Randall Smith |
Um amigo meu protestante fez uma observação interessante,
o outro dia, sobre a Epístola de São Paulo a Filémon. Esta carta é muitas vezes
encarada com algum embaraço, porque aparentemente Paulo está a enviar um
escravo fugitivo, Onésimo, de volta para o seu senhor, um líder da Igreja
Colossense chamado Filémon. “Como é que Paulo podia mandar um escravo de volta
ao seu senhor?”, pergunta-se, “porque não proibiu simplesmente a escravatura?”
Alguns académicos modernos responderão, indubitavelmente,
que Paulo, sendo um homem da sua época, não compreendia o quão horrível era a
escravatura. Nós, que vivemos numa era mais iluminada, temos a visão que lhe
faltava. Talvez seja verdade – todos temos pontos cegos – mas eu prefiro dar o
benefício da dúvida às pessoas, sobretudo se estavam a escrever textos sob
inspiração do Espírito Santo. Parece-me mais seguro.
Eis o que diz São Paulo:
Embora tenha toda a
autoridade em Cristo para te impor o que mais convém, levado pelo amor, prefiro
pedir como aquele que sou: Paulo, um ancião e, agora, até prisioneiro por causa
de Cristo Jesus. Peço-te pelo meu filho, que gerei na prisão: Onésimo, que
outrora te era inútil, mas agora é, para ti e para mim, bem útil. É ele que eu
te envio: ele, isto é, o meu próprio coração. Eu bem desejava mantê-lo junto de
mim, para, em vez de ti, se colocar ao meu serviço nas prisões que sofro por
causa do evangelho. Porém, nada quero fazer sem o teu consentimento, para que o
bem que fazes não seja por obrigação, mas de livre vontade. É que, afinal,
talvez tenha sido por isto que ele foi afastado por breve tempo: para que o
recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo:
como irmão querido; isto especialmente para mim, quanto mais para ti, que com
ele estás relacionado tanto humanamente como no Senhor. Se, pois, me consideras
em comunhão contigo, recebe-o como a mim próprio. E se ele te causou algum
prejuízo ou alguma coisa te deve, põe isso na minha conta.
Paulo, prisioneiro por Cristo, insta Filémon a não lançar
na prisão o seu “amado filho” Onésimo, cujo “pai” ele se tornou durante o seu
cativeiro. Na qualidade de escravo, Onésimo era “inútil” para Filémon. Agora,
regressando não como escravo mas como irmão, pode ser útil a ambos, não para
carregar os fardos das suas possessões terrenas inúteis, mas ajudando-os a
carregar a cruz que conduz à salvação celeste.
“Recebe-o como a mim próprio”, diz Paulo, um homem
acostumado a pedir aos outros que o recebam a ele como se recebessem Cristo. Se
receber Paulo é receber Cristo, e se receber Onésimo é receber Paulo, então
Filémon deve receber Onésimo como Cristo, aquele que “se esvaziou da sua
divindade”, lavou os pés dos seus discípulos e lhes disse: “Estou entre vós
como aquele que serve”, para que os primeiros sejam os últimos e aquele que
seria o mestre venha a servir os outros.
“Se ele te causou algum prejuízo ou alguma coisa te deve”,
diz Paulo a Filémon, “põe isso na minha conta”. Seria necessário Paulo dizer
mais alguma coisa para recordar a Filémon a sua dívida não só para com Paulo,
mas para Deus – Dívida essa paga por inteiro por Cristo? Paulo sabe que, tendo
em conta tudo quanto Filémon lhe deve, poderia simplesmente dar-lhe uma ordem.
Mas nesse caso Filémon não estaria a dar livremente, e Paulo sabe bem a
diferença entre a obediência externa a um mandamento e aquilo que significa
tornar-se um “homem novo”, inspirado por uma dádiva livre de amor.
Onésimo regressa a casa de Filémon |
Por isso sim, Paulo envia Onésimo de volta para Filémon,
não já como escravo, mas como “irmão” – um irmão em Cristo. A base da sua
relação foi inteiramente transformada e com este gesto Paulo semeou as sementes
que levarão ao fim da escravatura, não através de um tratado político cujo
objectivo seja dirigir a partir de cima a aplicação do poder político, mas
procurando mudar corações, levedando o pão a partir de dentro. Planta-se a
semente nesta casa, com esta relação, e deixa-se a vida nova crescer daqui para
o exterior.
Por mais “imperfeita” que pensemos que foi a resposta de
Paulo ao problema da escravatura, não é verdade que nos deparamos com problemas
semelhantes no nosso tempo? Existem instituições que sabemos que estão marcadas
pela decadência da condição humana, contudo, não temos nem o poder nem a
autoridade para as abolir. Burocracias que denigrem as pessoas em vez de as
dignificar; estruturas económicas que enriquecem poucos e deixam os pobres sem
meios de subsistência; mecanismos financeiros que protegem as pessoas das
consequências morais das suas decisões de investimento.
Mas poderíamos viver sem as funções organizativas
fornecidas pelas instituições burocráticas? Como é que reestruturávamos a nossa
economia e reorganizaríamos a nossa bolsa para servirem melhor e mais fielmente
o bem comum? É fácil criticar os males passados; mais difícil é compreender
como reformar os aspectos difíceis do nosso sistema sem introduzir nele males
ainda maiores do que aqueles que já enfrentamos.
Não nos devemos, então, rever em São Paulo? Sozinho ele
não conseguiria reformar todo o Império Romano, nem convencer toda a gente a
abandonar a instituição da escravatura. Que fazer?
Mesmo que não possamos fazer mais nada, podemos plantar
as sementes e confiar que Deus as ajudará a crescer. Podemos estar dispostos a
sacrificar-nos pelo Evangelho e abraçar-nos uns aos outros, não como “escravos”
e “mestres”, “ricos” e “pobres”, “fracos” e “fortes”, mas como “irmãos em
Cristo”.
Não nos cabe salvar o mundo; esse é o trabalho de Deus.
Mas se amarmos os outros como Cristo, plantamos sementes espirituais e abrimos
novas perspectivas para futuras gerações que neste momento talvez estejam
vedadas ao pensamento humano. Temos de caminhar pela fé, e não à vista, fiéis ao
Evangelho que nos foi confiado, mesmo quando parece bizarro ou chocante. Como
Filémon certamente se deve ter sentido chocado quando abriu a porta e encontrou
uma encomenda de São Paulo: Um antigo escravo, um novo irmão.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
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