Monday, 23 January 2017

Silêncio: “Aquilo que Deus nos pede pode não ser o mais lógico”

Transcrição integral da entrevista feita ao padre jesuíta José Maria Brito, sobre o filme "Silêncio". As reportagens sobre o filme podem ser lidas aqui e aqui. Podem também ver a minha interpretação, bem como ler as transcrições integrais das entrevistas feitas a Brad Miner e ao especialista em Shusaku Endo, padre Adelino Ascenso.


Há quem diga que Silêncio é uma justificação da apostasia. Concorda?
Não me parece. Acho que não. Parece-me é que o filme nos coloca numa situação em que percebemos o que é que pode ser, num dado momento, as dúvidas de fé e as dúvidas sobre por onde passa, verdadeiramente, a fidelidade.

Nesse sentido não é um filme que nos dá uma resposta óbvia – por isso compreendo que essa leitura se faça – embora não seja a leitura que eu faça, mas compreendo essa leitura, porque realmente percebe-se que não é o facto de se temer o sofrimento que faz com que se opte pela aparente apostasia, o que de facto motiva a apostasia não é o medo do sofrimento, mas sim o desejo de expressar compaixão por pessoas muito concretas, pela comunidade que lhes tinha sido confiada.

E por outro lado também – o que creio que é importante neste caso – é recordarmos que a experiência de martírio que era e continua a ser um exemplo muito grande para os cristãos, não só um exemplo como um modo muito honroso de as pessoas se identificarem com Cristo, mas também de garantia de reconhecimento. Mas aqui eles sabem, até pela própria experiência que tinham, pelo impacto que a apostasia de Ferreira tinha tido na Europa, que optar por aquele caminho também os vai levar a ser tidos como loucos, desprezados pela sua própria comunidade. Por isso a opção, que é realmente difícil, não é uma opção que lhes garanta nenhuma honra ou glória. A vida deles, depois dessa opção, não se torna para eles mais prazenteira. Percebe-se que vivem uma certa morte espiritual, ou da sua dignidade como cristãos, e terem optado por isso e com a consciência disso, parece-me que de facto não é uma justificação da apostasia, mas sim o fazer-nos perceber que muitas vezes aquilo que nos é pedido pode ser contrário ao que aparentemente nos parece mais lógico e até mais conforme ao que é a proposta cristã.

O filme apresenta três reacções possíveis diante da perseguição. Há os que morrem pela fé, o que está constantemente a cair e a arrepender-se e por fim os que apostatam e parecem viver conformados com isso. A ideia é identificarmo-nos mais ou menos com alguma?
Acho que a leitura dessas diferenças é uma leitura possível. Mas não sei se é uma questão de nos identificar mais ou menos com uns ou outros. Não tenho tanta certeza de que vivam confortáveis, não faço essa leitura, de que os que fazem esta apostasia aparente vivam confortáveis com isso, porque me parece que eles têm consciência de que há ali uma certa perda da sua identidade e percebe-se nos seus diálogos interiores que eles mantêm a inquietação religiosa, a inquietação da sua fé, e acho que tanto o livro como o filme nos dá pequenas indicações que tornam possível a visão de que eles realmente não perdem a sua fé nem a sua confiança em Jesus.

Acho que o filme nos obriga, mais do que a identificar-nos com uns ou outros, a perceber como é que podemos viver os nossos combates interiores pela busca da fidelidade e como isso por vezes é menos óbvio do que gostaríamos e esse é o grande desafio da própria fé e do caminho da relação com Deus. Isso é o que me parece mais interessante no filme, mais desafiador, o que é realmente levar a nossa fé ao ponto de termos de tomar decisões que não são óbvias, mas em que procuramos a maior fidelidade possível daquilo que nos parece ser, naquele momento concreto, aquilo que Deus nos pede e o filme dá-nos um bocado essa indicação.

Considera que é um filme “perigoso”?
Não sei se é um filme perigoso. É um filme que implica uma certa cautela quando o vemos, para evitar juízos precipitados. O grande esforço que fazemos quando vemos este filme, ou outro, é perceber até que ponto isto apela a alguma experiência que tenhamos tido. Por isso é também nós procurarmos ler o filme a partir da nossa experiência de inquietação, de dúvida e perceber também as nossas experiências do silêncio de Deus.

Acho que não é um filme de fácil leitura e também pode implicar algumas leituras que podem ser precipitadas. Creio que se de alguma forma há uma mensagem, algo que o filme nos diz, é que a última palavra é de Deus. E por isso a última palavra que pode verdadeiramente julgar os actos humanos é de Deus e sinto que isso é talvez um dos pontos a que o filme apela e que se pudermos fazer a leitura a partir daqui, e por isso também suspendermos alguns dos nossos juízos, acho que o filme se torna um bocadinho menos perigoso.

Não deixo de sentir que o filme é de difícil leitura e que nesse sentido pode gerar muitos desconfortos e essas sensações de que falávamos antes, que há uma justificação da apostasia, por exemplo.

Mas o que creio que é o nosso desafio é lê-lo em profundidade.

Que conselhos é que dá a um católico que vá ver o filme?
O grande conselho que dou é que se deixem o interpelar, que recordem que a fé tem tons muito diferentes e que procurem ler o filme a partir das suas próprias inquietações, de dúvida e daqueles momentos em que procurar a fidelidade de Deus não foi óbvio na sua vida, e procurar ler o filme ligando à sua própria experiência e perceber onde podem ter passado por situações semelhantes. Ao mesmo tempo, voltando ao início, acho que é bom lembrarmo-nos de todas as situações de verdadeira perseguição, de cristãos que continuam a sofrer, e também ter isso presente.

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