Passo
a apresentar um pouco de história revisionista, claramente inventada, mas que
vale a pena contemplar nos dias que correm.
Suponhamos
que do início da década de 30 até 1945 a Alemanha tinha-se mantido uma
democracia, em vez de se transformar numa ditadura de partido único, como foi
com o Terceiro Reich. Suponhamos ainda que muitos representantes
democraticamente eleitos de partidos liberais e conservadores tinham juntado
forças com os Nazis de Hitler no que diz respeito às políticas antissemitas.
Por fim, imaginemos que mesmo alguns deputados católicos da oposição tinham
votado em conjunto com o Partido Nazi para levar a cabo a chamada “solução
final” para a questão judaica e que tinham apoiado publicamente a sua
implementação. Suponha, por agora, que tudo isto eram factos históricos.
Vamos
então um bocado mais longe. Imagine que os bispos alemães não tinham tomado
qualquer acção disciplinar contra esses políticos católicos, seja de que
partido fossem, quer excomungando-os, quer negando-lhes os sacramentos.
(Sabendo hoje que estas medidas já foram aplicadas pelos bispos alemães nos
nossos dias apenas por não se pagar o chamado imposto da Igreja ou para com
católicos que não se registam como tal com o Governo). Mas imaginemos que
naqueles dias negros não se tinha feito nada do género e imaginemos ainda que
as sondagens mostravam cada vez mais católicos alemães confusos sobre estas questões
moralmente graves ou decididamente a favor das medidas racistas e genocidas.
Como
é que acha que um historiador julgaria esses bispos e esses líderes religiosos?
Alguém acreditaria que os bispos alemães tinham desempenhado fielmente o seu
papel de proteger a fé dos seus rebanhos – incluindo dos políticos católicos –
sem pressionar os católicos no parlamento para defender as vítimas inocentes,
fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir as atrocidades do
Governo? Será que a Igreja local teria, mais tarde, que se arrepender e pedir
perdão, mais até do que os papas têm feito nos últimos anos em reconhecimento
de erros do passado?
Talvez
se considerasse que os leigos católicos tinham sido apanhados pelos tempos e
pela mentalidade tão sagazmente difundida pela máquina de propaganda Nazi. E
poderia ser considerada uma atenuante o facto de terem ficado naturalmente
confusos com o facto de verem os políticos católicos a evitar serem disciplinados
pelos líderes eclesiais e a receber publicamente a comunhão e outros
sacramentos, enquanto se continuavam a apelidar de católicos fiéis e alinhados
com a Igreja.
Mas
voltemos à nossa realidade e ao nosso mundo actual. Durante os últimos 50 anos
os leigos católicos na América ouviram os seus bispos a condenar muito claramente
o crime monstruoso do aborto. Mas ao mesmo tempo têm visto políticos católicos
a apoiar abertamente o chamado direito ao aborto e a combater as medidas para o
restringir – com alguns até a defender os horrores da Planned Parenthood, sobre
a qual vários bispos já falaram, mas pouco mais. Entretanto estes políticos
continuam a apelidar-se de católicos e a receber a comunhão publicamente, por
vezes das mãos dos próprios bispos.
Ao
longo deste tempo mais de 55 milhões de seres humanos foram chacinados, o que
supera até as terríveis monstruosidades do Terceiro Reich. Entretanto, mais de
metade da população católica deste país passou a apoiar o direito ao aborto.
Devemos acreditar que não existe ligação entre este distanciamento em massa da
verdade e prática moral do Catolicismo e a recusa dos bispos em disciplinar os
políticos católicos?
Na
verdade, a maioria dos políticos pró-aborto, católicos ou não católicos, são
vistos frequentemente a receber homenagens de instituições católicas.
Universidades que se dizem católicas contratam professores que divergem
publicamente do ensinamento moral católico e, mais uma vez, os leigos não vêem
qualquer acção disciplinar. Não surpreende, por isso, que exista muita confusão,
sobretudo entre jovens, acerca do ensinamento católico relativo ao aborto e ao
casamento. Será que os bispos vão assumir a responsabilidade por esta perda de
fé católica em questões tais como o aborto, o casamento, a eutanásia e outros
temas morais que se deve à ausência de censura pública de políticos católicos
ou de instituições cujos funcionários apoiam estes desvaneios morais?
Como
é que a história vai julgar esta geração de líderes da Igreja quando a
carnificina chegar finalmente ao fim? Como é que as gerações futuras de
católicos julgarão os líderes espirituais desta geração se olharem para trás e
virem que nenhum político católico foi alguma vez disciplinado por apoiar e
votar favoravelmente não só o aborto como a perversão do casamento? Os mesmos
políticos católicos que apoiaram o direito a acabar com vidas humanas inocentes
estão agora a apoiar o direito ao casamento homossexual e até a pedir à Igreja
que mude os seus ensinamentos. A seguir virá, sem dúvida, a eutanásia,
disfarçada de misericórdia.
Até
parece que a democracia se tornou um absoluto que supera tudo. Se o aborto é
imposto democraticamente, ou legalizado por juízes que trabalham num
enquadramento democrático, então os líderes da Igreja ficam como que paralisados
quando toca a disciplinar os seus próprios fiéis políticos ou juízes. Se agem
no contexto de uma democracia, têm carta branca, é isso? Não podemos dar a
ideia de estar a minar a democracia disciplinando sequer católicos que votam
pelo direito a matar os inocentes?
Um
abortista católico está automaticamente excomungado, mas com o político
católico que vota de forma a permitir que o abortista possa exercer o seu
trabalho, não se passa nada? Se o juiz [do Supremo Tribunal] Anthony Kennedy
atropelar o ensinamento católico com uma decisão bizarra no caso Obergefell
[que legalizou o casamento homossexual nos EUA], com ele também não se passa nada.
Os políticos e os juízes católicos não podem ser beliscados pela disciplina
católica, porque agem a coberto da democracia e da separação entre a Igreja e o
Estado e tudo isso. Por isso o juiz Kennedy continua a ser tratado como homem
honrado e – mais ainda – pode continuar a afirmar-se um bom católico sem demais
consequências.
Questiono-me
se um futuro Papa terá de pedir perdão por toda esta hesitação da parte dos
bispos de exercer a sua liderança através da disciplina pública, e não só por
palavras, mas cobrindo-se de saco e sentando-se em cinzas, penitenciando-se pela
fraca resposta dos líderes da Igreja enquanto dezenas de milhões de novos e
velhos pagavam o preço dessa inacção com as suas próprias vidas.
O
padre Mark A. Pilon, sacerdote da Diocese de Arlington, Virginia, é doutorado
em Teologia Sagrada pela Universidade de Santa Croce, em Roma. Foi professor de
Teologia Sistemática no Seminário de Mount St. Mary e colaborou com a revista
Triumph. É ainda professor aposentado e convidado no Notre Dame Graduate School
of Christendom College. Escreve regularmente em littlemoretracts.wordpress.com
(Publicado
pela primeira vez na quarta-feira, 19 de Agosto de 2015 em The Catholic Thing)
São Tomás de Aquino disse uma vez,
citando Aristóteles, que “um pequeno erro à partida pode levar a grandes erros
nas conclusões”.
O que isso significa é que, tendo em conta a natureza da
razão, se qualquer uma das suas premissas estiver errada, por mais irrelevante
que possa parecer para o projecto em geral, as suas conclusões podem acabar por
se revelar muito, muito erradas.
Um bom exemplo disto aparece num TED talk que o meu irmão
Jim sugeriu que eu visse. Em “O que explica o domínio dos humanos?” o professor Yuval Noah Harari argumenta que o
domínio do homo sapiens na terra se explica pela capacidade que os homens têm
de construir certas “histórias” sobre “entidades ficcionais” que fornecem os
meios para cooperarmos em grandes números. Entre estas entidades encontram-se
Deus, os direitos humanos e o valor do papel-moeda.
Embora o professor Harari seja o orador captivante e o
seu discurso tenha sido retoricamente atractivo, as credenciais filosóficas da
sua tese deixaram-me com mais perguntas do que aquelas a que a teoria consegue
responder.
Comecemos por colocar esta questão: Como é que o
professor Harari sabe que estas “histórias” sobre o divino, os direitos
nacionais e a moeda são “ficções”? Ele não explica. Tudo o que ele faz é partir
do princípio que o materialismo é explicação correcta da realidade, isto é, a
crença de que as únicas coisas verdadeiras são aquelas que são sujeitas a
medição física quantificável.
Eis o que ele diz sobre os direitos humanos:
“Os direitos humanos, tal como Deus e o Céu, são apenas
uma história que inventámos. Não são uma realidade objectiva; não são um efeito
biológico do homo sapiens. Se pegarmos num Ser Humano e o abrirmos encontramos
um coração, rins, neurónios, hormonas, ADN, mas não encontramos quaisquer
direitos. Os únicos sítios onde encontramos direitos são nas histórias que
inventámos e espalhámos ao longo dos últimos séculos. Podem ser histórias muito
boas, muito positivas, mas não deixam de ser apenas ficções que inventámos.”
Ou seja, só porque não conseguimos detectar os direitos
humanos (para nem falar em Deus) através das ciências naturais, devemos
concluir que estes não fazem parte da “realidade objectiva”. Mas tal como o
cantor de country Johnny Lee, que lamentou andar à procura do amor em bares de
solteiros e entre amantes dos bons tempos, o professor Harari está a procurar
direitos em todos os sítios errados. Para usar o exemplo do filósofo Edward
Feser, ele assemelha o “bêbado que insiste em procurar as chaves do carro
debaixo do candeeiro da rua, argumentando que esse é o único sítio onde existe
luz suficiente para os poder ver”.
Então onde é que devemos procurar direitos? Não é preciso
ir mais longe que a própria conferência de Harari. Ao apresentar a sua versão
dos acontecimentos como aquela que ele acredita ser verdadeira, está a deixar
implícito que aqueles que discordam dele estão errados. Partindo do princípio
que o propósito de um argumento, bem como da utilização de provas para
sustentar uma explicação, é de chegar à verdade, ou a algo que se aproxima da
verdade, segue-se que a pessoa que se encontra equivocada não tem qualquer direito a afirmar que está
correcta.
Segue ainda que uma pessoa que ignore as provas, o bom
raciocínio e a reflecção cuidadosa, preferindo abraçar os pensamentos
positivos, o raciocínio falacioso e as deambulações parvas está a fazer mal a
si mesma. Mas apenas podemos dizê-lo se soubermos ao que é que o Ser Humano
está ordenado.
Professor Harari
Mas este fim, ou causa final, não pode ser detectado por
instrumentos ou pelos métodos das ciências naturais. Se dissecarmos um Ser
Humano, para usar o exemplo de Harari, não conseguimos ver em lado nenhum os
bens para os quais estamos ordenados. Se, contudo, isso significa que esses
bens não constam da “realidade objectiva, então os próprios praticantes da
ciência ficam sem qualquer base para condenar a ignorância e louvar a
sabedoria, dois juízos cuja veracidade a “história ficcionada” de uma realidade
imaterial, a formado Ser Humano. Afinal de contas, apenas podemos concluir que alguém tem uma
deficiência se soubermos antes aquilo que é e como deve ser. Daí dizermos que a
um cego falta a visão, mas a uma pedra cega nada falta.
As leis da lógica também são centrais para a
investigação. Isto é, para poder fazer investigação científica é necessário
saber raciocinar, o que significa não violar as leis da lógica. Mas as regras
da lógica não são entidades materiais que se possa encontrar dissecando alguma
coisa, muito menos um ser humano. Na realidade, as relações entre as premissas
de um argumento são lógicas e não espaciais, o que significa que não são
objectos físicos. Vejamos uma forma válida de argumento, modus ponens:
Se P, então Q
P
Logo Q
Esta é uma forma válida, não porque as duas premissas
sejam, em conjunto, causa física da conclusão, como a bola branca faz mover a
bola preta no bilhar. Antes, funciona por necessidade lógica, a conclusão segue-se
às premissas.
Essa relação não é física, embora pareça tão real e parte
da “realidade objectiva” como a relação entre as duas bolas de bilhar, ou
aquilo que se vê quando se disseca um ser humano. Por isso, aqui temos outra
razão para rejeitar o materialismo do professor Harari.
A questão é esta: Se alguém vos propuser uma teoria da
realidade que exclui aquilo que parece ser evidente, é capaz de ser boa ideia
ser céptico em vez de duvidar do senso comum. Por que é, ironicamente, o nosso
senso comum – aquilo que acreditamos sobre o bem, a verdade e a beleza antes de
reflectir sobre o assunto – que tornam a teorização, mesmo a má teorização,
possível.
(Publicado pela primeira vez na Quinta-feira, 15 de Agosto
2015 em The Catholic Thing)
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o
consentimento de The Catholic Thing.
Aproveito este meu último post antes de ir de férias para
partilhar sobretudo alguns textos mais de fundo que vos poderão interessar.
Na sequência da minha reportagem sobre o Apoio à Vida e a
Vanessa, que se tornou mãe aos 12 anos, publiquei a transcrição integral da
entrevista a Joana Tinoco de Faria, psicóloga que acompanha estes e outros
casos e fala com conhecimento de causa de toda
a problemática da gravidez adolescente, aborto e maternidade. É
uma conversa longa mas interessantíssima!
Ao longo desta semana que passou falei
também com o activista Nuri Kino, que fundou uma organização para ajudar os
assírios, isto é, os cristãos do Iraque e da Síria que são perseguidos pelo
Estado Islâmico. A conversa decorreu no dia em que foram raptados mais 250
cristãos na Síria e dias antes de serem libertados outros 22. Saiba aqui como
pode ajudar os que se encontram a salvo, mas deslocados.
Na semana passada morreu o padre Ricardo Neves. Deixa
muitas saudades e um vazio pastoral difícil de preencher sem a ajuda de Deus,
que certamente não nos faltará. Hoje publiquei na íntegra uma entrevista que lhe
fiz no ano sacerdotal. Não
é uma homenagem, é uma forma de matar saudades.
Transcrição integral da entrevista feita ao padre Ricardo
Neves em Dezembro de 2009 e que foi incluída na série “Vidas Consagradas” feita
para o Ano Sacerdotal. O padre Ricardo, de quem tive o privilégio de ser próximo e amigo, morreu no passado dia 6 de Agosto.
Pode contar-nos um
pouco da sua história?
Tenho 37 anos e sou filho único, os meus pais são do
Alentejo, casaram e viveram em Lisboa, e depois em Rio de Mouro. Fiz o trajecto
normal de estudos e de catequese. Porque a minha mãe era praticante mas o meu
pai não, e tinham um acordo que o meu pai começava a ir à Igreja quando eu
começasse a ir à catequese.
Vida normalíssima em casa, e na Igreja, em termos de vida
cristã normal e muito gira a partir de certa altura. Na minha adolescência a
participação na vida da comunidade era muito intensa, muito participada, com
muito crescimento quer pessoal quer comunitário, que na altura foi o que me
interpelou, na altura também através da figura do pároco, o célebre padre
Alberto Neto, famoso em Lisboa por causa do caso da Capela do Rato, e que tinha
sido coadjutor em Belém.
Foi um homem que me interpelou imenso pelo tipo de pastor
que era, e porque me foi desinquietando, foi fazendo umas “perguntas indecentes”,
perguntando se já tinha pensado nisto e naquilo.
E começou a crescer dentro de mim… Ao mesmo tempo que havia
uma enorme alegria em ser cristão e fazer parte da vida da Igreja, comecei a
interrogar-me o que é que os outros teriam a ver com isso, especialmente porque
na minha experiência de liceu e de escola havia muita gente que conhecia que
não era cristã e que podia beneficiar muito se conhecesse e experimentasse o
que eu conhecia.
Isso começou a tornar clara a interrogação de ser sacerdote
e de consagrar a minha vida a esse serviço.
Depois entrou um período de reflexão, até que fui dizer a
Deus que se decidisse, para eu saber o que fazer. Pedi-lhe: “Manda-me um sinal,
porque se me disseres o que queres eu faço”. E foi ali um conjunto de
acontecimentos muito giro. Nessa altura morreu o meu pároco, foi um
acontecimento trágico, morreu assassinado, e eu tinha recebido um convite para
ir para o pré-seminário, e fui falar com o padre que o estava a substituir e
perguntei como devia fazer para preencher o nome do pároco. E o padre Armindo
agarrou nos papéis e disse: “Eu acho que devias era entrar no seminário, não
achas que é tempo de entrar no seminário?” E para mim isso foi a resposta ao que
eu tinha pedido de joelhos. E para mim foi muito claro. Disse-me para pensar
nisso e eu fui para casa a pensar que não ia ter que pensar mais, que já lhe
podia dizer.
E então entrei para o seminário aos 15 anos e fiz o trajecto
normal, estive dois anos aqui [em Caparide], mais quatro em Almada e outros quatro
nos Olivais.
Sendo filho único, a vocação
foi bem aceite?
Lembro-me que nesse dia cheguei a casa e os meus pais
estavam no jardim, o meu pai estava em cima de um escadote a apanhar ameixas, e
a minha mãe estava com o balde na mão. Eu abri o portão, cumprimentei-os e
disse: “Olhe, eu vou para o Seminário”, e o meu pai, que estava no alto da
ameixeira nem olhou para mim, disse à minha mãe: “O Rapaz está parvo, acho
melhor ires para casa”.
As semanas que se seguiram foram de debate muito intenso.
Não para contrariar, mas porque queriam saber se era de facto consistente o que
eu queria. Depois deixaram-me vir.
Foi particularmente complicado para a minha mãe, porque
coincidiu com uma fase em que o meu pai passou a estar mais ausente por causa
do trabalho e para a minha mãe houve uma solidão que foi difícil de gerir. À medida que me viam a crescer feliz e realizado, isso foi sendo mais harmonioso
para eles.
Depois de ordenado, foi
logo trabalhar para o seminário?
Imediatamente.
Quando é que se
tornou vice-reitor?
Há sete anos, em 2002.
Qual é o percurso
normal de um seminarista, desde que entra até passar ao seminário maior, e qual
é o seu papel ao longo desse percurso?
A Santa Sé indica que a formação tem de ter pelo menos seis
anos de estudos. No Patriarcado de Lisboa esse percurso está feito em sete,
três aqui, no seminário vocacional, e quatro no seminário dos Olivais que
chamamos o seminário pastoral. Portanto três anos de discernimento e
aprofundamento vocacional e quatro anos de formação pastoral e de preparação
mais imediata para a ordenação.
Aqui o nosso grande objectivo é proporcionar um percurso que
permita àquele candidato, e a nós Igreja, nomeadamente a equipa formadora que
está aqui em nome do Bispo, fazer um discernimento sobre o chamamento de Deus
para aquela pessoa e a capacidade que tem para responder, e chegar a uma
conclusão sobre isso. Portanto todo o processo dos três anos está orientado
para isso, em diferentes dinâmicas: A dinâmica do crescimento espiritual; A
dinâmica do crescimento intelectual e da formação intelectual; E a dinâmica do
crescimento humano e afectivo, que vão concorrendo mutuamente até se chegar a uma
síntese que permita ver.
Claro que o ponto de confronto são aqueles elementos que a
Igreja acha necessários para o ministério ordenado, há um conjunto de exigências,
de ritmos de vida e de conteúdos, que vão sendo oferecidos, e que são aqueles
que se pretendem para quem quer ser padre, que vão servindo por um lado de
motor de crescimento e por outro de margem de confronto, para ver se há
integração e adequação ou não.
Enquanto vice-reitor,
qual é a sua função?
O vice-reitor tem a coordenação-geral pedagógica da casa,
quer o que diz respeito ao percurso global, quer o que diz respeito ao
acompanhamento individual. E depois tenho também a parte administrativa.
Quantos padres
trabalham aqui?
Somos três padres na equipa formadora. Há o director
espiritual, que os acompanha individualmente e quem os confessa, e depois nós
os outros dois padres, eu o Vice-reitor e o padre Nuno Amador, que é o
prefeito, que acompanhamos a parte externa e não fazemos a direcção espiritual,
dividimos os três anos entre nós. Neste momento eu acompanho o primeiro ano, o
chamado propedêutico, e os finalistas. No que diz respeito ao propedêutico
acompanho-os tanto nas actividades de grupo como também no percurso individual,
e aí faço parelha com o director espiritual, e acompanho os finalistas, até
porque como é um ano de decisão é preciso um acompanhamento mais apurado para
chegar a uma conclusão final.
Parte do seu trabalho
é ajudar os seminaristas a discernir se têm mesmo vocação para o sacerdócio ou
não, é fácil detectar isso?
Isso é o mais difícil! Fácil não é. Não se trata de fácil ou
difícil. O processo é um de amadurecimento da pessoa. Não está aqui em jogo
simplesmente a aquisição de competências, um técnico religioso, ou um técnico
sacramental. Pretende-se ver se esta pessoa cresce numa unidade pessoal que se
identifica com aquele projecto. Isso é difícil, porque por um lado e muito
dinâmico, por outro lado os timings são muito diversificados, e porque uma boa
parte disto está dependente da liberdade de Deus, que é um mistério muito
grande.
O segredo é acompanhar e intervir, em cada processo, e temos
pessoas para quem o amadurecimento acontece mais depressa e para quem há uma
clareza sobre a continuidade do percurso mais cedo, e outras para quem acontece
mais tarde. Contudo, a formalidade da decisão no que diz respeito à adesão à
vocação sacerdotal e a passagem para os Olivais, só acontece no terceiro ano,
só aí é que pedimos formalmente uma decisão pública assumida e comprometida, e
nós também tomamos essa decisão.
É verdade que há percursos que são muito turbulentos e que
andam para trás e para a frente, e há outros que são mais lineares, mais
tranquilos.
Há uma taxa bastante
grande de desistências no sacerdócio, como vê isso?
As taxas de desistência são uma coisa… No seminário
vocacional há uma taxa maior do que no pastoral, porque de facto o seminário
vocacional é um seminário para discernir e decidir, por isso é mais normal
haver mais saídas. No Seminário dos Olivais é raríssimo, porque os que passam
para lá já têm uma decisão tomada. Só em casos excepcionais é que saem.
Aqui é natural haver saídas porque é para nós muito claro
que este é um processo aberto, um processo que está começado com indícios de
vocação sacerdotal e de adesão a isso, mas que precisa de ser aprofundado, e a
regra fundamental para ele ser aprofundado é uma grande liberdade de parte a
parte. E portanto, em alguns casos percebe-se que a vocação é o matrimónio, ou
uma vida religiosa, ou uma vida consagrada e por isso reencaminha-se para esses
fins.
Existe mesmo uma
crise de vocações, como tanto ouvimos dizer?
Os anos 60 / 70 foram anos, tecnicamente, de muita crise de
vocações, e isso correspondeu à redefinição dos seminários e do papel do
sacerdote na Igreja. Na segunda metade dos anos 70 os seminários aqui da
diocese passaram de 180 ou 150 alunos para 12 ou 15 alunos, no espaço de dez
anos.
Isso significou que houve um processo de perceber as
motivações profundas que havia nas pessoas que encetavam este caminho, e
aquelas cujas motivações não coincidiam com o que estava definido, era melhor
caminharem para outro sítio.
Progressivamente, desde os anos 70 até agora tem havido um
crescimento sustentado. Creio que o problema é que o número que temos agora não
é o necessário para repor as faltas que temos. Se compararmos com a grande
quebra dos anos 60/70, temos números bons. Não temos é a capacidade de refazer
o tecido dos presbíteros com os números que se pretendia para manter a
organização pastoral como ela está.
Os senhores bispos têm de pensar muito nisso, e isso também
põe em questão a maneira como se organiza o trabalho dos sacerdotes, porque há
um tipo de pastoral que se fazia há muito tempo, que precisava de muitos padres
e de um tipo de presença de padres que hoje já não pode ser assim, e ao mesmo
tempo não temos padres para compensar isso, e depois a realidade do número das
vocações também é muito variável de diocese para diocese. Há dioceses que têm
para a sua estrutura um óptimo número, e outras que têm menos. Isso tem a ver
com a vitalidade cristã das próprias comunidades. Quando essa vitalidade é
crescente e tem preocupações de intervir no mundo, naturalmente aparecem
vocações. Se há um conjunto de comunidades com um Cristianismo mais de
manutenção, mais absorto, o número de vocações também é menor.
E os seminaristas
estão a ser preparados para essa nova realidade, ou para uma realidade que já
não vai existir no tempo deles?
Nós temos a preocupação, principalmente nos Olivais, mas
aqui também, de por um lado dar-lhes a conhecer a realidade como ela é, que não
muda num estalar de dedos, e ao mesmo tempo de levá-los a reflectir sobre as
metas onde queremos chegar. Porque me parece que é preciso muito cuidado e
sabedoria para formar neste percurso de transição.
Porque não podemos formar gente que esteja tão iluminada com
as metas onde vai chegar que depois, quando for para as comunidades concretas
não se revê e não aguenta e dá cabo daquilo, e também não podemos formar para
gente que só faz o que ali está e não evolui com a comunidade para outro lado.
Por isso a nossa preocupação tem sido, por um lado ajudar a integrar na
realidade como ela está, e ao mesmo tempo iluminar para as metas onde queremos
chegar.
Depois, também numa diocese como é Lisboa, as dinâmicas
pastorais são muito diferentes. A pastoral dentro da cidade, propriamente dita,
na cintura de Lisboa e no Oeste, seja o mais próximo ou o mais distante, como
Alcobaça, Nazaré, etc. são realidades muito diferentes e que vão precisar de
posturas e de sensibilidades muito diferentes. Há comunidades que, a maneira
como se organizam, é muito rural, com esquemas muito tradicionais e que
funcionam naquela comunidade, por isso as posturas vão ser diferentes e tem de
se atender a isso.
A Igreja também se
tem tornado mais exigente com os candidatos que aceita para ordenação?
Nós procurámos, nos últimos 30 anos as pessoas que vêm para
o seminário são pessoas que têm inquietações vocacionais e que têm atracção
pelo ministério sacerdotal. Não vêm para aqui porque querem estudar, ou porque
tiveram um desgosto amoroso, ou porque são o filho mais novo e porque a vida
clerical podia ser uma alternativa. Isso tudo mudou com o concílio Vaticano II.
Depois, nós procuramos que, prévio à entrada para o
seminário, haja um acompanhamento feito ou pelo seminário ou pelas estruturas
da diocese que estão encarregues disto, seja os pré-seminários, seja a pastoral
das vocações, de modo a aferir se de facto às motivações são correctas.
Às vezes ainda nos aparecem pessoas a bater à porta a pedir
para entrar e nem baptizados são. Ainda há pouco tempo esteve aí um rapaz que
não é baptizado, mas que achava que na fase da vida em que está, podia ser
interessante. Ainda aparece isto. Mas nos casos normais fazemos um
acompanhamento por forma a perceber se há condições para entrar.
Nos últimos anos a Igreja tem sido abalada pelos escândalos de abusos sexuais por parte de
sacerdotes. É possível detectar futuros infractores nesta fase do seminário?
Espero que sim! Temos duas ferramentas fundamentais para
isso. Na diocese de Lisboa, há 20 anos que fazemos uma coisa que agora vem
recomendado pela Santa Sé, que é o rastreio psicológico e o acompanhamento
psicológico.
Portanto o seminário actualmente tem uma psicóloga, que
submete todos os seminaristas a uma bateria extensa de testes que têm dois objectivos
fundamentais: Primeiro, traçar o perfil nas áreas fundamentais da pessoa, desde
a área cognitiva à área afectiva e sexual, de modo a que possamos interagir e
formar de uma maneira mais adequada. Depois, os testes têm também o objectivo
de detectar algum desvio psicológico que possa haver, não só nessa área, mas
noutras também, doenças psiquiátricas que possam aparecer.
Quando detectamos algum caso em que há algum caso de traços
objectivos de desvio patológico, e devo dizer que em 12 anos no seminário nunca
nos aconteceu ter algum caso de desvio sexual, graças a Deus. Se há um caso de
desvio patológico, isso é veemente, este tipo de educação implica um equilíbrio
humano que não se compadece com esses desvios.
Mas pode acontecer também haver desequilíbrios
circunstanciais, são etapas do crescimento, e nesses casos a psicóloga também
acompanha durante o tempo que for preciso, em processo psico-terapêutico o
desenvolvimento daquela pessoa, em diálogo com a equipa formadora.
Esta ferramenta tem sido de imensa utilidade, e para os
seminaristas também tem sido, têm tirado imenso proveito.
Depois há uma segunda ferramenta que é o nosso
acompanhamento directo, personalizado, de todos os dias, onde a preocupação de
analisar a maturidade afectiva, a universalidade afectiva, a capacidade de
relação com os dois sexos, a capacidade adequada de estar com os dois sexos, a
normalidade das atracções e dos envolvimentos afectivos com o sexo oposto são
tidos em conta.
Pode acontecer, também nestes anos ainda não aconteceu, que
haja algum caso que seja conhecido externamente. Alguém que entra e que na sua
terra é conhecido por ter uma tendência que não condiz. No processo de
encaminhamento e de formação, o contacto com os priores permite também
complementar esse rastreio.
Recentemente houve
também indicações de Roma no sentido de que homens com tendências homossexuais
não deviam ser ordenados. Já lhe aconteceu ter que expulsar seminaristas por
essa razão?
A instrução indica, aliás, como tem sido comum aos estudos
de psicologia e daqueles de que nos socorremos, que o desenvolvimento
homossexual tem na sua génese uma destruturação na capacidade da relação com os
opostos. E dizem até os dados estatísticos que há instabilidades tanto nos
relacionamentos, como na gestão de situações de grupo, quer na gestão de
situações de tensão entre pessoas que, para um homossexual, é mais difícil.
Portanto a indicação da Santa Sé é que, para uma vida destas
em que se pede celibato, e a implicação disso que é a continência sexual, em
que se pede uma relação universal, abrangente, capaz de ser simultaneamente
próxima, sem ser absorvente, com as pessoas, pensa-se que o perfil de um
homossexual não é o mais indicado para esta vocação.
Aqui no patriarcado nós já tínhamos essa indicação antes de
vir a instrução, portanto quando nos aparece um caso desses, procuramos
encaminhar a pessoa de forma a, por um lado, e essa é a primeira preocupação,
de integrar o que possa ser a sua tendência homossexual, e depois de perceber
como é que ela se há-de se situar em termos vocacionais, e quais podem ser as
opções vocacionais para uma vida como a dela.
O celibato é uma
vocação, ou é algo que se possa educar num futuro padre?
É uma vocação que precisa de ser educada. O celibato não é
uma coisa natural, se fosse natural, não podíamos escolher essa pessoa. Se uma
pessoa for espontaneamente celibatária, se não tiver capacidade de atracção
pelo sexo oposto, se não tiver capacidade de relação com o sexo oposto na
normalidade de homem/mulher, alguma coisa está mal na sua estrutura
psicológica, afectiva, sexual. Alguma coisa não está equilibrada, o que não a
indicaria para uma vocação destas.
Portanto o celibato é sem dúvida um dom de Deus, um
chamamento de Deus em ordem a uma vocação específica que tem a ver com o
serviço às comunidades. Qualquer vocação precisa de educação. Precisa de uma
resposta da pessoa que a vá fazendo socorrer-se dos meios necessários, dos
crescimentos necessários para corresponder com a sua humanidade àquela vocação.
Não me parece que seja possível educar para o celibato uma
pessoa que não tenha de todo vocação. Pode-se educar uma pessoa para ser
celibatária no sentido formal, mas aqui o celibato no sacerdócio é um homem que
se põe de coração inteiro para o serviço das comunidades. O problema do
celibato não é só a continência sexual, “Aquele homem vai ser impecável, não se
vai meter com mulher nenhuma”, não, aquele homem vai ser celibatário porque o
coração dele, os sentimentos dele, a vida dele é para consagrar às comunidades
que apareçam, portanto a vocação do celibato neste caso é uma vocação para dar
mais, para amar mais. Isso só se educa como dom de Deus, isso não se tem se
Deus não concede, essa capacidade de amar, é impossível.
Como é que se explica
a um rapaz que quer ser padre que, afinal, não poderá ser?
Para mim o mais difícil não é dizer… Se eu tenho que dizer a
um seminarista que não, de todo, especialmente se ele tiver muito concentrado
ali… O que é raro acontecer, porque vamos fazendo um acompanhamento que vai
tornando claro o que são capacidades, o que não são capacidades, dimensões mais
sintonizadas com isto ou não.
O mais difícil é ver uma pessoa que podia crescer e não
cresce. Que poderia desabrochar e não desabrocha. Que podia ser brilhante e é
só mediano. Ou, nesse caso, ver sair um seminarista porque foi a opção mais
fácil. Isso é que custa.
Já saíram seminaristas que deram tudo o que tinham para dar,
e perceberam que esta foi uma experiência boa, mas a vocação é o matrimónio… Óptimo.
Uma pessoa que não dá tudo o que tem é uma pessoa que não é inteiramente
pessoa, isso é o que custa mais.
Em relação ao seu
trabalho no seminário, ao longo destes anos, qual foi o ponto mais alto e qual
o ponto mais baixo?
Não sei dizer… Todos os anos têm pontos altos e pontos
baixos.
Os pontos altos são os pontos onde a nossa intervenção gera
realmente crescimento, onde as insistências, as atenções, geram crescimento
fazem aquela pessoa desabrochar, mergulhar mais seriamente no mistério de Jesus
Cristo, abrir o coração e dar-se. Isso, graças a Deus, acontece todos os anos,
porque todos os anos temos pessoas aqui em etapas diferentes do processo.
Os pontos mais baixos, para mim, são os pontos da minha
fraqueza, do meu erro, e no exercício aqui do ministério os pontos mais baixos
são os das apostas falhadas. A gente insiste, insiste, ou puxa, puxa e não deu.
Ou só deu metade do que podia dar… São pontos baixos. Claro que, como se
imagina, numa vida de gente em casa há pontos baixos que têm a ver com as tensões
vividas quer pessoalmente quer comunitariamente, com algum problema que houve
com este ou com um grupo, e isso também acontece de vez em quando.
Nestes anos houve aqui dois momentos que me parecem muito
interessantes. Um foi no ano 2001, começarmos com a aventura de instituir o ano
propedêutico, redefinindo a organização pedagógica do seminário, integrando o
ano propedêutico. Isso correspondeu a dois anos prévios de estudo, e debate e
trabalho, e depois a implementação, e ver ao longo destes dois anos a
consolidação do projecto tem sido óptimo.
Depois, um outro ponto alto, ou interessante, foi o ano
passado termos encetado uma experiência para completar o processo de
discernimento vocacional de alguns que precisavam de uma distensão dos três
anos, termos integrado na vida paroquial três alunos, que passaram a viver com
dois priores, fazendo trabalho pastoral full-time, mas mantendo uma ligação de
estudo e relação com o seminário. Foi uma abertura para um formato diferenciado
que pode acrescentar valor.
Vivem em comunidade,
não faz falta um toque feminino?
Por acaso faz… Graças a Deus… Bom, somos trinta homens, 27 seminaristas
e 3 padres, e depois temos a Dona Benedita, que tem 101 anos, que foi
governanta do seminário toda a vida, e que é uma presença feminina já bisavó,
por assim dizer. Mas é uma presença feminina curiosa. Graças a Deus, como ela
mantém muita lucidez, permite-lhe catalisar os afectos dos seminaristas como
uma avó, e por outro lado fazer algumas intervenções de mulher, nas
apreciações, na sensibilidade, que é giro. Mesmo a nós padres às vezes
chama-nos atenção para algumas coisas.
Depois temos as empregadas, que tratam das coisas da casa,
as roupas as comidas, e essas coisas, que são senhoras. E depois, graças a
Deus, temos muita gente feminina que passa por cá. A professora de música é uma
senhora, a professora de jornalismo é uma senhora. Há muitas pessoas que são
acompanhadas por padres aqui do seminário ou que fazem parte de grupos que têm
relação com o seminário, e que passam por aqui, e por isso é muito frequente
termos ou à refeição, ou no bar, ou em reunião senhoras ou raparigas, ou o que
for. Portanto vai havendo aqui um certo contacto com o feminino, para além de
que os universitários têm raparigas de quem são colegas, e os do propedêutico,
no trabalho apostólico que têm, têm contacto com raparigas.
Em permanência, gostaríamos de ter uma governanta que fosse
assim uma espécie de mãe da casa. Mas como ainda não nos apareceu a pessoa com
o perfil certo, porque implica alguma disponibilidade, e uma maturidade humana
e espiritual, não temos. Gostávamos de ter outra D. Benedita.
Nunca teve uma paróquia,
faz-lhe falta um trabalho mais pastoral?
Não sei dizer se me faz falta ou não. Não penso muito no
assunto. Procuro estar concentrado no seminário e nas coisas que tenho para
fazer para lá do seminário. Não sinto falta no que diz respeito ao contacto com
a diversidade de pessoas. Tenho as equipas de casais, tenho muitas pessoas que
acompanho pessoalmente, trabalho no sector de animação espiritual da diocese e
tenho a escola de formação que implica muitas coisas de formação com leigos e
com todo o género de pessoas, por isso essa coisa que podia acontecer, falta de
contacto com gente noutro estádio de vida, com outro tipo de preocupações, não
acontece graças a Deus, por isso não sinto falta de paróquia.
Até porque o trabalho num seminário é um trabalho muito
específico, com um conjunto de limitações humanas, está aqui, não tem a
flexibilidade que um trabalho de paróquia tem, mas é um trabalho que
progressivamente se vai apurando e de que a gente vai aprendendo a gostar. E
actualmente gosto imenso de estar aqui, por isso não penso muito no que seria
se fosse uma paróquia. Eventualmente poderá acontecer, o Sr. Patriarca
mandar-me para uma paróquia e presumo que vai ser divertidíssimo.
Acompanha muitos
casais, seja de namorados, seja casados, porque é que é tão procurado por estas
pessoas?
Não sei dizer se tenho vocação para isso. Cresceu comigo,
nestes anos de sacerdote, muita gente vir procurar-me para acompanhamento
individual, para discernir coisas. O acompanhamento nos namoros e preparação
para o casamento decorreu daí, porque as pessoas que eu acompanhava me pediam
ajuda específica.
Na preparação para os casamentos houve um episódio
engraçado, porque num mesmo ano casavam sete casais e quase todos eram
acompanhados em direcção espiritual por mim. E portanto desafiaram-me a fazer
ao longo desse ano um CPM personalizado para eles, uma vez que os conhecia e
portanto nesse ano fiz um processo, montámos um processo de preparação imediata
para o matrimónio, passando por uma série de temas e objectivos a cumprir, e
essa ferramenta ficou, e tenho-a aplicado quer em grupos mais pequenos, quer em
forma personalizada em outros casais, e isto é como em tudo, vamos apurando a
sensibilidade ao que está bem no casal, o que faz falta, o que não faz, o que é
que são as etapas de crescimento em que é preciso apostar, a experiência
vai-nos trazendo isso, e tem acontecido.
O que faz nos tempos
livres?
É muito pouco tempo livre, muito pouco. No muito pouco tempo
livre, um bocadinho de leitura, alguma coisa que vou tendo como leitura de
cabeceira. Aí especialmente nas férias, recupero o tempo perdido no que diz
respeito a isso. Algum tempo de passeio, de sair um bocado para dar uma volta
com os amigos, e depois umas coisas normais, um ou outro dia para ver o
Sporting, um ou outro filme de cinema, uma ou outra coisa de arte mais
interessante…
No Verão quando tenho tempo, porque às vezes no Verão é
quando faço umas coisas extra para as quais não tenho tempo no ano lectivo, o
descanso continuado, que é óptimo para mim, ficar uma semana no Alentejo,
metido num sítio tranquilo, sem fazer nada, o que muitas vezes faço com colegas
padres, ou então fazer uma viagem, ir a um destino, conhecer, é uma coisa que
me descansa imenso, ir ver outras cores, outras formas.
O que é para si ser
padre?
Para mim é uma experiência muito dolorosa e muito feliz. E
explico porquê. Porque me tem chamado a viver ao limite de mim como pessoa e ao
limite do que sou capaz de dar e do que sou capaz de receber de Deus, e
portanto nisso tem sido uma experiência por um lado muitíssimo feliz, de
encontro às maravilhas do que Deus faz nas vidas das pessoas, da forma como
Jesus é capaz de mudar a vida de uma pessoa, o coração de uma pessoa, e para
mim é surpreendente como Jesus é capaz de fazer isso através de um gajo como
eu.
E tem tido momentos de sofrimento porque amar dói. Há aqui
umas medidas de amor que implicam deixar para trás coisas que eu gostava ou uns
formatos que para mim eram mais confortáveis, e implica um debate com a minha
fragilidade e com o meu pecado, que às vezes é dolorosa.
Estar no meio de um ministério tão grande, estar no meio da
vida das pessoas que é encontrar em mim coisas mesquinhas, menores, é um debate
complicado. Para mim tem sido muito extraordinário o milagre que é poder estar
no meio da vida das pessoas, o sacerdote tem o privilégio de poder estar na
intimidade das pessoas, no santuário mais interior das pessoas, e aí ser
condutor. Isso para mim é extraordinário.
Depois, para mim também tem sido a graça de celebrar missa
todos os dias, de ir mastigando mais seriamente o Evangelho de Jesus e de ver
que aquele Evangelho faz efeito, quando ele é dado e recebido, faz mesmo
efeito. Tenho, nesta parte do trabalho da formação sacerdotal, tenho sempre uma
interrogação e uma inquietação. Os padres nos próximos 30, 40, 50 anos também
vão ser o que eu fiz.
Epá, espero que Nosso Senhor não me cobre muito, vamos ver,
é uma coisa muito séria. Às vezes aqui em casa falamos disso, uma parte deste
clero vai ser o que a gente fez… Fazemos o que podemos.
“Se as autoridades estivessem à procura de cristãos para
matar, haveria provas suficientes para te condenar?” Ou, posto de outra forma: “A
tua fé cristã é do género que vale a pena perseguir?”
Às vezes ouvimos dizer que os “mártires cristãos” não
eram executados por causa da sua fé, mas por outras razões, e surge então a
questão de saber se devem ou não ser considerados mártires pela fé. Assim, e
pegando num exemplo contemporâneo, se Edith Stein foi executada por ser judia,
e não por ser cristã, devemos dizer que ela é uma mártir cristã? De igual modo,
se os primeiros cristãos foram executados não por causa das suas convicções
religiosas – sobre as quais, ouvimos frequentemente dizer, os romanos eram
“indiferentes” –, mas por constituírem uma suposta ameaça ao Império Romano,
então devemos dizer que são mártires cristãos, ou apenas descrevê-los como
cidadãos romanos problemáticos?
É verdade que os romanos não estavam particularmente
interessados em saber que deus, ou deuses, uma pessoa adorava, ao contrário do
Império Helenista que os precederam. Um desses imperadores helenistas, Antíoco
IV Epifânio, (c. 215 AC – 164 AC) tornou-se famoso, por exemplo, por obrigar os
judeus na Judeia a comer carne de porco e a adorar uma estátua de Zeus que
tinha mandado colocar no Templo de Jerusalém. O resultado foi uma revolta
liderada por Judas Macabeu e os seus filhos – a Revolta dos Macabeus. Com os
romanos, pelo contrário, podia-se fazer o que bem se entendesse no que diz
respeito a crenças e adoração privadas.
Mas não é verdade que os romanos fossem completamente
indiferentes às crenças religiosas. Por muitas razões, ligadas à expansão
romana para o oriente e a centralização do poder romano num único imperador, a
regra em muitas administrações romanas no final do segundo século era a
“adoração do imperador”. E qualquer religião, tal como a dos judeus e dos
cristãos, que não permitisse aos seus fiéis reconhecer o imperador como Deus e
como máxima autoridade em todos os assuntos, era um problema, aos olhos de
Roma.
Uma “fé” que permanecesse no interior da Igreja ou do
templo e que não maçasse os líderes políticos de qualquer forma não era um
problema. Mas se alguém tentasse ensinar verdades que incomodassem os planos
dos governantes ou procurasse convencer as pessoas a recusar esses planos por
objecção e consciência, essa pessoa dificilmente escaparia a perseguição por
muito tempo. As Igrejas ou os templos que estavam envolvidos em “adoração” da
mesma forma que os templos pagãos em Roma – isto é, que praticassem rituais e
sacrifícios elaborados, mas não tivessem grandes ensinamentos em termos de
doutrina ou moral – tinham muito pouco a temer das autoridades romanas.
Da mesma forma hoje, como tantas vezes foi o caso ao
longo da história, desde que se procure apenas “liberdade de culto”, pouco há a
temer da maioria dos governos. Podemo-nos envolver nos rituais que quisermos
desde que no interior dos templos ou das igrejas. É quando essas crenças
começam a chegar à praça pública, como uma fonte que jorra e transborda, que os
chefões se começam a preocupar. Desde que a sua “religião” se preocupe apenas
com o outro mundo, a maior parte das pessoas não quer saber se adora Zeus, Javé
ou o deus dos peluches.
Os media actuais que criticam os ensinamentos morais da
Igreja Católica e exortam o Governo a manter firme o “muro que separa a Igreja
e o Estado” não têm qualquer problema em publicar horóscopos diários – apesar
de a crença na astrologia ser claramente religiosa – simplesmente porque sabem
aquilo que todos nós calculamos: Nomeadamente, que as pessoas que lêem
horóscopos e mesmo as que os levam a sério, não representam qualquer ameaça
para o governo. Os horóscopos não têm qualquer conteúdo moral e é por isso que
não podem constituir qualquer ameaça para ninguém em posições de poder. É por
isso que raramente vemos pessoas a serem perseguidas por se envolverem em
astrologia. É considerado seguro, uma tolice inofensiva.
Martin Luther King - Perseguido pelas suas crenças?
Mas uma religião que diz que todas as leis e acções
executivas do Governo devem ser julgadas segundo uma autoridade maior; que
quaisquer leis que falhem este teste devem ser resistidas; e que a “boa cidadania”
deve ser julgada precisamente pela resistência que se opõe ao governo neste
sentido, essa sim é perigosa. Religiões destas raramente escapam à perseguição
muito tempo.
Por isso, como se vê, os debates sobre o “martírio” na
Igreja primitiva e sobre a “liberdade religiosa” nos nossos tempos, têm
bastante em comum. Se por “mártir” falamos apenas de alguém executado por
prestar culto de determinada forma, então muitos dos primeiros cristãos não
eram mártires. Se, contudo, entendermos que o termo abrange as pessoas
executadas por se recusarem a reconhecer nos governadores romanos, ou no
imperador, a autoridade máxima sobre assuntos humanos, então houve muitos.
As autoridades do sul dos EUA não perseguiram Martin
Luther King porque, por ser baptista, ele se recusava a baptizar crianças. No
que diz respeito à prática religiosa, ele era livre de fazer o que entendesse.
Puseram-no na prisão porque a sua mensagem de liberdade estava a chegar às
ruas, na forma de protestos contra as leis racistas do Sul.
É curioso que nos nossos dias tantos daqueles que
gostariam de se associar ao legado das lutas pelos direitos cívicos revelem vontade
de fechar essa mesma porta entre a Igreja e a Praça Pública. Estas pessoas são
como o pai de Santa Perpétua, que a aconselhou, enquanto aguardava ser executada,
a rejeitar Cristo publicamente, apenas pelas palavras, e que ninguém queria
saber o que ela fazia em privado. A cultura dela, como a nossa, conhecia apenas
um tipo de tolerância. Mas o seu espírito era como o de Cristo, que conhecia
uma liberdade mais verdadeira que aquela que pode ser dada ou retirada pelos
chefes das nações.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 29 de Julho de 2015 em The Catholic Thing)
Full transcript of Nuri Kino's explanation about the situation in Syria, where 250 Christians have been kidnapped. News report, in Portuguese, here.
What information do you have about the
kidnappings in Al-Quarayatayn?
Isis
went in to the city and about 1500 people managed to flee. Most of them came to
the churches of Homs. We spoke several times to the churches and the Syriac
Orthodox Bishop managed to make a list of missing people. He and volunteers,
clergymen and civil volunteers registered everyone that fled and asked them if
they had any missing neighbours, friends or family members. Then they went
through again and after several interviews with those who registered they
completed a list of 250 missing people.
These 250 are all Christians?
They are
all Syriac Orthodox or Syriac Catholic.
Could there also be people from other
minorities who have also been kidnapped?
That we
do not know, because we only spoke with the churches.
But was the city of Al-Quarayatayn majority
Christian?
Nearly
only Christians.
There has been no information on the part of
the kidnappers, no demands...
No. The
only thing we know is that their cell phones have been switched off. So when
relatives, family members and the churches try to reach them there is no
answer.
This is not the first time there has been a
mass abduction. The most recent one was near Hassakeh...
From the
Khabour area there are still 222 people abudcted.
Do you know if they are alive?
Well
those that have been released have told us about their whereabouts, that women
and small girls and boys and men were separated from eachother, and the women
were held in a small room and had to schedule their sleeping. That is all we
really know now.
At the time there were people who had been
released and said they had been ordered released by Shariah judges...
That
information has not been reliable, some said that, others said they had been
released because of health issues. Mostly elderly people.
The fact that they were not just executed, even
though they were a burden for ISIS, may be a sign of hope, no?
Definately.
But we also know from kidnappings from Mosul or the Nineveh, of at least one
Assyrian woman, and an Assyrian kid who were given to ISIS members as gifts. So
it’s devastating, and people keep fleeing... Those who managed to flee from Khabour
went to Hassekeh, and then from Hassekeh to Qamishli, from Qamishli back to Khabour,
where there were a lot of mines. Now they don't know where to flee. It keeps
repeating itself, it’s been repeating itself since 1915, then 1933 and so on,
and now, since 2004 we keep reportiong and reminding the world about this
genocide, but no action is taken to save the
Christian/Assyrian/Chaldean/Syriacs/Armenians and other Christians in Syria and
Iraq.
I don't
know, I have no words besides that one lion was killed and the whole world was
furious, now all these people are getting kidnapped and slaughtered, why isn't
the world furious about that? Why? Somebody needs to give an answer.
And its
not just Christians, it’s also Muslims. ISIS is getting more and more violent,
against everyone.
One year ago Mosul fell and the world woke up
to ISIS. Did you imagine that one year later we would be in the same situation?
Yes. We
also actually predicted Mosul, and the Nineveh plains. For years, in both DC
and Brussels, we reported about it, we feared it. So it’s very sad and
horrible, terrifying, but it’s not surprising.
You live in Sweden, where there is a big
Assyrian community. Are there relatives of those who were kidnapped?
I will
actually see one of the relatives of those from Habour, she has 42 of her
family members kidnapped, and I spoke to a young man and a lady today who have
relatives missing from the Homs area, but they are not sure if they are
kidnapped or not, because they are not on the list that they saw.
Transcrição integral da entrevista a Joana Tinoco de Faria, psicóloga do Apoio à Vida, uma instituição que ajuda mulheres grávidas em dificuldades. Pode ver a reportagem aqui.
Casos com os da Vanessa, de meninas a
engravidar aos 12 anos ou até menos, são comuns?
Comuns não, não na
nossa realidade. Normalmente sabemos quem são esses casos. A partir dos 14 para
a frente é mais comum.
Uma rapariga assim tem capacidade mental para
levar a cabo uma gravidez e assumir a maternidade?
Em termos de
maturação, mesmo ao nível do desenvolvimento cognitivo, do desenvolvimento da
inteligência – que depois se repercute no desenvolvimento emocional, e na
capacidade emocional que terá – há de facto algumas coisas que precisam de
muita ajuda para crescerem ao mesmo tempo que as exigências da maternidade
interferem com esta fase do crescimento.
Se tem capacidade
mental? Acho que dizer que não tem também não é justo. Sobretudo porque depois
a cultura influi muito, e nós lidamos com culturas em que isto pode ser uma
realidade mais próxima e os papeis sociais que se desempenham, a capacidade
mental adapta-se a este tipo de circunstâncias. Numa cultura como a nossa, e
numa sociedade como a nossa, em que se privilegia mais o facto de a criança
viver a sua infância, eventualmente estará menos preparada para desempenhar
este papel e é mais exigente do que em culturas em que a maternidade é mais
precoce.
Quando fala de culturas em que a maternidade é
mais precoce... Trabalham muito com pessoas de ascendência africana, é isso?
Sim.
Portanto é diferente trabalhar com
pessoas dessas comunidades ou de outras?
É muito diferente.
Não só a forma como a maternidade é ou não vivida e valorizada, socialmente e
culturalmente, é totalmente diferente. E depois na forma como somos aceites ou
não, como intervenção externa, isso também é muito diferente, por isso temos de
nos adaptar à cultura da qual nos aproximamos.
Levou tempo a perceberem isso?
Leva tempo a perceber
e é importante estarmos atentos. Porque para nós às vezes é tão óbvio,
determinadas formas de fazer e de desempenhar papéis, que percebemos que
estamos tão longe de quem nos estamos a aproximar que o nosso ponto de partida
tem de ser outro, tem de ser o da pessoa que temos à frente, perceber qual é e
depois fazermos o caminho em conjunto.
Quando lhe perguntei se haveria capacidade
mental, achei interessante que respondeu que há coisas que "precisam de
mais ajuda", dando a entender que é possível chegar-se lá. O que ouvimos
dizer muitas vezes é que nestes casos a melhor solução será quase
invariavelmente o aborto. Não concorda?
Não concordo
sobretudo com o estanque que é essa resposta. Sobretudo porque há muitos
factores que influenciam. Isto ser matematicamente uma resposta, para mim não
faz sentido. Temos de perceber as circunstâncias em que a pessoa existe, é,
vive, cresce e a forma como a família apoia ou não apoia, que é verdade que
para uma criança de 12 anos é um desafio enorme, ninguém tem dúvidas. Que não é
possível desempenhar esse papel… Acho que de acordo com a nossa experiência não
podemos dizer que não é possível.
Quando uma rapariga nova, numa situação
complicada, procura um aborto, o que é que lhe está a passar pela cabeça?
É muito diferente o
que uma rapariga desta idade pode pensar, ou de outras idades. Porque esta fase
de desenvolvimento é caracterizada por um egocentrismo e até mesmo a nível de
inteligência o pensamento é muito autocentrado. E por isso há a valorização,
tipicamente, das tarefas que são normais nesta época do crescimento, a
brincadeira, os amigos, as tarefas escolares, a forma como lidam, ou não, com a
família. E normalmente isto é um dos factores que influi muito na forma como é
vivida uma gravidez, ou até nas razões do aparecimento da gravidez, porque
muitas vezes as gravidezes surgem, psicologicamente, como um grito
inconsciente, pelo menos na minha perspectiva, de autonomia e até de uma
construção de um projecto de família desfasado – isto é, fantasioso – mas um
grito por uma família própria, um porto de abrigo, em famílias em que isto se
calhar não existe.
Nestas idades também? Ou sobretudo mais tarde?
Da nossa realidade,
lidamos muitas vezes com famílias que são lugares de afecto insuficiente e
qualquer criança sente isso. E depois, para além disso, são zonas em que há subculturas
em que a maternidade na adolescência de alguma forma é aceite, existe, há
sempre casos que existem e que se conhecem, e portanto nestes contextos – e
esta realidade é próxima daquela em que actuamos – isso existe e acontece, ou
seja, há uma repetição de um modelo que mesmo que não seja consciente – e não é
de todo – inconscientemente procura-se. E muitas vezes as mães destas raparigas
foram mães muito novas e portanto são modelos que se acabam por se absorver,
sem crítica, e portanto reproduzem-se sem ter consciência que se está a
reproduzir. Sim, é possível isto acontecer nestas idades.
Depois, obviamente,
a forma como se vive a sexualidade… Como muitas vezes os pais são
pré-adolescentes que não têm muitas balizas a vivência da afectividade é feita
de forma mais desordenada e acontece uma gravidez em contextos completamente
inesperados, tanto que muitas vezes não há o reconhecimento dos sintomas nesta
idade, porque é de tal forma uma coisa fora de âmbito que nem sequer se
reconhece. Nestas idades acontece isto com alguma frequência.
Existe alguma noção dos eventuais efeitos
negativos psicológicos de uma decisão dessas?
Não há. É uma fase
do desenvolvimento em que há um egocentrismo e uma síndrome de imortalidade, em
que se pensa que acontece aos outros mas não a mim. É muito difícil
conseguir-se esta capacidade do que vai acontecer nesta fase da pré-adolescência.
É praticamente inexistente. É viver o hoje, é resolver o que o hoje me
apresenta e é também uma forma de viver muito autocentrada, muito à volta do
que "me apetece".
Paradoxalmente acontece-nos,
e não é um nem dois – só vou falar da nossa realidade, não vou generalizar
porque não tenho dados para isso – acontece muitas vezes estas raparigas, no
discurso, não quererem abortar porque – e isso também tem a ver com essa perspectiva
do "eu" e do egocentrismo – porque é "o meu bebé" "o
meu filho" e é alguém que "a mim me vai dar" o afecto que de
alguma forma não tive. E portanto eu acho que nesta perspectiva, e da minha
experiência, isso acontece-nos com frequência.
Se calhar as
situações que eu acompanhei em que houve dúvidas em relação à gravidez ou em
que eu acompanhei essa fase, não é tão típico nesta etapa de crescimento, mas
mais velhas. Se ponderam abortar nesta etapa tem sobretudo a ver ou com a
pressão da família, o que acontece com frequência. A família tem aqui um peso
fundamental, sobretudo nestas idades, e normalmente é a família que não vê uma
maternidade adolescente como uma possibilidade na vida daquela rapariga.
Claro que também
existe a adolescente que quer abortar, claro que existe, se calhar não passou
tanto por mim... Mas tem a ver sobretudo com as dificuldades que isso lhe traz
ao dia-a-dia concreto, aos objectivos concretos do dia-a-dia, do querer sair
com as amigas, do não querer ter essa responsabilidade. Mas não há muita
capacidade de amadurecer este tipo de decisão, portanto normalmente a família
tem um impacto muito mais preponderante nesta etapa do desenvolvimento do que
numa mulher mais adulta.
Nesses casos, falando nomeadamente da pressão
da família, pode haver a ideia de que o aborto resolve e o problema desaparece.
Mas isso pode não ser assim...
Pode não ser assim.
Acho que a
mentalidade é que parece uma resolução, o chamado "desengravidar",
isto é, "engravidaste, mas vamos 'resolver' o assunto" e é
frequentemente assim que é abordado este assunto. Nem sequer se fala em aborto
ou interrupção, ou fala-se quando é estritamente necessário, grande parte das
vezes fala-se do assunto e é "aquele" assunto.
Acho que a família,
grande parte das vezes acredita que está a fazer o melhor, porque é mesmo
devolver à criança aquela infância, é essa a mentalidade. Resta saber se passar
por uma experiência como o aborto, ainda que não se tenha a verdadeira
consciência daquilo que se está a fazer – porque em termos maturacionais não é
possível ter a consciência do que é – resta saber se este impacto, mais tarde,
não se vai sentir de outras formas. Na nossa experiência, de alguma forma temos
tido, mais tarde, mesmo a nível de sintomas mais somáticos, formas de somatizar
o mal-estar. Aparece também, muitas vezes associado a situações de abortos
anteriores, porque não foi possível elaborar a nível psíquico a experiência e
portanto o corpo acaba por tentar elaborar.
É a forma que a
família tem, muitas vezes, acha que está a devolver a vida àquela adolescente,
a vida que tinha, de não ter essa preocupação extra. Mas a nível do
desenvolvimento posterior há muitos pontos de interrogação do que isto traz de
facto à vida desta jovem.
E temos algumas
histórias de algumas raparigas, que se rebelam contra a família, porque não
querem mesmo [abortar]. Quando esta forma de viver, mais virada para si, pode
ser vivida, e temos alguns casos assim, de tal protecção de si e do bebé que é
seu, que se rebelam contra a família e até se põem em risco, porque no fundo
agem em fuga para a frente para se protegerem quando estão a ser mesmo
pressionadas e há situações em que fogem de casa porque querem manter a
gravidez. Temos alguns casos em que isto aconteceu.
O que é que se diz a uma rapariga com tamanha
imaturidade, ou até mais velha, para a encorajar a manter a gravidez?
Se nós pudéssemos
falar com uma rapariga nessas circunstâncias, em primeiro lugar ouvi-la. Nestas
idades, exactamente por esta insuficiência de maturidade, normalmente não se
ouve muito aquilo que a jovem quer.
Ouvi-la, perceber,
ouvir de si o que ela valoriza, a vida naquela etapa, que significado atribui a
essa gravidez, em que circunstâncias surge e qual é o significado e projecto
que ela pode ter, ou não, com esta gravidez.
Isto, claramente,
numa primeira abordagem. Depois depende da vontade dela, que ela expressar.
Acho que é muito importante falar sobre aquilo que é o aborto. É importante que
dentro da maturidade que a pessoa tem, lhe seja explicado aquilo que é o
procedimento e o que vai implicar para ela. Isto seria a forma de acolher e
informar.
Em última análise,
dizer-lhe que a decisão é sempre acompanhada e que ela não está sozinha,
independentemente de poder haver a ideia de que se ela decidir para um lado vai
ficar sozinha. Isto tem um peso muito grande, porque a ameaça de ficar sem
ninguém pesa muito, em prole de uma coisa tão desafiante e tão difícil que é
uma gravidez nestas etapas.
Por isso mostrar
este suporte e dizer que se, de facto, há vontade de prosseguir, há vontade de
aceitar esta ajuda, mostrar que não está sozinha e que é possível fazer este
caminho.
Uma das coisas que
por acaso se tem mostrado muito útil na nossa experiência, para as pessoas que
acompanhamos, é tentar que esta jovem fale com alguém que tenha passado por uma
situação semelhante. É sempre diferente alguém que passou por uma situação e a
vida entretanto encarregou-se de seguir, e há raparigas que seguiram com as
suas vidas e passaram alturas de crise e reconstruíram a partir daí, e isto
pode ajudar ao sentimento de solidão de que sou a única que passo por uma coisa
destas e preciso mesmo de abortar porque a família pressiona, ou não vou ser
capaz, portanto sim, muito suporte, informação consoante o grau de maturidade e
perceber muito bem, tornar-lhe claro a vontade dela, muitas vezes a vontade
está completamente contaminada por aquilo que foi ouvindo. Portanto é preciso
perceber, dentro da jovem que é, tentar fazer vir à tona aquilo que ela própria
quer.
Trabalhando neste campo, conhece casos de
raparigas que se tenham arrependido de ter os seus bebés?
Eu não
conheço.
E o contrário?
Sim. Algumas
daquelas que mais me marcam, em relação a este tema, são as que engravidam mais
tarde, pode ser anos depois, e voltam a procurar-nos e o pedido que fazem é
"eu só não quero voltar a fazer o que fiz, porque por isso não quero
passar outra vez".
E foram decisões
tomadas, às vezes, pelas próprias. Este pedido, que é, "eu não sei como é
que vou levar isto para a frente, mas não quero passar por esta situação outra
vez. E não é uma nem duas, são bastantes. Depois arranjam outros significados,
mas a única coisa que sabem é que não querem passar por aquilo outra vez.
Há uma história que
me marca muito. Uma vez fui a uma escola falar sobre a nossa intervenção a
nível social e psicológico, gravidez, maternidade... Não tinha a ver com o
tópico do aborto. Fui falar a uma turma e no fim, quando estava a sair, houve
uma rapariga que se aproximou de mim e que disse que gostava de falar comigo.
Fiquei meio atrapalhada, porque não estava a perceber bem o que queria. Ela
vinha assim meio de lágrimas nos olhos e disse-me: "Só lhe quero pedir um
favor: Que falem disto a mais gente. Porque se eu soubesse o que sei hoje, não
tinha feito o que fiz. Se soubesse que havia ajudas, eu não tinha feito o que
fiz".
Que idade é que ela tinha?
Tinha 17 ou 18, mas
tinha feito um aborto com 15/16 anos.
Isto foi das coisas
que mais me marcou, no sentido de perceber que é importante que as pessoas
saibam que existe ajuda, ajuda até no sentido de pensar e de ajudar, porque
agir em fuga para a frente e tomar decisões precipitadas, que é o que muitas
vezes acontece, não constrói nada.
Voltando ao caso da
Vanessa, este imprevisto na sua vida acabou por ser um pivot para ela dar a
volta por cima. A própria admite que de outra maneira dificilmente se teria
“endireitado”. Isso acontece muitas vezes? Pode-se dizer que é regra?
Que é uma
oportunidade para isso, não há dúvida. Resta saber como é que é agarrada e com
que apoio. Porque, que é muitíssimo desafiante, é. Ainda por cima com as
fragilidades da estrutura anterior, agora, não há dúvida – e a Vanessa é um
exemplo disso – que de alguma forma é como se a gravidez fosse um travão a si
próprio, uma tentativa de ser alguém, esta coisa mesmo da autonomia, do grito,
de agarrar na minha vida e fazer alguma coisa. Isto surge, e surge também em
mulheres adultas, com vidas mais complicadas e muitas delas falam nisso, mesmo
quando decidem depois abortar.
Tenho várias
situações, mesmo de mulheres que acabaram depois por abortar, que têm esta
percepção de que "posso fazer alguma coisa diferente com isto".
Para mim, é
claramente uma oportunidade e isso é reconhecido por muitas que passam por esta
situação, independentemente da crise ou da intensidade da crise que a gravidez
inesperada gera. Agora, que depois ela pode ou não ser agarrada e abraçada, e
construída como a Vanessa a construiu, isso depende de cada uma e do esforço,
do nosso trabalho, daquilo que da nossa parte depende, da família...
Na família a
reacção inicial nunca é a reacção final. Nós dizemos muito isto, só que dizer é
uma coisa, viver é outra. Viver com o pânico de que a família nos abandone...
não há chantagem maior que esta.
Por isso é uma
oportunidade, isto tenho claro.
Ainda acontece muito, as famílias dizerem
"ou abortas ou sais de casa?"
Sim. Estou no Apoio
à Vida há 10 anos e apanhei a mudança da lei. Agora acho que até é mais duro.
Agora só não abortas se não quiseres, portanto "quem és tu, para decidir
com esta idade, pôr-me este peso em cima" – porque ainda por cima está
dependente, estamos a falar de jovens dependentes dos pais.
Antigamente a família estaria a ser cúmplice de
violação da lei, enquanto agora...
Exactamente. A lei
está do lado da família que tem muitas dificuldades em ver isto como cenário
possível. Portanto a jovem nesse sentido, se quer prosseguir com a gravidez,
tem a vida muito mais dificultada.
Vou alargar, jovem
e mulher, porque das situações que acompanho é em qualquer idade, quando para
quem não quer assumir a responsabilidade, esta lei, se a mulher estiver dentro
do prazo das 10 semanas, está desprotegida se quer prosseguir. Está muito
desprotegida.
Portanto sim, acontece e acho que a pressão é mais forte desde a mudança da
lei.
Até porque a nível social isto tem repercussões. Uma vez fui falar a uma escola
em que numa turma de vinte e tal alunos não era uma possibilidade prosseguir
uma gravidez antes de ter uma vida estabilizada. Isto em termos de mentalidade
vai construindo a forma de pensar a vida. Sem dúvida que isto também contamina
e as pessoas estão imbuídas desta mentalidade e nesse sentido notamos que a
pressão da família é mais severa, e de formas até mais violentas por parte da
família e às vezes do pai da criança, porque é só a vontade dela que está em
causa. Antes era a lei, mas agora é só a vontade dela.
E nos casos em que não acontece? Em que
se vê repetir o ciclo vicioso de famílias desestruturadas, com a probabilidade
de a criança crescer na mesma situação… Mesmo aí sente que vale a pena o
trabalho que faz?
Eu não tenho
dúvida. Mesmo com tudo o que tenho visto - e tenho crescido muito com o
trabalho que desenvolvi aqui - porque acho que a nossa visão das coisas é muitas
vezes posta à prova, porque crescemos muito e voltamos... Até podemos olhar da
mesma forma, mas demos uma grande volta para olhar daquela forma outra
vez.
Eu não tenho
dúvida, ainda que a mãe e o bebé não fiquem juntos, e isto é difícil de explicar,
mas isto tem a ver também com a forma como... Ou seja, aquela etapa de
crescimento, para aquela mulher, são competências adquiridas.
Independentemente
da dificuldade que é a retirada do bebé (e não quer dizer que o bebé não volte
mais tarde para aquela família), aquela rapariga muitas vezes deu tudo o que
tinha e não conseguiu assegurar o que o bebé precisava, isto acontece, e é uma
dor enorme acompanhar isto. Porque ela deu tudo, dentro das suas circunstâncias
e da sua medida. Mas aquilo que ela deu, e o que cresceu com isso, já não lhe é
retirado. E não teria crescido, tendo em conta as circunstâncias, e
provavelmente, como a Vanessa dizia, e vemos muitas vezes isso, muitas vezes as
vidas vão-se degradando e repetindo ainda mais os modelos disfuncionais, se não
há nada de funcional que as puxe.
Portanto eu
acredito, e tenho visto, porque mesmo que às vezes as crianças são criadas pela
família alargada, ou a responsabilidade é de um familiar, ou de alguém próximo,
e estas raparigas continuam a ter contacto com o filho e muitas vezes o único
papel que se sentem dignas de ter é o da maternidade. E isso fá-las quererem
ser alguém, para depois dar o exemplo aos filhos. Que pena que seja a única
coisa que apele a essa dignidade que elas têm como pessoas, porque não é o
única, mas é o que elas sentem – mas que bom que haja uma.
Por isso acredito
que a linha não acaba, mesmo quando há um processo de retirada, porque ninguém
quer isso e ninguém deseja isso, mas a partir daí também muita história se pode
construir.
Também no caso da Vanessa, o pai da
criança é uma pessoa quase totalmente ausente da sua vida, e sempre foi. Que
importância tem a presença do pai em todos estes casos?
Na nossa
experiência – nesse aspecto temos muito caminho para andar – os pais estão muito
ausentes. Daquilo que me parece, estão voluntariamente ausentes, o que me
parece uma grande infelicidade, não só para as mães como também para as
crianças.
De alguma forma a
sociedade contribui para que estejam ausentes. Há-de haver aqui uma dinâmica que
promove esta ausência. Obviamente que as circunstâncias em termos sociais, mas
em termos de decisões, quando uma mulher quer prosseguir e o homem não quer,
assistimos frequentemente a uma desresponsabilização do homem, e a mulher arca
com as responsabilidades sozinha. Aqui o pai da criança não é tido nem achado,
até hoje, naquilo que toca à decisão de prosseguir com a gravidez.
Desresponsabiliza para um lado ou para outro, se um homem se quer
responsabilizar também não tem voz activa. Era importante aqui dar a cada um o seu
papel.
Há muito trabalho por fazer e mesmo em termos de sociedade. Da nossa realidade,
muitas vezes tentamos envolver os pais nesta perspectiva, e de trabalhar o
casal parental não só na atribuição de responsabilidades mas também de
gratificações, de os pais poderem assistir ao crescimento dos seus filhos e de
se poderem entusiasmar com isso.
Depende também dos papéis
culturais que os homens são chamados a ter como pais, isto também é muito
diferente nas diversas culturas. Portanto o que sinto é que daquilo que é a
nossa perspectiva, sem dúvida temos que fazer mais para envolver os pais, mas é
muito difícil. Se a nível de sociedade pudesse haver uma ajuda talvez os pais
se sentissem mais com esta responsabilidade de estar presentes e podia-se fazer
aqui qualquer coisa. Assim, sinto que remamos muito sozinhos. Por esta presença
do pai, quer quando o bebé está na barriga ou é uma decisão de prosseguir ou
não, acho que isto devia ser desde o início, porque é o que faz sentido.
Estamos aqui a falar muito dos efeitos
destas decisões sobre as raparigas. E sobre vocês, que as acompanham? Como é
que se “protegem”?
Proteger, acho que
não dá.
Acho que não dá e acho que não é o que nos é pedido. É óbvio que é importante
termos a distância suficiente para sabermos acompanhar melhor as pessoas, e
essa distância é sempre uma tensão entre os dois polos, porque não é um
equilíbrio estanque e às vezes sobrenvolvemo-nos ou subenvolvemo-nos, mas sem
dúvida o que hoje percebo é que para acompanhar pessoas em situação de crise, é
importante encontrarem do outro lado uma disponibilidade que lhes permite
abrirem-se, e nós temos de trabalhar isso cada uma em si, e acho que isso tem a
ver com o caminho pessoal de cada uma, de cada um dos profissionais que lida
com as situações, e depois em equipa termos um espaço – e aí acho que temos um
ambiente que nos ajuda muito a viver isto, porque vivemos estas situações muito
difíceis muitas vezes estamos todas a torcer e partilhamos muito isto, o que é
fundamental. Isso é muito importante.
Depois, um caminho
pessoal de perceber que se o outro não encontra em mim um lugar de
disponibilidade, não vai abrir e não se vai permitir fazer caminho com esta
companhia, porque não sente disponibilidade da companhia que encontra. Isso faz
toda a diferença, toda a diferença.
Proteger? Acho que
não é o que nos é pedido, e é importante isso. Porque os profissionais que
trabalham estas áreas têm muito esta lógica da protecção. Uma certa distância é
importante, claro, também para as nossas vidas pessoais, e até para as pessoas
que acompanhamos... Encontrar lugar na equipa para podermos pôr a nu até as
nossas fragilidades a lidar com o assunto, e depois temos o que é só nosso, que
temos de fazer sozinhos, querer fazer um caminho de amadurecimento pessoal,
para não endurecermos demais o nosso coração e perdermos essa disponibilidade.
Fala sempre no feminino... Não há aqui
muitos homens a trabalhar no dia-a-dia, pois não? E isso faz falta?
Faz imensa falta!
Os únicos homens
são o presidente e homens bebés... São as únicas presenças masculinas. Fazem
imensa falta, porque há uma complementaridade entre homem e mulher que é
fundamental. Quando o ambiente é demasiado feminino muitas vezes a
subjectividade impera. Do mundo feminino temos a subjectividade e o
envolvimento. É sem dúvida uma coisa maravilhosa, mas quando é demais, era
importante haver presenças masculinas que temperassem isso. Mas depois,
trabalhando com um universo tão feminino, também muito difícil e com questões
tão delicadas, temos muito esta questão. É uma altura tão delicada para as
mulheres e que tem de ser tratada com tanta delicadeza, que de repente a
presença de um homem quando estamos a discutir a amamentação e os mamilos
gretados e tudo o mais, de repente não é possível, ou pelo menos deixa as
jovens aflitas.
Questões mais práticas... O que fazem aqui
neste gabinete?
Aqui é o gabinete
de atendimento externo, que funciona em regime ambulatório. As famílias vêm cá.
O que temos aqui é acompanhamento social, psicológico, de inserção
profissional, aconselhamento jurídico e intervenção psicossocial em grupo, que
é uma das formas de intervenção que sentimos que tem um impacto importante na
vida destas mulheres, exactamente por esta experiência de percebermos que esta
experiência de outras pessoas que passaram pelo mesmo pode ajudar, então
criámos os grupos de mães que se acompanham desde o tempo da gravidez.
Portanto uma
rapariga chega aqui, está grávida e precisa de ajuda: É-lhe perguntado se quer
manter o acompanhamento em grupo, é inserida num grupo que está organizado por
trimestres de gestação e depois estas mulheres acompanham-se ao longo do tempo
da gravidez e maternidade e aquilo a que chamamos a fase de autonomia, em que
têm encontros quinzenais ou mensais, no tempo em que os bebés são mais
pequeninos, e têm formações muito ao nível daquilo que são as etapas que vão
vivendo, têm tempo de conversas de mães, para tirar dúvidas – e aqui nós somos
meros facilitadores desta troca de experiências, depois há um tempo de conversa
puxa conversa, porque para além de mães são outras coisas e por isso
conversamos sobre outros assuntos, e isto tem a ver com a promoção de
competências maternas e a promoção da rede de suporte, por isso para criarem
ligação entre elas e poderem apoiar e suportar-se nesta fase, e temos
experiências muito giras em que de repente uma vai visitar a outra e são elas
que nos avisam que nasceu o bebé da não sei quantas, e isto é fundamental,
porque há redes tão frágeis, e por redes tão frágeis é que muitas vezes surgem
os problemas.
É na tentativa de
prevenção de problemas que possam existir, nestas fases delicadas de saber como
faço com o meu bebé, porque se não tenho a quem perguntar vou começar a fazer
mal.
Quantas mulheres, por alto, é que atendem aqui
por ano?
Por ano chegam-nos
cerca de 300 a 350 mulheres, seja gravidez e maternidade. Chegam-nos mais ou
menos 300 mulheres grávidas novas por ano, ou seja uma primeira vez a pedir
ajuda. Com aquelas que vêm do ano anterior, abrange mais ou menos os 350.
Mas vocês não existem só para aquelas mulheres
com dúvidas, em crise. Pode haver uma mulher perfeitamente decidida a manter a
gravidez, mas que precisa de apoio de qualquer maneira...
Sim, sem dúvida.
Acontece-nos mais chegarem esse tipo de situações, infelizmente, do que as
mulheres com dúvidas. Esse é o nosso objectivo, chegar mais a quem tem dúvidas,
um bocado também em nome do apelo que esta rapariga me fez nesta escola, de
fazer chegar esta mensagem de ter um lugar onde se pode pensar o que se quer
fazer nesta fase. Há muitas mulheres que passam por aqui e que decidem abortar,
e que nos ligam a dizer que abortaram, e a quem apoiamos naquilo que for
preciso na mesma. Se for preciso procurar emprego ajudamos a procurar emprego.
Queremos é apoiar a mulher ao ponto de sentir que tem os recursos necessários
para decidir da melhor maneira possível, porque muitas vezes a falta de
liberdade condiciona as decisões.
Mas se elas dizem que estão decididas a
abortar, vocês não as encorajam nesse sentido...
Claro que não.
Alertamos para aquilo que é para alertar, mas o objectivo é acompanhar. Claro
que não dizemos isso, não é essa a nossa perspectiva, mas tentamos pensar em
tudo o que seria possível de organizar para que seja possível prosseguir,
porque muitas vezes o desejo lá no fundo é prosseguir, mas parece que as
circunstâncias não estão a favor e não permitem, por “N” razões. Portanto
tentamos desbloquear aquilo que está a bloquear, e depois a mulher é livre de
decidir e obviamente nós estamos cá naquilo que ela precisar, mas não somos
incentivadores do aborto, não.