Randall Smith |
Neste contexto o termo “pessoa”
delimita uma fronteira crucial – a fronteira entre “nós” (aqueles com a
dignidade e o estatuto que o termo implica e concede) e “eles” (aqueles a quem esse
estatuto deve ser negado).
Se o pensamento pós-moderno
nos ensinou alguma coisa, foi a encarar estes jogos linguísticos com
desconfiança. Esta dicotomia entre “pessoa” e “ser humano” não é precisamente o
tipo de coisa que o pós-modernismo se orgulha em desconstruir, uma vez que as
dicotomias, como “negro” e “branco”, “homem” e “mulher”, “cidadão” e “estrangeiro”
são usados para fragilizar e marginalizar certos grupos?
Não aprendemos com a teoria pós-moderna
que todas as dicotomias são expressões de poder do forte sobre o fraco, do rico
sobre o pobre, das classes altas sobre todos aqueles que elas querem manter sem
poder e invisíveis?
Considere, por exemplo, esta
descrição do filósofo Peter Singer, de Princeton, sobre porque é que pais que
descobrem que o seu filho por nascer tem trissomia 21 poderão querer abortá-lo:
Ter um filho com trissomia
21 é uma experiência muito diferente de ter um filho normal [sic]… Não podemos
esperar que uma criança com trissomia toque viola, que desenvolva uma apreciação
por ficção científica, aprenda uma língua estrangeira, converse connosco sobre
o mais recente filme do Woody Allen ou que seja um atleta respeitável de
basquete ou de ténis.
O que é isto se não a
descrição de um aluno rico e talentoso, de uma universidade de elite? Porque é
que o Singer não diz simplesmente que não levaríamos uma criança trissómica
para o clube de campo? Talvez não, mas há uns anos seria igualmente embaraçoso
aparecer no clube de campo com um judeu ou um negro.
O filósofo John O’Callaghan,
pai de uma criança com trissomia 21, comentou as palavras de Singer:
De facto, Singer está enganado
sobre as capacidades de seres humanos com Trissomia 21, pois muitos conseguem desempenhar
essas actividades. Só quem vive na ignorância geral sobre as vidas de pessoas
com trissomia 21 é que pensaria o contrário. E podemos perguntar porque razão
tantas pessoas na nossa sociedade são tão ignorantes sobre estas vidas que não
fazem mais do que acenar em concordância quando ouvem tais afirmações. Porque é
que os feitos de pessoas com trissomia 21 são dignos de notícia? Francamente, é
porque já os excluímos da comunidade de preocupação moral com quem nos
relacionamos nas nossas vidas.
Quando as pessoas dizem de um bebé
abortado: “Bem, sabes, ele tinha trissomia”, não é exactamente o mesmo que
dizer de um assassinado: “Bom, sabes, ele era um imigrante ilegal”? O
que pensaria de alguém que respondesse à questão “Ouviste que o Presidente
Roosevelt recusou um navio cheio de pessoas que fugiam da tirania nazi?” com a
afirmação “Sim, mas as pessoas têm de perceber que os passageiros eram judeus”?
Ser humano e pessoa, como todos nós |
Como é que se explica que turbas de polícias linguísticos, sensíveis a cada “micro-agressão” oral não compreendem que afirmar que um bebé no útero “não é uma pessoa”, ou que um bebé indesejado “não é uma pessoa”, ou que uma idosa com demência “não é aquela pessoa que eu conhecia e amava” é igual a apontar a um homem hispânico e perguntar “será que ele é legal?”. Ou então comentar uma candidata a professora universitária perguntando, “É uma mulher? Será que pensa engravidar?”.
Quem é que a distinção entre “pessoa”
e “ser humano” favorece? A criança indefesa e invisível? Ou os poderosos
capitalistas que querem que as mulheres dêem prioridade ao trabalho e que sintam
que é do trabalho numa economia de mercado, e não da parentalidade, que derivam
o valor e o sentido das suas vidas? (Uma inversão de valores que foi alcançada
há décadas, juntamente com os homens, em lamentável detrimento da família).
Como é que se explica que académicos
que se orgulham da sua sensibilidade em tais questões não conseguem reconhecer
que esta utilização do termo “pessoa” é precisamente o tipo de agressão
linguística a que se oporiam em qualquer outra área? Talvez seja porque este
termo, ao contrário de outros, serve para valorizar a sua própria classe, de
pessoas como elas, pessoas que valorizam e apreciam coisas como a ficção
científica, aprender uma língua estrangeira, conversar sobre filmes do Woody
Allen e jogar ténis para se manter em forma?
Não é verdade que todos os que
são beneficiados pela linguagem negam que é isso que está a acontecer? “São
apenas palavras comuns”, dizem. A questão é que essas “palavras comuns”
expressam a fragilização em curso de uma parte da sociedade.
Então, pergunto, “pessoa” vs. “ser
humano”: não é exactamente o tipo de categoria socialmente construída de “nós”
(aqueles que importam) contra “eles” (os que não interessam) que deve ser
desconstruída e eliminada? Enquanto existir qualquer tipo de obstáculo que
simples “seres humanos” têm de ultrapassar para serem incluídos na comunidade
de “pessoas”, haverá sempre seres humanos vivos que ficam aquém.
Ao longo da história, sempre
que distinguimos entre o que podemos chamar “seres humanos plenos” (“pessoas”)
de outros que supostamente não são bem humanos (como judeus, africanos negros e
bárbaros, por exemplo), cometemos mais do que um erro. Cometemos um dos piores
erros que nós, enquanto pessoas supostamente sensíveis, razoáveis e “civilizadas”,
podíamos cometer. Talvez seja hora de parar de o fazer.
Randall Smith é professor de
teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez
em The
Catholic Thing na terça-feira, 9 de Agosto de 2022)
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