Há meses que temos ouvido elogios à biografia do Cardeal Robert
Sarah “Deus ou Nada”. E com razão. É um texto belíssimo. Uma longa conversa
entre o jornalista francês Nicholas Diat e um homem belo e santo. Recorda com
grande detalhe a sua infância em África; a santidade dos seus pais, da família
e da aldeia e a profunda influência que os europeus que vieram evangelizar a
Guiné tiveram sobre ele e sobre tantos outros.
Por estranho que pareça, fez-me lembrar o retrato
igualmente gentil que Bento XVI pinta da sua infância numa aldeia bávara,
permeada por festas católicas e uma fé comum, no seu livro “O Sal da Terra”. Lidos em conjunto – e se ainda não o fez, deve ler ambos –
fornecem uma bela imagem da vida católica em ambientes muito diferentes,
simultaneamente intensamente particular e transculturalmente universal.
Em ambas as figuras podemos ver que a bondade que
encontraram na sua juventude não os cegou à realidade do pecado e do mal.
Ratzinger sentiu-se repelido pelos esforços nazis de impor o culto do Volk no lugar das festas cristãs
tradicionais. E Sarah teve a sua quota-parte de dificuldades com homens fortes
e pequenos tiranos em África. Mas tanto num caso como no outro o facto de terem
tido contacto bem cedo com o bem permitiu que enfrentassem – e avaliassem
correctamente – o mal.
Essa sanidade básica faz com que seja ainda mais
pertinente quando alguém como Sarah resume grande parte daquilo a que
assistimos hoje, dizendo que “a destruição da vida humana já não é só um acto
bárbaro, mas um sinal do progresso da civilização… Já não é uma forma de
decadência, mas, antes, uma ditadura do horror, um genocídio programado de que
são culpadas as potências ocidentais. Esta campanha incansável contra a vida é
uma fase nova e definitiva de uma campanha incansável contra o plano de Deus.”
A semana passada disse coisas semelhantes no National
Catholic Prayer Breakfast, em Washington. Trata-se de mais do que uma variação
do famoso aviso de Bento XVI sobre a “ditadura do relativismo”, uma vez que
aponta para algo que o mundo se esforça por não ver, ao mesmo tempo que se congratula
por combater males selectivos. A Fundação Gates, por exemplo, gasta milhões em
contraceptivos, alegadamente para promover a dignidade das mulheres. Mas Sarah
questiona se o verdadeiro propósito não será eliminar africanos pobres. A
promoção mundial do aborto e da eutanásia é, também ela, uma forma de
insensibilidade mascarada de compaixão.
Mas não é só no estrangeiro. Nos Estados Unidos temos
estado a tentar expor a Planned Parenthood como aquilo que é: o maior matadouro
de crianças nascituras – por vezes vendendo os seus restos mortais – através de
300,000 abortos por ano. Trata-se do equivalente às melhores estimativas de
civis mortos na guerra civil da Síria. Com a Síria assistimos à revolta
internacional, mas os dados do aborto são só mais uma estatística, neste caso
anual.
As organizações de socorro calculam que já morreram
14,000 crianças no conflito sírio. É horrível mas, fazendo as contas, são
apenas algumas semanas de trabalho na Planned Parenthood.
Barack Obama acaba de visitar Hiroshima, recordando as
duas bombas atómicas que os americanos largaram sobre o Japão e encorajando o
mundo a nunca mais usar este tipo de armamento. Em Hiroshima e Nagasaki
morreram 130,000 mil pessoas.
Mas vamos a mais números. A China relata 13 milhões de
abortos por ano. Os peritos dizem, contudo, que muitos casos são escondidos por
razões políticas e que o verdadeiro número pode ser o dobro. Todas as ofensas à
vida humana interessam e os meros números nunca contam a história toda. Mas
mesmo esse dado oficial significa que a China comunista é responsável (em
muitos casos através de abortos forçados) por 100 vezes mais mortes por ano do
que houve vítimas dos ataques nucleares ao Japão – cerca de metade dos mortos
em batalha durante a II Guerra Mundial. Estamos a falar de dados anuais, todos
os anos, durante décadas. Em todo o mundo, ao longo dos últimos trinta anos,
houve provavelmente uns 1,2 mil milhões de abortos.
Nunca houve uma guerra, holocausto ou praga natural que
se aproximasse sequer desta escala.
A “ditadura do horror” de Sarah mostra claramente como
adoramos lamentar-nos de coisas de que é fácil não gostar, mas fazemos por não
reparar nos massacres muito maiores que se passam diária e anualmente não só
aqui e na China mas na Europa, na América Latina e na Ásia.
Cardeal Robert Sarah |
Longe de tentar impedir que estas coisas continuem, as
organizações internacionais como a ONU, a União Europeia e, infelizmente, o
Governo Americano sub regno Obamae, estão activamente a promover o massacre
moderno de inocentes sob o disfarce de um direito humano.
Recentemente o Papa Francisco sublinhou outro horror que
até há muito pouco tempo era invisível: a tragédia de milhões de refugiados e
migrantes – só esta semana dúzias de cadáveres de refugiados e migrantes que
tentavam atravessar o Mediterrâneo deram à costa. Centenas de outros morreram
só este ano a tentar fazer a travessia. Estas são verdadeiras tragédias
humanas, que devem ser levadas a sério, sem que deixemos de recordar os outros
massacres que o mundo prefere ignorar.
Sendo africano, o Cardeal Sarah repara nestas coisas e
noutras ainda, que nos passam despercebidas. Muitas vezes é ignorado por essa
mesma razão. Mas é difícil ignorar passagens como esta: “Os europeus não
compreendem como os africanos ficam chocados com a falta de atenção que é dada
aos idosos nos países ocidentais. Esta tendência para esconder e marginalizar a
velhice é sinal de um egoísmo preocupante, de falta de coração ou, mais
precisamente, de dureza de coração. Sim, as pessoas têm todo o conforto e o
acompanhamento físico de que precisam. Mas falta-lhes o calor, a proximidade e
o afecto humano dos seus parentes e amigos, que estão demasiado ocupados com as
suas obrigações profissionais, tempos livres e férias.”
O desejo por conforto também está associado à dependência
global pelo aborto e uma atracção crescente pela eutanásia. O cardeal Sarah foi
educado de forma diferente: “Eu aprendi dos meus pais a dar. Estávamos
habituados a receber visitas, o que me ensinou a importância da generosidade e
da hospitalidade. Para os meus pais, e para todos os habitantes da minha
aldeia, no acto de receber convidados estava implícita a ideia de que os
queríamos agradar. A harmonia familiar pode ser um reflexo da harmonia celeste.”
Os valores da família podem ser pervertidos e
transformados em falso tribalismo, diz ainda o Cardeal, mas a ausência de
relações próximas poderá ser hoje o mais comum de todos os horrores, porque toca
na raiz da nossa humanidade: “A batalha para preservar as raízes da humanidade
é talvez o maior desafio que o nosso mundo enfrenta desde que foi criado”.
Robert
Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute
em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter
Books.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 28 de Maio de 2016)
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Onde podemos comprar este livro do cardeal Sarah em Portugal? E o Sal da Terra do Papa Bento?
ReplyDeleteObrigado.
Olá!
ReplyDeletePenso que o livro do Sarah não está traduzido ainda para português. No texto, se clicar no título do livro de Bento XVI chega à loja online Wook, onde pode encomendar. A editora é a Multinova. Já tem uns bons anos, não sei se as lojas terão em stock.
Está traduzido para o português e publicado pela Fons Sapientiae, um selo editorial da Distribuidora Loyola de Livros.
DeleteSou jornalista e fiz a assessoria de imprensa do livro.
Muito obrigado Guilherme. Presumo que esteja a referir-se a uma edição em português do Brasil. Em todo o caso fica a informação! Deve ser possível encomendar.
DeleteMuito bom artigo, denotando como o maior massacre jamais conseguido pelo Ser Humano..., ocorre actualmente, e dá pelo nome de aborto. Os campeões, são os socialistas chineses, seguidos quase na certa pelos hedonistas americanos.
ReplyDeletePorque a Igreja não defende a criação de uma coluna militar em locais do Norte de África, a fim de evitar as travessias de imigrantes. Seria melhor para eles, serem lá ajudados, com o apoio da NATO e ONU, em vez de virem para a Europa, fomentar o ócio e violência, pois a maioria não conseguirá emprego!
É UMA PERGUNTA: O CARDEAL ROBERT SARAH ESCREVEU UM LIVRO CHAMADO "FORÇA DO SILENCIO?"
ReplyDeletegrato
É um livro/entrevista, se bem percebo. Mas sim, é dele, editado em Portugal pela Princípia.
ReplyDeleteCumprimentos