Antes de começar, dois pontos.
1º Este filme é baseado num livro de Shusaku Endo. Eu só
vi o filme, não li o livro, embora tenha ouvido dizer que o filme é bastante
fiel ao original, vou estar aqui a falar de subtilezas que são do filme e não
sei se correspondem ao texto e às intenções de Endo.
2º Inevitavelmente, o texto terá spoilers, isto é, falará
de várias coisas importantes no filme que, caso ainda não tenham visto, poderão
afectar essa experiência e condicionar o visionamento. É um aviso. Se não
viram, vejam, que vale mesmo a pena, e leiam o texto depois.
Antes de ir ver o “Silêncio” de Martin Scorsese, baseado
no livro de Shusaku Endo, li várias recensões e falei longamente com pessoas
que já conheciam o livro. As opiniões dividiam-se muito, mas reparei em muitos
um medo ou uma preocupação de que o filme pudesse ser entendido como uma
justificação da apostasia.
Depois de ter visto o filme, não concordo de todo com
essa análise. Acho, até, que o que ele nos transmite é o contrário. Há várias
razões para isso, mas apresento o que me parece ser uma chave de leitura do
filme.
Scorsese apresenta-nos essencialmente três atitudes
diferentes e possíveis diante da perseguição religiosa extrema. Em primeiro
lugar temos os que não cedem e dão a vida pela sua fé. Neste filme este grupo
de pessoas é representada essencialmente por pobres camponeses japoneses que
praticavam o Cristianismo em segredo mas que, sendo descobertos, recusam a
apostasia, preferindo a morte.
Depois há os que renunciam à fé, mas arrependem-se. Esta
segunda categoria é representada por Kichijiro, um pescador que cresceu numa
família cristã e que fugiu do Japão depois de toda a sua família ter sido
martirizada. Nessa ocasião ele foi o único que renunciou, salvando a vida.
Durante o filme vemos Kichijiro várias vezes a renunciar à fé, mas acabando
sempre por pedir perdão e procurar a confissão sacramental.
Por fim há os que, após alguma resistência, renunciam e
transformam-se, passando a viver uma vida consonante com a sua renúncia. Um
exemplo é o padre Ferreira, um jesuíta português que, tendo cedido às torturas
e à pressão das autoridades japonesas, comete apostasia e passa a viver como um
japonês, com mulher e filhos, e é usado como instrumento para levar outros a
abandonar a fé também, chegando a escrever um tratado sobre os “erros do
Cristianismo”.
O filme começa com dois jesuítas portugueses – que ao
contrário de Ferreira são figuras míticas, embora um deles se baseie numa
figura real, mas não portuguesa – que partem para o Japão para saber notícias
de Ferreira. Guiados por Kichijiro conseguem encontrar cristãos escondidos nas
aldeias de pescadores, e desenvolvem os seus ministérios, para enorme alegria
dos fiéis, até que são apanhados pelas autoridades.
Shusaku Endo |
Uma vez capturados, o padre Francisco Garrpe não só
recusa renunciar à fé como se lança à água para morrer juntamente com cristãos
que estão a ser afogados pelos soldados. Já o padre Rodrigues, após uma longa
batalha de vontades com o inquisidor japonês que quebrou Ferreira, acaba por
ceder quando compreende que só assim consegue salvar a vida a cinco cristãos
nativos que estão a ser torturados. Com o seu acto público de apostasia,
pisando uma imagem de Cristo, passa a viver com todo o conforto, tal como
Ferreira, sendo usado pelas autoridades para desmascarar cristãos e objectos de
culto cristãos.
Qual destas atitudes é a certa? O filme não o diz
explicitamente. Aliás, diria que é propositadamente dúbio. Somos levados a
admirar os mártires, a sentir pena de Kichijiro e a compreender que Ferreira e
Rodrigues renunciem para poder salvar inocentes.
Mas não havendo respostas explícitas, há sinais. A mim, o
que me chamou mais atenção foi a questão da dignidade…
Aquilo que salta mais à vista na morte de todos os
cristãos, durante o filme, é a enorme e admirável dignidade com que são
representados. Desde os que são crucificados e deixados à mercê da maré
enchente, chegando a cantar hinos religiosos enquanto são fustigados pelas
ondas, aos que são lançados ao mar. Todos são um hino à dignidade. Mas há uma
sequência que o mostra de forma muito explícita.
Quando vários cristãos são conduzidos de uma cela e
convidados a pisar a imagem religiosa, todos recusam. Apesar de presos, estão
vestidos de forma digna, e comportam-se assim, também. No final são todos
reenviados para a cela, excepto um. Enquanto este espera, vemo-lo,
surpreendentemente, a conversar de forma aparentemente relaxada com o guarda.
Está de pé, de cabeça erguida, a falar com um guarda de igual para igual e a
ser tratado como um homem. Do nada surge um dos inquisidores que lhe corta a
cabeça, uma cena que recorda – duvido que não seja propositado – as
decapitações de Cristãos na Síria, na Líbia e no Iraque nos últimos anos.
Logo a seguir, o inquisidor diz aos cristãos que há uma
outra hipótese e manda chamar Kichijiro, que é convidado a pisar a imagem,
penso que pela terceira vez desde o início do filme. O Kichijiro que aparece
parece um primata. Vestido unicamente de cueca, sujo, desgrenhado, corre
curvado, pisa a imagem medroso e foge de imediato para fora da prisão.
O contraste entre as duas posições não podia ser mais
evidente. Os que morrem pela fé morrem inteiros e dignos. Os que abjuram,
quanto mais o fazem, mais miseráveis ficam, por mais que se venham a
arrepender. Mas há mais… Kichijiro ainda volta a aparecer, e no final do filme,
inesperadamente, é-lhe descoberto um amuleto religioso. Nessa altura
encontra-se já bem vestido e limpo. Quando tudo indica que a traição poderá
novamente comprar-lhe a liberdade, é fiel aos seus amigos e, embora não se diga
explicitamente, fica-se com a ideia de que acaba por ser martirizado. Quando os
soldados o levam embora, vai direito, de cabeça erguida e a olhar em frente.
Agora sim, um homem digno. Salvou-se no final, apesar de ter dado a vida.
E que dizer dos outros? A melhor expressão que encontro é
que são carcaças de homem. Da primeira vez que Ferreira aparece, para tentar
convencer Rodrigues a apostatar, nem lhe consegue olhar nos olhos, é todo ele
autojustificação e arrogância. Mais tarde, quando Rodrigues lhe segue os
passos, praticamente não voltamos a ver nele qualquer emoção. Não sorri, não
revela compaixão por cristãos perseguidos. Está vazio. Se há alguma esperança
de salvação para Rodrigues, esta parece chegar-lhe, surpreendentemente, de
Kichijiro.
A apostasia é justificada? Scorsese não nos enfia uma
resposta pela goela abaixo, mas penso que o seu filme deixa bem claro quais são
as atitudes que mais respeitam a dignidade humana dos seus intervenientes.
Uma nota final, ligada a tudo isto… Várias vezes os
inquisidores dizem aos cristãos que na verdade não querem saber daquilo em que
acreditam ou não, apenas lhes interessa que façam o acto público, exterior, e
serão deixados em paz. É a sedução do mal em todo o seu esplendor.
Mas outra coisa que ressalta muito claramente do filme, é
que essas promessas são sempre falsas. Em primeiro lugar, vários dos cristãos
que são mortos, segundo nos dizem, já renunciaram publicamente, mas são
torturados para levar outros a renunciar. Em segundo lugar, nunca é só uma vez…
Mesmo Ferreira e Rodrigues, que para todos os efeitos vivem vidas de exemplar
colaboração com as autoridades, têm de assinar declarações de apostasia
regulares e são repetidamente convidados a pisar publicamente as imagens
sagradas em demonstração pública dessa mesma renuncia. Ou seja, a apostasia é
um acto que nunca satisfaz quem o exige e nunca deixa em paz quem o pratica.
Podem ler as reportagens que fiz sobre o filme aqui e
aqui. Aqui a opinião de Aura Miguel. Podem também ler as transcrições
integrais das entrevistas que fiz para as reportagens, incluindo ao padre Adelino Ascenso, provavelmente o maior especialista sobre Shusaku Endo e a sua obra em
Portugal. Aqui podem ler a transcrição da entrevista a Brad Miner e a do padre José Maria Brito.
Vi e.. ainda a digerir...
ReplyDeleteTambém não o entendi como justificação da apostasia, pelo contrário, como os pormenores/situações que já foram tão bem apontadas no texto. A serenidade, convicção e um ligeiro esboço de sorriso (após o grupo de cristãos que saíram da cela terem recusado pisar a imagem), contrastam fortemente com a falta de paz de espírito e do semblante carregado dos padres que renunciaram.
Ao longo de todo o filme surgiu-me a passagem "Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por Minha causa e pelo Evangelho salva-la-á!"
http://agridoceedoce.blogspot.pt/2017/01/lets-go-movies-os-livros-e-os-filmes.html?m=1
ReplyDeleteTomo a liberdade de partilhar este post que escrevi hoje no meu blogue.
Obrigada,
PAULA FERRINHO
Diz-se que durante o filme se ouve o galo cantar três vezes ... Não dei por nada. Alguém reparou?
ReplyDeleteOuve-se, sim. Eu já ia preparado e estava atento, mas da maneira que o filme que está feito pode passar despercebido. Foi uma decisão interessante do Scorsese, não quis tornar o cantar do galo demasiado óbvio para o espectador.
DeleteGostei de tudo, fotografia, realizaçõa, actores todos os minutos são preciosos e têm um significado, apesar da história sombria e totalmente triste; acho que a fé dos que acreditam em Deus só pode sair reforçada depois desta visualização, fiquei certa de que seria a primeira a apostatar porque não aguentava nem um dia daquela tortura e não fiquei certa de que Deus queira mesmo o nosso martírio físico em vez encontrarmos outras formas de levar a Sua palavra pelo mundo; também que renegar a fé naquelas cicusntâncias não significa renegar a Fé muito pelo contrário e que o consolo daquela gente, mesmo que inocente e inculta, eram mesmos os Padres e daí que foi melhor que eles não se tivessem entregue logo ao princípio pois seria negar-lhes o únio consolo daquela vida miserável. Ontem achei que o Ferreira era um miserável e um corrupto não por ter apostatado, porque só posso compreender que ele o tenha feito mas porque me pareceu um “vendido” mas quando cheguei a casa já estava a pensar que não era nada assim, que ele estava totalmente controlado e manipulado por aqueles “budistas” horrendos ( iguais aos “católicos” horrendos que por Évora, castelo de Vide, Toldedo, etc etc faziam exactamente a mesma coisa aos judeus que recusavam adoptar outra fé, outros nomes, outros hábitos) e que a vida dele era cheia de um vazio e de uma tristeza que ele traduzia por “paz” para enganar os outros ou talvez a si próprio.
ReplyDeleteO que mais me preocupou foram os Holandeses. Os Holandeses estão a borrifar-se para a Fé e para Deus são mesmo assim, não é por mal é o ADN deles, na verdade esses parece que viviam em paz, faziam o comércio que lhes dava o rendimento que lhes permitia elevar o nível de vida e não guerreavam por causas ou por religião. Será que é a forma certa de estar neste mundo? No artigo que anexo para lerem se quiserem o Padre jesuíta que o escreve demonstra que, na dificuldade de encontrar fontes credíveis para contar a história do Ferreira depois de ter apostatado ( para os japoneses era um troféu, para os portuguese era uma vergonha e , para os jesuítas um fim insuportável) as fontes mais credíveis eram realmente os relatos dos Holandeses, que tinham uma posição distanciada mas que presenciaram e contaram, também com verdadeiro horror, os suplícios a que eram submetidos os padres e os cristãos jesuítas.