Michael Baruzzini |
Há um antigo mito chinês que fala de dez sóis que existiam
nos primórdios do tempo. Orgulhosos e imoderados, como é costume nos deuses
pagãos, estes sóis brilhavam em simultâneo todos os dias, queimando a terra com
a combinação do seu calor. Sem se preocuparem com o sofrimento dos mortais, os
sóis recusaram revezar-se no céu e acabaram por ser abatidos, até restar apenas
um.
Lembrei-me desta história quando li outro exemplo de um ateu
a convidar os religiosos a ir “um deus mais além” avaliando criticamente as
suas crenças. Nas palavras do conhecido céptico Michael Shermer, num recente
debate sobre a ciência e a crença em Deus: “Dezenas de milhares de religiões
diferentes, mil deuses diferentes. Os nossos opositores concordam connosco que
999 desses deuses são falsos. São ateus como nós somos ateus. Só lhes pedimos
para irem um Deus mais além”.
Não se pode sequer chamar a isto um “argumento”. Mas
enquanto truque de retórica, merece resposta. Não se pode considerar um
argumento porque não é lógico dizer que só porque nove proposições são falsas a
décima, que à primeira vista é semelhante, também deve ser falsa.
De volta ao mito chinês: Se eu fosse dizer que todos os dias
da semana é um sol novo que nasce, mas me mostrassem que o “Sol de
Segunda-feira” é o mesmo que o “Sol de Terça-feira”, e por aí foram com os sóis
de Quarta, Quinta e Sexta, seria errado “ir um sol mais além” e concluir que
então simplesmente o sol não existe.
Podemos encontrar uma analogia na história da ciência: já
ninguém acredita nas narrativas primitivas e rudimentares do movimento físico,
porque desde Newton que sabemos que as leis do movimento são universais – os céus
são governados pelas mesmas leis físicas que a Terra. Isto é, não existem
diferentes leis de movimento para a terra, para o sistema solar, para as
estrelas, e por aí fora. Contudo, não concluímos daí que não existem leis, pelo
contrário, procuramos uma narrativa única e mais profunda sobre aquilo que
antes pensávamos serem fenómenos separados.
Esta é a resposta correcta para o problema colocado por
Shermer. O Deus cristão não é o último resistente numa longa linha de
divindades em vias de extinção, mas sim o refinamento de anteriormente vagas e
imperfeitas experiências do sobrenatural.
Que a realidade comporta um aspecto sobrenatural tem sido
universalmente aparente para a humanidade, mas a compreensão dessa dimensão
(tal como a compreensão do mundo natural), tem sido marcada pela dispersão,
imprecisão, falta de rigor e idiossincrasia.
Com a auto-revelação de Deus, porém, como único e absoluto –
primeiro para os Judeus e depois na pessoa de Cristo – o panteão selvagem pelo
qual a humanidade sempre sentiu uma grande atracção é revelado como estando sob
o domínio de um Pai único e absoluto, mas que nos ama.
O mito dos dez sóis |
A mitologia tem preservado quase sempre uma noção vaga de um
único Deus Pai por detrás de tudo, e os filósofos chegaram à mesma conclusão
aplicando a razão. Uma examinação da realidade e do conhecimento leva a
concluir que existe um Princípio Absoluto como fonte de tudo e que mais do que “existir”,
este Absoluto engloba a existência de alguma forma – e “a isto os homens chamam
Deus”.
Este Deus filosófico, como é evidente, manteve-se distante e
fora do alcance. Foi nas revelações judaicas e cristãs de “Eu Sou” que esta
ideia mítica e intelectual do “Deus único” que era Deus de deuses, se tornou
reconhecível como verdadeiro e como Pai, com quem o homem pode entrar em
relação. Foi esta noção mais robusta de Deus que conquistou o antigo mundo
pagão.
Por isso, Shermer tem razão sobre uma coisa: os deuses
desapareceram porque houve uma espécie de desencantamento que foi ocorrendo à
medida que a nossa descrição da natureza tem sido testada e refinada. Mas
aquilo que o leva a ter razão é também a razão do seu engano. Esta compreensão
de uma natureza ordenada e racionalmente acessível desenvolveu-se por causa de,
e não apesar de, o monoteísmo.
Quando o mundo passou a ser visto como a criação intencional
de Deus percebeu-se que se poderia utilizar a razão para o compreender –
precisamente porque esse mundo depende de um Criador Razoável. Esses deuses
todos não desapareceram por causa da ciência. Mais que isso, desapareceram à
luz de um Deus maior.
A investigação racional e a revelação, juntas, iluminam os
mecanismos da realidade em que nos encontramos. Shermer acredita na luz da
razão porque acredita, com razão, que a luz dissipa muitas sombras. Quando nos
pede para ir “um Deus mais além”, contudo, está a pedir-nos que apaguemos a
própria fonte de luz pela qual lhe é dado ver.
Dez sóis são sem dúvida demasiados, mas se o último Sol se
põe, só nos resta a escuridão.
Michael Baruzzini é um freelancer e editor da área
científica que escreve para publicações científicas e católicas, incluindo a Crisis, First Things, Touchstone, Sky & Telescope, American Spectator e outras. É também o
fundador de CatholicScience.com,
que oferece currículos e recursos científicos online para estudantes católicos.
(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 27 de Março
2013 em www.thecatholicthing.org)
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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.
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