A revelação, feita ontem, de que um cardeal francês abusou sexualmente de uma jovem de 14 anos numa altura em que ainda era pároco, é muito mais grave do que pode parecer à primeira vista – e à primeira vista é já extraordinariamente grave.
O cardeal em causa é Jean-Pierre
Ricard, bispo emérito de Bordéus.
Com este escândalo são pelo
menos três os cardeais que na última década foram acusados de impropérios sexuais.
O cardeal Keith O’Brien, da Escócia, que foi revelado pela imprensa mesmo antes
do último conclave, no qual não chegou a participar, embora nunca tivesse
deixado de ser cardeal; o cardeal Theodore McCarrick, de quem se soube em 2018
e acabou mesmo por ser laicizado, e agora Jean-Pierre Ricard. Pelo meio tivemos
outro bispo afastado do Colégio dos Cardeais, Giovanni Angelo Becciu, mas por
suspeitas de más-práticas financeiras, e não sexuais e mais recentemente
tivemos o caso de D. Ximenes Belo, que não sendo cardeal é Nobel da Paz, o que
o coloca também num patamar especial.
Em Portugal os bispos têm
estado sob pressão por causa dos casos de abuso sexual na Igreja, mas nada que
se compare com França. É verdade que o estudo apresentado em França, que
aponta para centenas de milhares de vítimas de abuso infantil na Igreja
local, é muito questionável, mas independentemente disso, a verdade é que
Ricard não é o primeiro, mas sim o décimo-primeiro bispo a ser acusado no
âmbito desta questão dos abusos sexuais.
Mas olhando agora mais de
perto para a sua acusação em particular – ou melhor, a sua admissão, pois o
próprio já admitiu os factos e pediu perdão à vítima, pondo-se ao dispor da
justiça civil e canónica – um dos factos mais graves, e que ainda não vi
merecer a devida atenção na imprensa portuguesa, é que Ricard fez parte,
durante 14 anos, da Congregação para a Doutrina da Fé (agora Dicastério), que
ainda é o órgão que trata da maioria dos casos de abuso sexual praticados na
Igreja, decretando as sentenças para os padres que são condenados.
Isto significa que durante
mais de uma década um homem que sabia ser ele próprio um abusador fez parte do
painel responsável por lidar com casos de abusos. E isto é grave porque mesmo
que ele tenha feito tudo bem – e não temos qualquer indício de que não tenha
sido o caso – isto afecta gravemente a confiança dos órgãos da Igreja que mais
precisam de ser insuspeitos para que ela limpe finalmente a sua imagem e vire
uma nova página.
É evidente que nenhum sistema
é perfeito, e haverá sempre padres e bispos corruptos, como existem polícias, juízes
e políticos corruptos. Não há reforma que nos livre disso. Mas se há uma grande
lição a retirar deste caso é mesmo para os clérigos.
Pode levar cinco, dez, vinte
ou, como neste caso, trinta-e-cinco anos a saber-se. Mas o mais provável é que
venha mesmo a saber-se. E quando se souber, quanto mais altos estiverem na
hierarquia, quanto maiores as responsabilidades que assumiram, mais isso vai
afectar a confiança dos fiéis que vos foram encomendados, mais as almas vão duvidar,
mais pessoas virarão costas à mensagem salvadora de Cristo.
Depois de anos a cuidar da sua
imagem e reputação, a Igreja está agora a perceber que é preciso colocar as
vítimas em primeiro lugar. Mas lembrem-se que também o Povo de Deus merece
respeito, merece integridade e verdade dos seus pastores e haverá um momento na
vida de cada um dos que cometeu estes abomináveis crimes em que terá de decidir
se aceita o cargo, a promoção ou a responsabilidade que lhe está a ser
oferecida, apesar de carregar esta bomba relógio consigo, ou se recusa, para
pelo menos poupar os fiéis de mais escândalos no futuro quando a verdade vier
ao de cima.
Já que fizeram a coisa errada
no passado – se for esse o caso – façam a certa agora. E de preferência submetam-se à justiça da Igreja e do Estado, já que a de Deus é certa.
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