Wednesday 26 October 2022

A Doença e a Cura

Pe. Paul Scalia
Graças a Deus que não sou como o fariseu. Essa pode bem ser a nossa reacção à oração altiva do fariseu orgulhoso (ver Lucas 18, 9-14). Mas se cairmos nessa lógica cometemos o mesmo pecado que o fariseu, e revelamos a natureza infecciosa do orgulho, mostrando porque razão devemos estar mais atentos ao publicano.

Vejamos como o orgulho chega de facto a todo o lado e tudo afecta. É o pecado de Satanás, a ideia de que ele podia ser como Deus; que poderia ter a sua extraordinária dignidade e poder sem Deus. Então Deus responde ao orgulho de Satanás através do humilde São Miguel, cujo nome significa “Quem é como Deus?”. O orgulho é também o pecado dos nossos primeiros pais, a ideia de que poderiam ter as coisas de Deus, mas à sua maneira, que poderiam alcançar as coisas por si, em vez de as receber como dons. É, no final de contas, uma revolta contra a ordem natural das coisas, que Ele é Deus e nós não.

O orgulho é o pecado original também no sentido em que marca o ritmo de todos os outros. Não existe pecado, do mais leve ao mais gravoso, que não tenha as suas origens na elevação do nosso intelecto e da nossa vontade acima dos de Deus. Ou melhor, o orgulho comporta-se de certa forma como uma doença espiritual, que recebemos dos nossos primeiros pais, que infecta toda a alma, corrompendo até as nossas acções virtuosas.

Como tal, o fariseu nesta parábola é uma imagem do próprio homem – de cada um de nós. Sofremos do mesmo mal que ele, se bem que nem sempre dos mesmos sintomas. Se simplesmente nos recostarmos e o julgarmos sem nos julgarmos a nós mesmos, então não estamos a alcançar o ponto a que Jesus quer chegar e, o que é mais grave, tornamo-nos como ele.

Reparem em dois dos efeitos principais do orgulho. Em primeiro lugar isola-nos. “O fariseu tomou o seu lugar e orou para consigo”. Claro que não devemos orar para nós mesmos, mas o fariseu é tão egocêntrico que não reza a Deus, mas para si mesmo. Teria mais piada se não fizéssemos frequentemente a mesma coisa. Talvez não sejamos tão altivos ou convencidos como o fariseu, mas continuamos a sofrer os efeitos do orgulho. A nossa oração torna-se rapidamente uma mera conversa com nós mesmos, sobre nós mesmos. Em vez de rezar a Deus, colocamo-nos diante dele e pensamos em nós.

Isto ajuda-nos a compreender as graves palavras do Senhor no final da parábola: “Quem se exalta será humilhado”. Não se trata tanto de um juízo como de uma afirmação da realidade. O homem orgulhoso isola-se de tal forma que não deixa espaço para o único que o pode elevar. Não é que Deus não o ame, mas que ele se isolou de tal forma de Deus que está a bloquear os efeitos desse amor. Entrará para a eternidade na companhia de si mesmo, o que é humilhante.

Em segundo lugar, o orgulho leva a uma mentalidade competitiva. “Eu te agradeço porque não sou avarento, nem desonesto, nem imoral como as outras pessoas. Agradeço-te também porque não sou como este cobrador de impostos.” O fariseu, como qualquer pessoa orgulhosa, deriva o seu valor não da sua relação com Deus, mas de uma comparação com os outros. De facto, ele olha os outros apenas como adversários. Adoptou a instrução do demónio ao seu sobrinho no livro “Vorazmente Teu”, de C.S. Lewis: “Ser, é estar em competição”.

No caso do fariseu esta competição corre-lhe bem. Ele faz coisas melhores que o cobrador de impostos, e por isso sente-se satisfeito. Mas o mesmo espírito orgulhoso de competição pode frequentemente produzir o efeito oposto. Quando alinhamos no jogo da competição e damos por nós em desvantagem em relação aos outros, então em vez de altivos ou presunçosos, tornamo-nos desencorajados e inseguros. As redes sociais agravam este problema, uma vez que incentivam as pessoas – sobretudo os jovens – a competir neste jogo da comparação. É uma receita para a insegurança e a ansiedade. O orgulho – um enfoque excessivo em nós mesmos – é a raiz comum tanto do arrogante como do inseguro.

Ironicamente, o homem que na nossa cultura actual seria visto como sofrendo de falta de autoestima é o que a parábola apresenta como mais saudável. “Mas o cobrador de impostos manteve-se afastado e nem levantava o rosto para o céu. Batia no peito e dizia: ‘Ó Deus, tem pena de mim, pois sou pecador!’” Ao contrário do fariseu, o cobrador de impostos consegue falar mesmo com Deus. Ele tem noção da relação e do seu lugar na mesma. Mais, age em concordância, batendo o peito e reconhecendo e expressando a humildade do seu estado.

Há um debate clássico sobre se a humildade é uma questão do intelecto ou da vontade. É uma forma de pensar ou uma forma de agir? Devemos encará-la como ambos: precisamos de mudar tanto a nossa forma de pensar como o nosso comportamento. Assim, a humildade é, em primeiro lugar, a avaliação correcta de nós mesmos. É a virtude através da qual reconhecemos a verdade de que nada somos sem Deus, mas também de que Deus nos acumulou de bênçãos.

Ao mesmo tempo, a adesão à verdade e o reconhecimento de quem somos requer actos concretos da vontade que os fortaleçam. Sem o comportamento adequado, a forma adequada de pensar enfraquece. Por isso, a Igreja conduz os seus filhos em actos de humildade, sobretudo na sagrada liturgia. Reconhecemos o nosso pecado, batendo no peito como fez o cobrador de impostos. Ajoelhamo-nos e confessamos que não somos dignos. E por aí fora. Estes não são apenas gestos e palavras piedosos, mas actos que nos ajudam a interiorizar a verdade que nada somos – mas que Deus nos deu tudo.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 23 de Outubro de 2022 em The Catholic Thing

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3 comments:

  1. "...Assim, a humidade é, em primeiro lugar...": é humildade e não humidade.

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  2. Dos melhores textos que já li, obg!

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