Moçambique
em termos de religião?
A conferência Episcopal, com a sua intervenção neste
processo de pacificação, ganhou muita aceitação junto da população. A Igreja
tomou iniciativas consequentes no sentido de consolidar a paz para a qual tinha
cooperado. Depois do acordo de paz a Igreja intensificou a evangelização na
medida em que tratou de recuperar as missões que tinham sido nacionalizadas e
impedidas de comunicação. Com a recuperação das missões são recuperadas as
escolas das missões, que não são poucas, os centros de saúde e são recuperadas
as actividades agro-pecuárias que no tempo bom da colónia serviam de apoio ao
trabalho da missão. Na obra da evangelização a Igreja assume esse aspecto que
alegra ao povo, ver a missão de novo nas suas mãos.
Outro trabalho que a Igreja assumiu foi de preparar cidadãos
para o novo Moçambique, que precisa de desenvolvimento, que precisa de superar
desafios vindos do acordo de paz. Criou-se a Universidade Católica de
Moçambique, criando faculdades que possam responder às necessidades do povo.
Era preciso criar no país um Estado de direito, e daí a Faculdade de Direito. A
Guerra empobreceu o país, então criámos a faculdade de Economia. Criámos a
Faculdade de agricultura para a alimentação. Havia muita doença e por isso
criámos a faculdade de ciências de saúde. Depois do acordo tivemos esta
possibilidade de trabalho de responder aos desafios novos, com a Universidade
Católica de Moçambique, que entretanto se multiplicou e está expandida em todo
o país. A conferência episcopal também tratou de assegurar um diálogo positivo
com o regime depois do acordo de paz. Continua a conferência a ensinar às
pessoas a doutrina social da Igreja, temos semanas teológicas, semanas sociais,
que ajudam a educar o povo nas grandes teses da sociedade, como a democracia,
as lutas contra a pobreza, os desafios da convivência, da solidariedade, da
fraternidade, da igualdade de todos.
Assim, depois do acordo de paz a Igreja encontra-se num
ambiente que favorece a evangelização do país.
Tem havido aumento de
vocações?
Há muitas vocações, sobretudo para o clero. Já como
resultado de um trabalho que a conferência assumiu, de fazer a pastoral
vocacional. Criámos seminários e organizámos a vida dos seminários. Criou-se em
todas as dioceses uma simpatia pela vida sacerdotal. Os jovens não estranham
ouvir falar da vida religiosa, o que é muito positivo para as vocações. Neste
momento o ambiente das vocações é muito bom. Estamos a ter muitas vocações.
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