Transcrição integral da entrevista feita ao Cardeal O’Malley.
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A entrevista foi realizada inteiramente em português.
O que significa para
si participar nestas celebrações do Santo Cristo dos Milagres?
É uma alegria imensa poder estar aqui, sobretudo durante o
ano da fé. Fui bispo de Fall River durante 10 anos e tive muitas vezes a
oportunidade de celebrar com os nossos fiéis, onde metade dos católicos são
açorianos e mantém muitas das tradições portuguesas, como as festas do Divino
Espírito Santo, e as do Santo Cristo, que são muito importantes. Assim, poder
ir ao sítio onde têm origem estas devoções é um privilégio e uma alegria muito
grande.
No seu trabalho
pastoral tem trabalhado muito com portugueses e é conhecida a sua simpatia por
esta comunidade e pelo país. O que é que realçaria da prática religiosa dos
portugueses?
Em Washington, quando era um padre jovem trabalhava com
emigrantes, sobretudo da América Central, mas também alguns retornados
portugueses de África, que voltando para Portugal acabaram por ir para os EUA e
assim começámos uma paróquia portuguesa em Washington. Depois de 10 anos como
bispo das Ilhas Virgens, fui nomeado bispo de Fall River, onde há muitíssimos
portugueses, quase todos açorianos, e assim fiquei a conhecer muito bem as suas
tradições. Para os emigrantes a religião e a fé são muito importantes para a
sua própria identidade. A Igreja é o centro da sua vida religiosa e social.
Há muitas comunidades
diferentes na Igreja nos Estados Unidos. Faz sentido falar de um catolicismo
americano?
Somos uma Igreja de imigrantes, mas os emigrantes americanos
formam um mosaico entre si e os portugueses americanos já não são iguais aos
portugueses de Portugal, os irlandeses americanos têm uma experiência
diferente. Têm diferentes tradições mas também se integram numa nova realidade.
Ao longo dos últimos
anos temos notado uma interessante evolução na Igreja Americana. Olhando para a
hierarquia vemos uma Igreja unida, forte, influente, sem medo de participar nos
debates públicos… mas a nível dos fiéis a situação parece semelhante a muitos
outros países, com os católicos a revelar opiniões divergentes às oficiais em
relação a muitos assuntos. Como vê a evolução da situação nos próximos anos?
A Igreja tem muitos desafios nos EUA mas estamos a crescer
sobretudo devido aos novos imigrantes que chegam, que são sobretudo católicos.
Para nós é um grande desafio ter vocações suficientes para ter padres e
religiosas e pessoas para trabalhar com os recém-chegados.
Também há um processo de secularização nos EUA, que para nós
é algo novo, porque apesar de ser um país muito desenvolvido, os americanos são
crentes e religiosos, mas estamos a começar a experimentar um pouco o que já
existe na Europa, muita gente que não pertence a nenhuma Igreja, o que para nós
é uma coisa nova, mas é uma realidade sobretudo entre os mais jovens, pelo que
temos de dedicar-nos ao que a Igreja chama a nova evangelização, evangelizar os
católicos e os cristãos que já não praticam a sua fé, que receberam uma vez a
mensagem do Evangelho mas que agora estão afastados. É um desafio muito grande
mas importante para o nosso futuro.
Nos últimos anos
temos assistido a vários momentos de tensão entre a hierarquia e o Governo. Há
quem diga que há um clima quase de perseguição da Igreja. É real esse medo?
Nos Estados Unidos não existe um partido político católico.
Os republicanos e democratas têm coisas que estão de acordo com a Igreja e
outras que não.
A administração actual tem tido muitos conflitos, sobretudo
por causa do aborto e o casamento homossexual. Por outro lado os democratas, no
que diz respeito a emigração e justiça social económica, estão mais perto das
posições da Igreja. Mas a tensão é real e para nós o Evangelho da Vida é o
centro do nosso evangelho de doutrina social católica.
Com este processo de secularização penso que as tensões
entre Igreja e Estado vão aumentar, infelizmente, mas é uma realidade e temos
de preparar o nosso povo para dar testemunho da fé num ambiente por vezes
hostil.
Como sabemos, a crise
dos abusos sexuais foi muito forte nos Estados Unidos. O pior já passou?
Acho que sim, porque todos os casos são de há 20, 30 ou 40
anos. Ultimamente os casos são muito, muito raros. Mas têm feito muito dano à
credibilidade da hierarquia da Igreja.
Há muitos anos os bispos iniciaram umas normas muito
exigentes para proteger as crianças e têm sido muito eficazes, acho que as
nossas instituições, igrejas e escolas são os sítios mais seguros para crianças
que existem no nosso país, nenhuma outra Igreja, nem o Governo, fazem as coisas
que nós fazemos para proteger as nossas crianças.
Enquanto arcebispo
tem de lidar com estes assuntos, mas não pode deixar de o afectar, ter de estar
tão próximo destes problemas.
Sim, porque levo muitos anos com estes problemas tão sérios
e eu tenho reunido muitas vezes com vítimas, as suas famílias, tenho visto de
perto o grande dano que tem feito e quando se trata de pessoal da Igreja a
traição é maior porque o dano que faz é também espiritual.
Tenho sido bispo em quatro dioceses e em três foi
precisamente para tratar destes problemas. São já 20 anos a lidar com isto, e é
duro.
Em alguns países da
Europa começam agora a surgir casos de abusos na imprensa. Que conselhos daria
às igrejas dos países em que o problema começa agora a manifestar-se?
O Papa Bento mandou que todas as conferências episcopais no
mundo preparem normas sobre estes casos de abuso sexual. Nas normas também
indica que deviam ter muita transparência, muita atenção às vítimas e
tolerância zero para casos de pedofilia na Igreja. É muito importante que as
conferências episcopais o façam.
Eu sei que em muitos países não há muitos recursos e é
difícil, mas acho que os países que têm passado por estes problemas podem
aconselhar e ajudar estas conferências episcopais, mas é muito importante.
Acho que o novo Papa Francisco concorda com a importância de
continuar a dar atenção necessária ao problema de abusos de crianças que, não é
um problema clerical nem da Igreja, é um problema humano e existe muito mais
fora da Igreja do que dentro, da Igreja, mas como tenho dito, quando se trata
de um sacerdote ou de um religioso, o dano é maior para a vítima.
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Cardeal O'Malley prostrado numa cerimónia penitencial pelos crimes de abusos sexuais |
Recentemente foi
nomeado para uma comissão que vai aconselhar o Papa sobre a reforma da Cúria. A
primeira reunião será só em Outubro… porquê esperar tanto tempo?
Sim, mas temos começado a trabalhar por correio, entre nós,
mas a primeira reunião, quando nos reunimos todos, porque somos de todos os
continentes, é só em Outubro.
Já tem algumas ideias
a apresentar ao Papa?
Estou a pensar, estou também a consultar com várias pessoas.
Fala-se muito de
problemas da Cúria, até que ponto é que os problemas residem mesmo aí?
Estou a começar a conhecer a realidade da Cúria, há muitas
pessoas muito dedicadas e muito capazes que trabalham ali. Acho que os meios de
comunicação falam muito do Vatileaks e dos problemas que tem havido, mas há
também trabalho de muito valor que se faz ali.
Queremos encontrar formas de coordenar melhor e com maior
comunicação entre os vários dicastérios e a sua relação entre a Cúria e as
conferências episcopais no mundo inteiro para que haja mais colaboração e
coordenação.
O Banco do Vaticano
também tem sido muito criticado. Na sua opinião faz sentido o Vaticano ter um
banco?
Essa é uma das coisas que estamos a estudar. O nosso banco
não é muito grande, mas vemos como muitos bancos europeus e também americanos
têm tido problemas.
O dinheiro que está no banco pertence às ordens religiosas
benéficas da Igreja e isso é uma grande responsabilidade, por isso vamos
procurar proteger esses recursos da melhor maneira. Sei que o Papa Bento XVI
contratou um novo dirigente, um perito nestes assuntos, vamos ver.
Temos reuniões com várias pessoas sobre isto e acho que
vamos ter tempo para o estudar, mas eu pessoalmente não creio que a Igreja deva
fechar o banco sem estudar muito o caso, porque vimos o que está a acontecer
noutras partes e talvez a situação fosse pior.
Este Papa tem sido
uma surpresa para muita gente, tem-no sido também para quem o elegeu?
Sim e não, conheço o Papa há muitos anos, de Buenos Aires.
Um bispo que vem da América, sobretudo da América Latina tem
uma experiência muito diferente que um bispo da Europa. A sua maneira de
proceder é uma reflexão da sua experiência pastoral na América Latina. Também,
ele é religioso, mas acho que vai dar muita importância ao Evangelho Social da
Igreja, que é muito importante.
Na América Latina houve muita controvérsia sobre a Teologia
da Libertação e muitas pessoas entenderam isso como a Igreja a perder a sua
opção preferencial pelos pobres.
Acho que este Papa vai por a ênfase no Evangelho Social da
Igreja, o que na América Latina é muito importante, porque há muita gente muito
pobre, muitos problemas sociais, e também o Papa assumiu o nome Francisco por
isso, porque para São Francisco o pobre é um sacramento de Cristo Crucificado.
Também Francisco queria fazer-se um irmão universal. Acho que neste Papa vamos
ver os temas de Francisco no seu pontificado.
O Papa está num
Estado de Graça, faz homilias públicas todos os dias, a imprensa está a
trata-lo bem. Não há o perigo que isso passe?
Acho que vão criticar o Santo Padre quando escutarem os seus
ensinamentos sobre questões morais, mas acho que todo o mundo está feliz com o
seu estilo, e acho que isso vai continuar igual.
Dizem que o número de pessoas que está a chegar a Roma para
as audiências é muito grande. Cresceu com Bento XVI, mas com Francisco continua
a crescer. Acho que é um bom indício de entusiasmo que o povo tem.
Os meios de comunicação secular têm outra visão do mundo e
da vida e sempre vão estar em desacordo com a Igreja, e sobretudo com o Papa
que é o nosso mestre principal, mas acho que até os inimigos da Igreja gostam
do seu estilo e isso vai continuar igual.