Transcrição integral da entrevista que fiz ao padre e missionário Adelino Ascenso, que passou mais de uma década no Japão e fez a sua tese de doutoramento sobre a teologia da obra literária de Shusaku Endo. As reportagens podem ser lidas aqui e aqui. A minha visão pessoal do filme pode ser lida aqui e podem ainda ler as transcrições das entrevistas ao jesuíta José Maria Brito e a Brad Miner.
Tem havido várias críticas a dizer que o filme, e por
conseguinte o livro, Silêncio é um exercício de justificação da apostasia. Era
essa a intenção de Endo?
Não, de forma nenhuma.
Endo foi acusado
precisamente de defender a apostasia, quando publicou o livro em 1966. E houve
até algumas dioceses onde os prelados não permitiram a leitura desse livro aos
católicos, ou aconselharam a que não lessem. Eu creio que foi uma interpretação
errada da mensagem que o Endo quis transmitir.
O Shusaku Endo tinha uma
grande preocupação. Naturalmente a maior preocupação era a sua própria fé. Ter
aquele “fato” ocidental que não se adaptava bem ao seu corpo japonês, como ele
o define, mas tendo esse problema com a sua fé, que é sempre uma busca, uma
luta. Ele em relação aos “Kakure Kirishitan”, os cristãos ocultos, tinha uma
simpatia muito grande. Estes Kakure, que renunciaram à sua fé, apostataram visivelmente,
mesmo que fosse só um pró-forma, muitos deles mantiveram-se fiéis ao
Cristianismo ao longo de 250 anos, durante as perseguições e em total
isolamento, sem sacerdotes, sem nada. Eram os leigos que os orientavam, que
baptizavam os filhos e que passavam as orações de geração em geração, ao longo
de 250 anos.
Shusaku Endo tinha uma
grande simpatia pelos descendentes desses cristãos ocultos e achava que havia
aqui um silêncio, o “silêncio” do título do livro.
Mas o título do livro não
é só o silêncio de Deus, porque quase sempre se fala só no silêncio de Deus, o
Rodrigues que se interroga porque é que aqueles cristãos estão a ser
martirizados e Deus está de braços cruzados em silêncio e não age. Claro que aí
está o problema da teodiceia, portanto o problema da existência de Deus
omnipotente e do mal no mundo, aí está um problema, sim, mas não é só esse
silêncio, ele preocupava-se com o silêncio da Igreja-instituição, relativamente
a esses cristãos ocultos, que tinha renunciado à sua fé, que tinham apostatado,
mas que no seu coração continuavam a acreditar e continuavam com os seus ritos,
com as suas orações, e a transmitir essas orações. Shusaku Endo tinha uma
grande preocupação relativamente a este silêncio.
Ele quis, com esse livro,
realçar não só o forte, porque o forte é o mártir, aquele que não renuncia à
sua fé, não apostata e que é martirizado, mas também defender o fraco, o
cobarde, o débil, aquele que, não aguentando a dor, ou por compaixão pelos
outros, acaba por apostatar. Digamos que há uma dicotomia. A Igreja-instituição,
valorizou sempre muito os mártires, mas esqueceu-se desses pobres que, tendo
apostatado, eram escorraçados pelos outros e eram desprezados pelos outros.
Por um lado, em “Silêncio” vemos exemplos de tremenda
fé por parte dos japoneses, mas também críticas de que o Cristianismo não pode
lançar raízes no Japão. O termo usado é “pântano”. Acredita que é essa a
opinião de Endo?
Não era a convicção de
Endo, era a preocupação do Endo.
Desde que ele foi
baptizado aos 10 anos, e principalmente depois, passados cinco ou dez anos, em
que ele começou a reflectir sobre a sua fé e o que significava ser cristão e
ser japonês, que ele notou que havia um abismo entre o Ocidente e o Oriente. O
Cristianismo era a religião do ocidente, e ele era um oriental, japonês. Então
ele tentou sempre, desde o início, procurar um caminho de conciliar esses dois
mundos, o Oriente e o Ocidente.
Com Silêncio ele
conseguiu, não totalmente, mas o facto de o próprio Rodrigues, e já lá iremos,
o próprio ter apostatado – e sobre a apostasia podemos falar depois – ter sido
um estrangeiro no Japão a apostatar nesse pântano que é o Japão, significa que
houve uma aproximação à mentalidade japonesa, houve uma tentativa de
inculturação por parte do Rodrigues. Digamos que houve uma conversão do
Rodrigues depois da sua apostasia. O apostatar, para o Rodrigues, tem a ver com
a inculturação, com um processo de inculturação. Nesse sentido, Endo conseguiu
uma aproximação entre o Oriente e o Ocidente, que ele depois desenvolveria mais
tarde noutras obras de ficção.
Como é que caracteriza o Catolicismo de Endo? Pode-se
dizer que ele é típico de um católico japonês?
Penso que o Catolicismo de
Endo, a fé de Endo, é referência para os cristãos que buscam e que pensam e que
sentem a luta da fé no dia-a-dia.
Porque estamos a falar de
um país em que os cristãos são 1% da população, onde os católicos são cerca de
0,3% da população. Onde muitas vezes numa única família de muitos membros há
uma única pessoa católica ou protestante. E isto implica um diálogo permanente
com os outros membros da família, uma luta permanente, um luta permanente na
tentativa de inculturar esses elementos cristãos dessa religião estrangeira, de
forma a que a pessoa não seja colocada num mundo diferente daquele do resto da
família. E nesse sentido Endo é o ponto de referência para os cristãos que
buscam, reflectem e que procuram um caminho de entrosamento. Um caminho de
diálogo e encontro.
Quando diz que há famílias com apenas um cristão,
estamos a falar de conversões mais recentes. Entre os descendentes dos Kakure
Kirishitan que sobreviveram há famílias inteiras que se mantiveram fiéis, que
vivem integradas no Japão, ou formam uma sociedade à parte?
Por aquilo que me foi
proporcionado ver há algumas comunidades descendentes precisamente desses
Kakure, sobretudo na região de Nagasaki. Há uma região a Norte de Nagasaki, que
se chama Sotome, que é onde está o monumento ao silêncio, e onde está também o
museu literário de Shusaku Endo, e que foi o palco do “Silêncio”.
Há aí umas ilhas que se
denominam Goto, onde a população ainda orienta toda a sua vida de acordo com a
Igreja. Isto é, a igreja ainda é o ponto aglutinador. As crianças vão para a
escola, mas a caminho passam pela igreja. Aí sim, essas comunidades mantêm essa
tradição religiosa cristã, desde esses tempos, século XVI e XVII.
Mas por exemplo em Osaka,
onde eu estive, há umas montanhas, perto da paróquia onde estive a trabalhar os
últimos anos, onde se refugiaram alguns Kakure que vieram de Nagasaki, e aí
ainda há alguns sinais, mas muito diluídos. Depois, na própria cidade de Osaka
e no resto do Japão, o Cristianismo está muito diluído na sociedade.
Agora, há um aspecto
interessante... Uma vez encontrei um japonês em Coimbra, ainda eu não estava no
Japão, e eu perguntei como era o Cristianismo no Japão. E ele disse que o
Cristianismo no Japão compreendia cerca de 30% da população. Fiquei muito
surpreendido e lembrei-me que devia haver um erro de cálculo.
Mas é curioso que cerca de
30% da população japonesa, não digo 30%, tem valores que nós podemos considerar
cristãos. O cristianismo – Igreja Católica, protestante e ortodoxa – têm
escolas, universidades, jardins-de-infância, hospitais, lares de terceira
idade, etc. Têm muitas instituições onde transmitem esses valores. Por exemplo,
nos jardins-de-infância as crianças são ensinadas a rezar. Esses valores ficam
com a criança mesmo que não se converta ao cristianismo. Portanto o
cristianismo é uma percentagem mínima, está muito entrosado na cultura e na
sociedade japonesa e, penso eu, que há muitos valores que podemos considerar
cristãos e que estão alicerçados no próprio contexto japonês.
Então não concorda com essa frase, de que o Japão é um
pântano para o cristianismo...
Não concordo, mas concordo
com a expressão do Endo. Aí está, precisamente. O cristianismo, como tinha
sido, ou como foi ao longo dos tempos, transportado para o Japão como uma
religião estrangeira, com esse Cristo estereotipado, um Cristo ocidental, que
se transporta simplesmente para o Japão, dessa forma, cai num pântano. E nesse
sentido eu estou de acordo.
Mas não estou de acordo
que o cristianismo no Japão tenha que cair nesse pântano. Se não, não tinha estado
no Japão. Tem de haver esse processo, esse exercício permanente de inculturação.
E foi o que o Endo tentou fazer.
As missões actuais, a Igreja actual no Japão, tem feito
essa inculturação? Ou ainda há caminho por fazer?
Há muito caminho por
fazer. Há muito caminho por fazer e eu creio que o sucesso aqui, principalmente
no Japão, não se mede por números. Porque basta dizer que os cristãos
japoneses, ou os católicos japoneses da actualidade, são cerca de 400 mil, e
isto é um número irrisório, e não há um aumento progressivo dos convertidos ao
cristianismo. Portanto há um longo caminho a fazer. Mas eu penso que o caminho
mais importante a fazer é esse do exercício constante, permanente, da
inculturação.
Saiu um livro muito
interessante e muito importante, publicado pela Conferência Episcopal Japonesa,
aliás, pela secção de Diálogo Inter-religioso, que foi depois traduzido para
inglês e para português, que é um compêndio sobre como um cristão, católico,
deve agir perante situações numa sociedade que não é católica.
Por exemplo, se um
católico é o único elemento da família e se há um membro da família que morre e
que tem um funeral budista, se o católico pode participar no funeral; se
participa, como deve participar?. Isto é muito importante. Os funerais são
muito importantes não é propriamente o culto dos antepassados, mas há uma
influência do confucionismo, que valoriza precisamente o culto dos
antepassados.
Quando diz participar presumo que não seja só marcar
presença, mas ter uma parte activa...
Pois, exactamente, aí está
a parte mais delicada. Porque se um católico vai participar num funeral de uma
celebração budista, não pode participar activamente. Quero dizer, se participar
activamente na recitação dos sutras, usando o rosário budista, então está a
fazer algo que é uma fachada, porque quando há um funeral de um católico numa
Igreja e vêm budistas familiares a esse funeral, é evidente que eles não trazem
o nosso rosário, trazem o rosário budista, porque se trouxessem o nosso, seria
uma fachada, uma mentira. Portanto isso são aspectos muito delicados, que estão
muito bem tratados nesse livro, um livro muito interessante.
A sua tese é precisamente uma leitura teológica da
obra de Endo, nomeadamente da perspectiva do entendimento do sofrimento.
Podemos então concluir que este não é só um tema que aparece em Silêncio, mas
também noutras partes da sua obra?
Aparece no resto da obra.
Silêncio é como que o eixo axiológico, onde se condensa a teologia do Endo. E
depois há um outro romance que condensa de uma forma talvez mais abrangente e
não tão profunda, a teologia do Endo, o Rio Profundo, o último romance.
Mas, por exemplo, um
romance que também está traduzido para português e que eu aconselho vivamente é
o Samurai. O Samurai é considerado um romance autobiográfico, ou seja, um
"eu romance". Um romance autobiográfico de Shusaku Endo, mas
autobiográfico do percurso espiritual de Shusaku Endo. O Samurai que vai para o
México e depois para a Europa e que se vai encontrando com esse Cristo
esquelético, cravado na Cruz, que está sempre presente nos quartos onde ele
fica, nos mosteiros por onde passa... De certa maneira esse companheiro que
nunca o abandona e, quando ele se sente abandonado por todos, especialmente
pelo senhor feudal que ele servia, sente que o único que não o abandonou foi
esse Cristo esquelético, e acaba por morrer como mártir por esse Cristo esquelético
que nunca o abandonou. É um romance impressionante.
Depois tem outras obras,
mais cristológicas, como "Uma Vida de Jesus", traduzido para
português; depois tem também "Nas Margens do Mar Morto", que não está
traduzido sequer para inglês; E tem ainda
"O Nascimento de Cristo", que também não está traduzido. E aí ele
dedica-se mais ao seu estudo cristológico.
Eu quando li pela primeira
vez "Uma Vida de Jesus", quando foi traduzido para português, há
muitos anos, eu fiquei com a sensação que o Cristo ali tratado era
excessivamente humano, por isso o livro não me cativou, porque me pareceu um
Cristo excessivamente humano. Mas depois de estudar Endo, de ver o seu percurso
e analisar o seu percurso, cheguei à conclusão que não é um Cristo, excessivamente
humano, é um Cristo profundamente humano. É o Cristo "companheiro",
aquele que acompanha o sofredor sempre, em cada momento, como fez com o
Rodrigues em Silêncio e só no final o Rodrigues percebe isso.
No livro, Ferreira argumenta que a fé praticada pelos
Kirishitan não é sequer o Cristianismo como Rodrigues os entende. Tinha alguma
razão?
Talvez ele tivesse uma
certa razão.
O povo japonês, por
natureza, é muito sincretista. Eles têm um panteão de Deuses, ou de divindades,
os Kami, e este Deus que veio do Ocidente, que foi pregado pelo Francisco
Xavier, era mais um Deus que entrava no seu panteão.
Penso que nessa altura,
séculos XVI, XVII, certamente muitos japoneses ficaram com essa imagem, de um
Deus que é mais um Deus, faz parte do panteão.
Mas há um aspecto curioso,
e esse é que é o contraste... Como é que os japoneses, por exemplo aqueles que
decidiram não apostatar, e que foram até ao fim, que são milhares e milhares,
desconhecidos. Muitos foram beatificados, mas há muitos milhares que são
totalmente desconhecidos. O que é que os levava a dar a vida por esse Deus?
Se fosse considerado como
mais um Deus desse mesmo panteão, então não teriam coragem de dar a vida por
esse Deus. Penso que o Ferreira poderá ter razão até certo ponto. Digamos, numa
parte da população japonesa da época, talvez ele tivesse razão. Noutra parte
não.
No livro há uma cena em que Rodrigues ouve a voz de
Cristo a dizer-lhe para pisar o Fumie. Na sua leitura, essa é mesmo a voz de
Jesus, ou pelo contrário, é a voz da tentação, ou mesmo do demónio?
É uma boa pergunta.
Pois... Eu penso que é a voz de Jesus, mas há aqui dois aspectos importantes a
ter em conta.
O primeiro é o significado
da apostasia em si. O que é que o Rodrigues apostatou? Foi o verdadeiro Cristo?
Ou foi a imagem estereotipada de Cristo que ele levava do Ocidente? Repare que
no início Rodrigues tinha uma imagem de Cristo vigoroso, forte, valente,
corajoso, poderoso... Depois, quando estava na prisão em Nagasaki, esse Cristo
começou a ser um Cristo sofredor, de olhos tristes, e finalmente, quando está
para pisar a imagem, olha para o Cristo e é um Cristo desfeito, de sofrimento.
Ao longo da sua
peregrinação ele foi-se libertando dessa imagem estereotipada de um Cristo
ocidental. Então ele, dizendo assim de uma forma sintética, ele apostatou um
Cristo poderoso, que tinha trazido da Europa, um Cristo ocidental, e aceitou no
seu coração o Cristo misericordioso. É aí que Cristo lhe diz, “podes pisar”.
Há um pormenor, e isso é o
segundo ponto, que pode parecer insignificante, mas tem muita importância a
nível teológico. O original japonês não é uma forma de imperativo “pisa”. Mas quando
foi traduzido para inglês, em 1969, por William Johnston, ele traduziu pela
forma imperativa.
Se Cristo, essa imagem da
fumie de Cristo, lhe diz “pisa”, então o próprio Rodrigues não tem liberdade de
decisão, é o Cristo que está a dizer para eu lhe pisar, eu piso porque Cristo
me diz “pisa”, já não é responsabilidade dele.
Mas se Cristo lhe diz “podes
pisar” a decisão é dele. Ele tem a liberdade para decidir. Ou pisa ou não pisa.
Isto é um pormenor, pode parecer uma nuance, mas acho que tem muita importância
ao nível teológico.
E eu creio que não é por
acaso que Shusaku Endo não pôs aí de forma categórica uma forma verbal de
imperativo.
Como disse, Rodrigues
apostatou aquele Cristo estereotipado. É evidente que Cristo é sempre o mesmo,
mas aquela imagem que ele trazia consigo, porque a imagem que temos de Cristo
nunca é o Cristo completo, o verdadeiro, o verdadeiro ultrapassa muito a imagem
que temos. É como Deus. Não podemos definir Deus. Porque se definíssemos ele
cabia na nossa cabeça, na nossa capacidade de raciocínio. Então ele, uma vez
mais, apostatou essa imagem que tinha levado e adoptou esse Cristo maternal,
sofredor, débil, esse Cristo companheiro. Esse Cristo que tem a ver com a sua
inculturação nesse pântano japonês.
Mas os que deram a vida por Cristo, como disse,
certamente não a davam por um Deus entre muitos... Eles teriam essa imagem de
Deus já inculturado?
Talvez ainda não tivessem
totalmente...
No entanto eram japoneses e tinham-se apaixonado por
esse Jesus... Ocidental.
Exactamente! Aí é algo
misterioso...
Porque se compararmos a
história do cristianismo no Japão e na Coreia, é completamente diferente. Na
Coreia foram os coreanos que foram à China buscar o cristianismo. Fizeram do cristianismo
uma coisa sua. No caso do Japão, foi do Ocidente que chegou ao Japão.
O japonês, como disse, é
muito sincretista e é muito – a palavra tem uma conotação negativa – mas o
japonês é muito utilitarista. Absorvem tudo. Tudo o que é útil, eles absorvem,
acarinham e incluem na sua cultura. Aquilo que não lhes interessa, abandonam.
Por isso é que eles têm muitos elementos da China... Aliás, os caracteres são
chineses, com algumas modificações, o budismo chegou através da China, e têm
muitos elementos da Europa e dos Estados Unidos.
Eles absorvem aquilo que
lhes interessa e deitam fora aquilo que não lhes interessa.
Esses cristãos, no início,
quando morriam por esse Deus desconhecido, que no fundo era um Deus
desconhecido, que eles conheciam principalmente através dos missionários, eu
não sei... Intelectualmente talvez esse Cristo não estivesse integrado na sua
fé. Mas houve ali um encontro. Isto é o mistério do encontro. E o mistério do
encontro, que é o mistério da fé, não pode ser explicado. E isso continuará a
ser mistério. Porque é que tantos milhares deram a vida por esse Cristo!
Num seu artigo fala do livro como um protesto contra a
imagem de Deus-juiz…
Naturalmente Deus é Pai,
mas como o Papa Francisco tem referido, e acho que muito bem, Deus é Pai e Mãe,
ou seja, Deus é Pai, mas com sentimentos maternais.
Heinrich Fromm, no seu
livro “A Arte de Amar”, fazia a distinção entre o amor de Pai e o amor de Mãe.
O amor de Pai exige sempre alguma coisa em troca. O amor de mãe é aquele amor
que não exige nada em troca. Não sei se será bem assim, mas ele definia isto
assim.
Eu acho que o Deus Pai,
que foi naturalmente transmitido aos japoneses, eles sentiam-no como um juiz.
Um juiz que estava ali – eles sentiam-no, não quer dizer que fosse – sentiam
que estava ali para apontar as suas faltas.
O Japão no século XVI era
um país miserável, feudal, a esmagadora maioria da população vivia na miséria.
E o que eles necessitavam era como que o instinto maternal que os amparasse,
que os acompanhasse, que lhes perdoasse as faltas. “Eu cometi um pecado, mas
vem esse Deus com um instinto maternal que me perdoa”. O que eles necessitavam
era disso, precisamente. A “conversão” do Rodrigues tem a ver precisamente com
essa passagem da imagem de Deus Pai para o Deus de compaixão maternal. Aliás, é
um Cristo que Shusaku Endo introduz nas suas obras desde “Obaka San, o Idiota
Maravilhoso” – que ao que parece foi traduzido no Brasil, mas eu não li nessa
tradução –, mas já ele tinha começado aí precisamente a estruturar esse Cristo,
que depois, no Silêncio, está mais fortemente estruturado, e depois acaba por
ser também, numa outra dimensão, mais bem estruturado nas suas três obras que
referi à pouco da sua cristologia, e também no “Samurai”.
Quais são as
características deste Cristo? É um Cristo que tem fundamentalmente as características
de ser débil, não é um Cristo constantiniano, porque esse Cristo triunfalista
já não atrai, nem sequer atrai na nossa época, portanto era um Cristo não
triunfalista, mas um Cristo débil. Um Cristo que não está longe, perdido na
transcendência, mas um Cristo que entra no lodo da nossa vida, um Cristo que
está na trivialidade da nossa vida, como nosso companheiro, e é um Cristo que
perdoa as nossas falhas, os nossos pecados, as nossas faltas, por muito graves
que elas sejam, como uma mãe que abraça. E o japonês necessitava desse afecto.
Todos nós necessitamos. Uma mãe que perdoasse as suas faltas. Principalmente
esses que pisavam a imagem.
A pergunta que fazia
Shusaku Endo, antes de escrever esse livro, quando viu a fumie no museu, em
Nagasaki, era “Se eu tivesse vivido nessa altura, não teria eu também pisado a
imagem?” Ele dizia que certamente que um preguiçoso como ele teria pisado a
imagem. Depois, perguntava, que tipo de pessoas eram essas que tinham pisado a
imagem? E uma outra pergunta: O que terão sentido ao pisar a imagem?
Ele tinha estas três
perguntas em mente quando viu a fumie. Foi aí que ele pensou que tinha de
escrever um romance sobre isto.
Portanto o Cristo é este
Cristo destas três dimensões, e uma dessas dimensões é esse da compaixão
maternal.
Afinal há uma grande carga de Cristianismo em vários
dos livros de Endo. Como é que isto é recebido num Japão em que só 1% da
população é cristã? Se um dos nossos grandes autores de referência escrevesse
livros com uma forte componente hindu, dificilmente teria grande
popularidade...
Ele é muito admirado no
Japão, é muito famoso. Fez muitos programas na televisão.
Os romances dele são muito
densos, muito dramáticos, normalmente muito intensos. Então ele precisava de
algo que contrabalançasse com a intensidade dos seus romances e começou a fazer
uns programas na televisão, o professor Korian - Korian Sensei. Escreveu muitos
livros também sobre essa personagem, que são livros cómicos.
Mas a partir desses
programas que ele fez na televisão, passou a ser famosíssimo em todo o Japão.
Portanto é muito famoso no Japão. Poucas pessoas não o conhecerão, não terão
lido algum livro dele. Agora, as pessoas quando lêem um livro dele, se não
estudarem a teologia, acaba por ser um romance que se lê assim, superficialmente.
Eu quando li “Silêncio” da primeira vez, era muito dramático, mas pronto, não
aprofundei. Ou, como já referi há pouco, quando li “Uma Vida de Jesus” não
fique muito contente, porque me pareceu um Cristo excessivamente humano,
próximo de mim.
Ele é muito admirado, e
isto é um aspecto muito positivo para o Cristianismo no Japão.
E que tem dado frutos, em termos práticos?
Sim. Eu conheci alguns
fiéis, na paróquia onde estive, que decidiram ser cristãos a partir da leitura
do livro de Shusaku Endo.
Em vida teve esse reconhecimento?
Sim. Teve até uma
audiência com o Papa Paulo VI, que lhe dizia para continuar, por favor, o seu
trabalho de evangelização no Japão. Não foi uma audiência privada, foi uma
audiência geral, há fotografias.
Mas mesmo no Japão ele foi
reconhecido mais tarde, não no tempo. Na altura da publicação de “Silêncio”
houve algumas vozes discordantes. Houve ali, quanto a mim, uma interpretação
incorrecta da mensagem que ele quis transmitir. Mas hoje é reconhecido pela
hierarquia da Igreja.
Haverá o perigo, por assim dizer, de quem ver o filme,
ou ler o livro, sem esse conhecimento todo, ser levado ao engano, ter uma ideia
diferente daquilo que ele está a tentar transmitir. Que conselhos deixa a quem
vai ver o filme pela primeira vez?
Que não tire conclusões
precipitadas, que reflicta. Porque o livro deve levar-nos a reflectir.
Depois de fazer este estudo
sobre Shusaku Endo, li “Silêncio” muitas vezes, tinha que ler, e ainda hoje
continuo a reflectir sobre “Silêncio” e sobre a mensagem do “Silêncio”, porque
se nós vamos ver o filme – principalmente ver o filme – e vemos o Rodrigues a
pisar a imagem, a apostatar, e se chegamos à conclusão que ele apostatou, por
isso é um fraco, o outro não apostatou, por isso é um forte, isto é uma
precipitação.
Se nós analisarmos a
apostasia de Rodrigues como um acto de compaixão para com os cristãos que estão
a passar pelo martírio, para os libertar, não é um incorrecto pensar assim, é
correcto. Ele decidiu apostatar para salvar os cristãos que estavam a ser
martirizados, porque as autoridades tinham dito que se ele apostatasse, mesmo
que fosse um pró-forma – porque eles queriam um padre, para dar o exemplo – seria
libertado e os cristãos que estavam a sofrer seriam libertados. Por isso é que
o próprio inquisidor lhe dizia que ele estava a fazer com que os japoneses sofram,
través da tua teimosia, de não quereres apostatar.
Portanto, se nós virmos
que ele apostatou por compaixão, aí está, por compaixão por aqueles que estão a
sofrer, é uma interpretação correcta. Se a pessoa quiser aprofundar mais, e
deve aprofundar mais, deve reflectir o que significou essa apostasia, o que é
que ele apostatou, e porque é que ele, depois de ter apostatado, diz que a
instituição e os seus irmãos jesuítas irão condená-lo, mas que ele continua a
sentir-se o último padre no Japão, porque a partir do momento em que apostatou
começou a amar Cristo de uma forma diferente, mas de uma forma mais intensa.
Se nós reflectirmos sobre
o significado de tudo isto, então isso levar-nos-á muito longe. O que eu
gostaria, de facto, era que todos nós cristãos reflectíssemos a partir daí, sem
tomar decisões precipitadas, sem conclusões precipitadas, porque se fizermos
interpretações precipitadas, ficamos na superfície.
Qual é a relevância da personagem Kichigiro?
Kichigiro é uma das
personagens mais importantes do livro. Ele representa, de forma geral, Judas.
Shusaku Endo colocou ali o Kichigiro para tentar provar que Jesus também salvou
Judas. Ele tinha esse problema, da salvação de Judas.
E porquê? Porque o próprio
Shusaku Endo sentia em si remorsos por ter traído pelo menos duas vezes a sua
mãe. Quando ele estava na Manchuria o pai levava-o e ao seu irmão a passearem
no parque, e a mãe ficava em casa, a trabalhar. Aos 10 anos ele apercebeu-se
que o pai os levava a passear no parque para se encontrar com uma mulher.
Então o pequeno Shusaku
pensou: “Se vou dizer à minha mãe, vou trair o meu pai, se não digo, estou a
trair a minha mãe”. Então ele vivia naquele dilema e acabou por não contar nada
à sua mãe e sentiu que traiu a sua mãe.
Tinha esse sentimento de
traição, assim como tinha ao seu cão, “Negro”, que ele tinha na Manchuria, que
era o seu confidente, com quem conversava precisamente sobre esses problemas.
Estamos a falar de uma criança de dez anos...
E quando ele deixou a
Manchuria com a sua mãe, o cão foi a correr atrás do carro, mas depois
cansou-se e teve de parar, por isso ele sentiu também esse sentimento de
traição em relação ao cão.
Em relação à mãe, voltou a
ter um sentimento de traição quando, já de volta ao Japão, ele foi viver com o
seu pai, que entretanto tinha contraído segundas núpcias. E mais uma vez depois
de a sua mãe morrer, numa altura em que ele não estava em casa.
Tudo isto fez com que ele
se identificasse muito com judas, com aquele que trai, e ele sentia que se
Judas não fosse salvo, isso significaria que havia uma altura em que a graça
não tinha sido suficiente para o pecado, ao contrário do que diz na Bíblia “onde
abundou o pecado, superabundou a Graça”, por isso é que ele sentia que era
necessário que Jesus tivesse salvo judas e Kichigiro representa isso.
No fim do livro Kichigiro
e Rodrigues passam a viver juntos, em comunidade, o que representa não só a
reabilitação de Kichigiro, como também “conversão” de Rodrigues a este Cristo “japonês”.