Wednesday 8 June 2022

Utopia em vez de Escatologia

David G. Bonagura
Há trinta anos o então Cardeal Ratzinger esteve em Praga, onde deixou um aviso ao povo de uma democracia recém-nascida que estava repleta tanto de promessas como de perigos. O futuro Papa falou sobre a diferença entre escatologia – a compreensão e crença no “final”, isto é, vida eterna – e utopia. A crença nesta última, que ele definiu apenas como “a esperança de um mundo melhor no futuro” veio a ocupar o lugar da vida eterna entre muitos dos crentes que subsistem no Ocidente.

Para o homem moderno, continuou Ratzinger, “a vida eterna é supostamente irreal; diz-se que nos distrai do tempo real, mas que a utopia é um objectivo real que podemos ajudar a concretizar com o nosso poder e as nossas capacidades”. A arrogância dos homens “substitui a escatologia com uma utopia feita à sua imagem” que “pretende preencher as esperanças do homem” sem referência a Deus. Constantemente seduzido por novas capacidades tecnocráticas, o homem moderno pensa que a utopia está mais próxima a cada dia que passa.

Em anos recentes – à medida que os americanos se desvinculam cada vez mais das religiões tradicionais – a sede pela utopia atingiu ponto de fervura, como que para preencher esse vazio. Os três reinos utópicos realizar-se-ão, prometem-nos, se conseguirmos travar as três grandes ameaças sociais: mudanças climáticas, Covid e racismo. A eliminação destas três trará a salvação civilizacional.

Esta salvação continua permanentemente fora do alcance, mas cada tentativa falhada gere uma urgência e um medo maiores. O choro e ranger de dentes tornam-se mais altos a cada dia que passa, para tentar converter os cépticos. Se continuarmos a perfurar a terra para procurar combustíveis fósseis, as calotas polares derretem e o nível do mar sobe; mais uma variante de Covid e os governos fecham novamente as escolas e as cidades; mais um conflito inter-racial e veremos motins e pânico nas ruas.

Ratzinger compara a utopia com a figura mítica de Tântalo, que foi condenado a viver com água pelo pescoço em Hades. Sempre que tentava chegar a água ou fruta eles retrocediam, para fora do seu alcance. Não espanta, por isso, que os adeptos da utopia que vemos nas suas manifestações estejam sempre tão zangados. Não conseguem alcançar aquilo que tão desesperadamente querem. Estão frustrados como Tântalo. Por isso, comenta Ratzinger, mesmo que “trabalhem com total dedicação para consolidar aqueles factores que estão, por ora, a manter o mal à distância”, censuram a concorrência e cancelam os potenciais rivais que ameaçam os seus objectivos esquivos.

A insanidade generalizada que a busca pela utopia ambiental, de saúde, e racial gerou entre os adeptos deveria levar todos os que contemplam sair das igrejas cristãs a pensar duas vezes. Os seres humanos têm sede do divino, mas os dogmas utópicos dos nossos dias não nos trazem salvação, mas sim angústia eterna. Vale a pena olhar de novo para o Cristianismo (ou, para muitos desta geração, olhar pela primeira vez, mas libertos das distorções deliberadas do credo cristão).

“A verdadeira diferença entre a utopia e a escatologia”, escreve Ratzinger, é que o “presente e a eternidade não estão lado-a-lado, separados; mas sim interligados”. A vida eterna não é um fenómeno que começa de repente, depois da morte. É um “novo tipo de existência, em que tudo flui em conjunto para o ‘agora’ do amor” que se torna possível pela presença de Deus no universo. “Deus é amor, e aquele que vive no amor vive em Deus, e Deus vive nele” (1 João 4,16).

Através da Encarnação do Filho de Deus, a vida eterna faz agora parte do tempo. Em Cristo, escreve Ratzinger, “Deus tem tempo para nós. Deus já não é meramente um Deus lá em cima, mas Deus envolve-nos por cima, por baixo e por dentro: Ele é tudo em tudo, e por isso tudo em tudo nos pertence.”

O toque de Cristo é mais tangível na Igreja quando Ele vem ao nosso encontro na Eucaristia. Quando o recebemos na Santa Comunhão a eternidade conjuga-se com o presente e transforma-o, para o elevar dos horrores deste mundo, dando-lhe uma prova da glória vindoura. O presente deixa de ser o lugar de preparação de um futuro inalcançável e torna-se ocasião para o encontro com um Deus que nos ama e que nos chama a si.

Só desta perspectiva é que podemos lidar com os males que nos confrontam, sejam eles ecológicos, sanitários, sociais ou morais. Porque os crentes reconhecem que o mal, tal como as ervas daninhas que crescem com o trigo, farão sempre sombra sobre o bem desta vida. Mesmo quando a sombra do mal parece cercar totalmente o bem, como acontece com os horrores da guerra e os massacres nas escolas, os raios de bondade continuam a romper a escuridão para nos dar esperança de que Deus, aparentemente ausente, reina aqui e agora.

Tendo descartado a fé, o adepto da utopia não consegue processar o mal desta forma. Tenta, sem sucesso, amputá-lo, ficando frustrado e paranoico quando o vê a regressar, qual hidra, com o dobro da força. Faz dos avanços tecnológicos e das acções governamentais o seu Hércules, mas são obras demasiado difíceis para serem levadas a cabo por mortais. O adepto da utopia sofre assim uma derrota estrondosa quando tenta construir o céu na terra.

Fazemos melhor, conclui Ratzinger, quando trabalhamos no sentido oposto. “A terra torna-se celestial, torna-se Reino de Deus, sempre que se faz a vontade de Deus na Terra como no céu. Rezamos assim porque sabemos que não está ao nosso alcance trazer o céu até nós. Porque o Reino de Deus é o seu reino, não o nosso, e não o podemos influenciar”.

Nós, os crentes, devemos desafiar todos os que se estão a afastar do Cristianismo por estas razões. Jamais encontrarão a utopia. Mas a vida eterna está ao seu alcance, se apenas pudessem olhar novamente com os olhos da fé.


David G. Bonagura, Jr. leciona no Seminário de São José, em Nova Iorque. É autor de Steadfast in Faith: Catholicism and the Challenges of Secularism, que será lançado no próximo inverno pela Cluny Media.

(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 7 de Junho de 2022 no The Catholic Thing)

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1 comment:

  1. Um regime político por melhor que seja a determinados olhos, e mesmo que o "eu" seja o líder supremo desse regime nunca será igual ao Reino dos Céus. Um líder por mais poder que tenha, nunca será eterno. E nenhum regime político consegue acabar com os males naturais deste mundo como, por exemplo, as doenças, os terramotos.

    Outra falácia marxista é a racionalidade. Marx interpertou bem esta palavra, mas foi intelectualmente desonesto ao escrever que os adversários das suas teorias só o seriam por não serem lógicos. Só haveria não-marxistas por motivos sentimentais. Exemplo: Ter fé, ter um amigo patrão, não gostar do líder de determinado sindicato. Mas se alguém deixasse os seus gostos de parte e seguisse a pura lógica, essa pessoa seria inevitavelmente socialista.

    Hoje muita gente confunde racionalidade com inteligência. Uma pessoa por menos inteligente que seja também toma decisões racionais. Exemplo: Escolher comer uma maça, em vez de laranja. Ver determinado filme, em vez de outro.
    Uma pessoa por mais sobredotada que seja também tem pelo menos momentos irracionais. Pode rir em momentos inoportunos. Fica apreensivo quando ouve uma má noticia, fica intevitavelmente alegre quando recebe uma excelente notíca etc... Gostar de um clube de futebol é sempre irracional. Ninguém faz uma análise lógica a um clube antes de escolher se o vai apoiar ou não. Muitos "racionais" da nossa imprensa são adeptos de futebol.

    Muitos, marxistas ou não, dizem que não teem fé porque são racionais (uma forma subliminar de se auto-intitularem como inteligentes), mas uma coisa não está relacionada à outra. Aliás muita gente não é religiosa precisamente por motivos não-racionais. Porque não gostam do sacerdote local ou perderam um familiar próximo.

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