Em 2006 estava sentado
num hotel no Vietname quando vi, num canal de notícias internacional, a notícia
da matança numa escola da comunidade Amish, nos Estados Unidos. Nessa mesma
noite surgiram as primeiras notícias da reacção da comunidade, que tinha feito
questão de ir ter com a família do assassino para lhes dizer que não guardavam
ressentimentos e que perdoavam. O próprio assassino tinha-se suicidado.
A partir dessa altura
fiquei fascinado pelo tema do perdão.
Esse fascínio resultou primeiro num texto e eventualmente numa tese de
mestrado.
Foi por isso com o maior
interesse que soube da publicação de “Incondicional” de Brian Zahnd, um pastor
pentecostal americano, que foi publicado em Portugal pela Letras d’Ouro, que
muito simpaticamente me ofereceu um exemplar.
Tendo feito a minha tese
sobre este assunto conheço já os principais trabalhos que foram escritos nos
últimos anos sobre o perdão. Zahnd fala de pelo menos três deles, incluindo um
que foi escrito sobre o caso dos Amish, e sustenta grande parte da sua
argumentação nessas obras. Para quem não os conhece isso é uma forma boa de
apanhar uma síntese, mas para quem os conhece bem, e serão claramente uma
minoria dos leitores portugueses, o autor traz pouca coisa de novo.
O principal propósito do
livro, contudo, é conseguido nas primeiras 150 páginas, isto é, realçar que o
perdão não é um acessório bonito e secundário do Cristianismo, mas sim um
aspecto absolutamente central. O perdão é uma das grandes novidades que o
Cristianismo introduz no mundo e ainda hoje é algo que o distingue das
restantes religiões. Isto é frequentemente ignorado por quem fala de valores judaico-cristãos,
como se fossem todos comuns.
Zahnd é convincente ao
estabelecer que o perdão é central para o Cristianismo e que um Cristianismo
sem perdão não o é verdadeiramente. Daí lança algumas das questões importantes,
como por exemplo, até onde se deve ir? A dúvida é tão pertinente, que foi
precisamente a pergunta que São Pedro fez a Jesus. Quantas vezes devemos perdoar?
Jesus foi claro, 70 X 7, que é como quem diz, infinitamente. É nesta altura que
me lembro da frase de um simpático mas simples padre que confrontado com a
passagem do Evangelho em que Jesus diz que se deve oferecer a outra face,
começou a homilia dizendo: “Nem tudo o que Nosso Senhor nos diz é para se
levado a sério”.
Mas não, este assunto
claramente é para se levar a sério. Tão a sério que as últimas palavras de
Jesus na cruz são para enfatizar este ponto: “Perdoai-os porque não sabem o que
fazem”.
Zahnd faz pontes
interessantes e desconhecidas da maioria entre o perdão proposto por Jesus e o
antigo testamento. Mas como é hábito neste género de temas o mais interessante
são mesmo os casos pessoais apresentados, como o da holandesa Corrie Ten Boom,
que perdeu a família toda no holocausto e foi torturada por guardas alemães,
que depois da guerra andou pela sua Holanda natal e pela Alemanha a pregar o
perdão, até ao dia em que foi confrontada, no final de uma palestra, pelo seu
carrasco no campo de concentração, que lhe tinha vindo pedir perdão
pessoalmente. A sua explicação de como ultrapassou a resistência interior para
estender a mão àquele homem é uma das maiores lições sobre o Cristianismo que
já li.
Zahnd apresente muitos
outros exemplos, todos inspiradores, e usa-os para tentar explorar também a
complexa relação entre o perdão e a justiça, concluindo, correctamente, que
perdoar alguém náo equivale a livrar essa pessoa da justiça civil.
Amish, exemplos de perdão cristão |
Infelizmente, contudo,
Zahnd deixa alguns temas por explorar, ficando só pela rama. No caso dos Amish,
que ele apresenta como o protótipo da prática do perdão cristão, baseia-se
muito no livro “Amish Grace”, mas ignora totalmente os trechos desse livro que
falam de como para alguns membros da comunidade, sobretudo vítimas de abusos
sexuais, o facto de haver tantas expectativas sobre o perdão pode tornar-se um
peso, causando traumas quando este não surge de forma espontânea. Nada disto
invalida a importância e a pertinência do perdão, mas ajuda-nos a compreender
que o tema nem sempre é simples.
Zahnd faz outra conclusão
particularmente importante, que levanta dúvidas a muita gente. Perdão e
reconciliação, são a mesma coisa? A resposta é não e a consequência dessa
resposta é que é possível perdoar um infractor que não se arrependa, na medida
em que é possível perdoar sem reconciliar, pois a reconciliação, essa sim,
exige o arrependimento do infractor.
Temos então, até este
momento, meio livro bom. O problema começa a partir daí, até ao fim da obra, com
Zahnd a lançar-se no que parece ser uma interminável homilia, dirigida
sobretudo a um público-alvo americano e evangélico com o qual poucos leitores
portugueses se identificarão. O seu objectivo é convencer-nos que é preciso
viver o Cristianismo de forma mais radical, algo que se pode aplicar tanto ao
tema do perdão como a muitos outros, e de facto, pelo meio, o autor mete
referências ao perdão quase que a martelo, como se lembrasse de vez em quando
de que era esse o propósito do livro.
É pena, porque chega-se
ao fim do livro a pensar que metade do tempo que despendemos a lê-lo foi um
desperdício, o que era desnecessário, tendo em conta a riqueza do tema.
Se recomendo o livro?
Recomendo sobretudo para quem quer uma introdução ao tema e para quem não tem
facilidade em ler inglês e que por isso não se pode lançar a ler obras que são,
para dizer a verdade, substancialmente melhores, mas estão por traduzir.
Filipe d'Avillez
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