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Pe. Paul Scalia |
Quando o cardeal Sarah esteve em Washington para um
evento, há pouco tempo, referiu-se três vezes à ideologia do género como
“demoníaca”. Mais recentemente o arcebispo Coakley, da Cidade de Oklahoma,
utilizou o mesmo termo em idêntico contexto e o mesmo fez o bispo Paprocki, de
Springfield, em relação ao casamento homossexual. É uma palavra forte,
certamente. Mas a maioria das pessoas não percebem bem o alcance. Alguns
consideram que se trata meramente de hipérbole para descrever algo que não é
apenas mau, mas muito, muito mau. Outros consideram que se trata de um juízo
apressado dos adversários, diabolizando-os. E depois há aqueles que consideram
que se trata de um exagero de fanáticos religiosos, que já não regulam bem de
qualquer maneira.
Mas “demoníaco” é na verdade um juízo sóbrio e
esclarecedor do pensamento por detrás da ideologia do género. Não é um juízo de
intenções. Não significa que as pessoas que defendem a ideologia do género são
demoníacas, ou estão possessas. Significa, antes, que o raciocínio e
os resultados daquela filosofia – independentemente da inocência com que é
defendida – estão em linha com os desejos, as tácticas e os ressentimentos do
próprio Belzebu.
A ideologia do género repete uma mentira básica do demónio:
“Sereis como Deuses” (Gen. 3, 5). Esta mentira está na verdade por detrás de
todas as tentações. Todo o pecado deriva do desejo orgulhoso de suplantar Deus.
Mas no campo da sexualidade humana tem uma gravidade maior.
Deus cria; o homem é criado. Deus dá existência; o homem
recebe a existência. A ideologia do género propõe uma versão alternativa: Nós
somos os nossos próprios criadores. Num dos seus últimos discursos, e talvez um
dos mais importantes, o Papa Bento XVI disse:
Deixou de ser válido
aquilo que se lê na narração da criação: “Ele os criou homem e mulher” (Gn. 1,
27). Isto deixou de ser válido, para valer que não foi Ele que os criou homem e
mulher; mas teria sido a sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora
somos nós mesmos a decidir sobre isto. Homem e mulher como realidade da
criação, como natureza da pessoa humana, já não existem. O homem contesta a sua
própria natureza; agora, é só espírito e vontade. A manipulação da natureza,
que hoje deploramos relativamente ao meio ambiente, torna-se aqui a escolha
básica do homem a respeito de si mesmo… Se, porém, não há a dualidade de homem
e mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família como
realidade pré-estabelecida pela criação… Chega-se necessariamente a negar o
próprio Criador; e, consequentemente, o próprio homem como criatura de Deus,
como imagem de Deus, é degradado na essência do seu ser...
E se concluirmos que os nossos corpos não estão em linha
com o que determinámos ser, então alteramo-los de acordo. É contra isto que o
Papa Francisco aconselha: “Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao
Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve
ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa
humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela
foi criada.” (AL, 56)
Existe também um ódio demoníaco pelo corpo. No livro “Vorazmente
Teu”, C.S. Lewis refere-se ao ressentimento do demónio pelo facto de Deus ter
favorecido os “bípedes calvos… [animais] gerados numa cama”. Porquê este ódio?
Talvez porque o corpo e a alma humana são um só. A alma, tendo tanto em comum
com a natureza angélica, está unida ao corpo, que tem tanto em comum com a
natureza animal. O diabo considera isto pessoalmente ofensivo. Ele procura (tal
como todos podemos verificar) desfazer esta união – dividir-nos da nossa carne,
virar a alma e o corpo um contra o outro. Com grande perícia, leva-nos a adorar
o corpo num instante e odiá-lo no minuto seguinte. A morte – a separação entre
o corpo e a alma – foi, claro, a sua maior vitória.
Existe ainda o facto de a Palavra se ter tornado carne. O
grande acto de generosidade de Deus para connosco apenas agrava a inveja do
demónio. O Filho de Deus assumiu a natureza humana, incluindo o corpo humano.
Ele salvou-nos não apenas nesse Corpo, mas através dele. Porque é que esta
dignidade havia de nos ser dada a nós, tão inferiores aos serafins, e não a
ele, o mais elevado dos anjos?
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Adão e Eva depois de terem pecado |
O homem caído nunca está em paz com o seu corpo. O
Cristianismo procura sarar essa divisão. Mas a ideologia do género procura
codificá-la, com base no princípio de que não existe uma verdadeira relação
entre o corpo e a alma. A divisão entre os dois é de tal forma absoluta que se
pode ser uma coisa fisicamente e outra espiritualmente.
O ódio demoníaco contra a procriação está ligada de perto
com isto. O demónio não pode procriar, mas o homem pode. O homem e a mulher
cooperam com Deus, gerando uma nova pessoa. O demónio tem inveja disto porque
Deus é generoso. Como é evidente, a ideologia do género rejeita a
complementaridade entre masculino e feminino e aquilo que a sua união alcança.
O Senhor pega em verdades naturais – corpo, casamento e
família – e usa-as como modelo e meio para a sua obra salvífica. Ele é a
Palavra feita carne, o Esposo, filho de José e de Maria, que nos torna membros
da família de Deus. Apercebemo-nos do significado da oferta que Jesus faz do
seu corpo na Cruz e na Eucaristia, precisamente porque sabemos que o corpo tem
significado. A união permanente, fiel e de vida oferecida entre marido e mulher
permite-nos compreender o que significa dizer-se que Cristo é o esposo e a
Igreja a sua esposa.
A perda destas verdades naturais inibe, por isso, a nossa
capacidade de compreender o sobrenatural e compreender a salvação. Se o corpo
humano não tem significado intrínseco – se não nos diz nada sobre nós e se pode
ser ajustado ao nosso gosto – então como podemos apreciar as palavras “este é o
meu Corpo”?
Se não temos qualquer experiência vivida da
complementaridade entre homem e mulher, entre esposo e esposa, então não
podemos compreender o facto de Cristo, o Esposo, ter dado a vida pela sua
Esposa. E também não conseguimos compreender o significado de Deus enquanto
Pai, Deus enquanto Filho, Igreja enquanto Mãe, etc. O Demónio tem todo o
interesse em despojar-nos destes sinais naturais do sobrenatural.
Como é evidente, estas tendências não surgiram do nada.
São as suas tácticas habituais. Vimo-las em acção durante a revolução sexual,
na contracepção, aborto e fertilização in vitro. A ideologia do género assenta
sobre estas fundações e promove-as como nunca.
O reconhecimento da dimensão demoníaca pode ser útil. Mas
deve também levar-nos a um exame de consciência – para ver até que ponto caímos
nas suas armadilhas, através dos nossos pequenos actos de auto-exaltação
orgulhosa (que na verdade é uma forma de autocriação), pelo nosso desprezo e
maus tratos do corpo (nosso e dos outros), pela falta de castidade (que
ridiculariza o poder da procriação), pela forma como dificultamos a aproximação
dos outros a Deus.
Alguns de nós podemos reconhecer a dimensão demoníaca da
ideologia do género. Mas todos devemos arrepender-nos por termos cedido a
ela.
O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia,
do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o
delegado do bispo para o clero.
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