Tuesday 3 May 2022

EUA prestes a proibir o aborto? Sim, talvez e não

Samuel Alito, juiz do Supremo Tribunal

Talvez já tenham ouvido dizer que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos está prestes a publicar uma decisão que poderá anular a famosa sentença do caso “Roe v. Wade” que legalizou o aborto nos Estados Unidos, a nível federal.

Neste artigo vou tentar explicar o que se passa e quais poderão ser as implicações. Para quem não me conhece, esclareço que sou convictamente pró-vida, isto é, defendo que o aborto é sempre a pior solução para o problema de uma gravidez indesejada.

Esta decisão é definitiva?

De todo… Aliás, neste momento, nem decisão é, é apenas um rascunho de uma possível decisão da maioria dos juízes do Supremo Tribunal, em relação a um caso que envolve a tentativa de um Estado de restringir o aborto para além dos limites actualmente admitidos nos Estados Unidos. Limites esses que radicam na decisão Roe V. Wade.

O rascunho da decisão, com mais de 90 páginas, foi divulgado à imprensa, o que por si é uma coisa extraordinariamente rara. É verdadeiro? Tudo indica que sim, mas isso não garante que venha a ser aceite.

Quando os juízes deliberam sobre um caso, fazem uma primeira votação. Com base nessa votação um dos juízes é nomeado para escrever a opinião da maioria. Outros podem escrever opiniões diferentes, ou mesmo dissensões.

Quando essa opinião é finalmente conhecida, no seu estado final, os juízes votam novamente e aí pode haver alterações. Isto é, um juiz pode mudar de opinião no final, por não concordar com o texto em causa, ou pode então simplesmente manter o seu voto e escrever outra opinião.

Neste momento, ao que tudo indica, haverá uma maioria de pelo menos 5 para 4, sendo que um dos juízes conservadores, John Roberts, não terá alinhado na anulação por inteiro de Roe. Para a decisão final se inverter seria necessário que um desses quatro juízes mude a intenção de votos. Isso parece pouco provável, mas não se pode descartar a possibilidade.

O que está em causa? Roe v. Wade

O caso de Roe v. Wade remonta a 1973. Norma McCorvey (Jane Roe) processou o Estado porque queria fazer um aborto, mas o estado em que vivia, Texas, não o permitia salvo em caso de necessidade para salvar a vida da mulher. O caso chegou ao Supremo Tribunal, que decidiu, por maioria de 7 contra 2, que esse direito lhe estava consagrado na Constituição.

A verdade é que a Constituição americana nunca menciona o aborto, mas os juízes conseguiram descortinar o tal direito ao aborto no “direito à privacidade”, que de facto existe. Argumentaram que o “direito à privacidade” de Norma McCorvey impede o Estado de se intrometer entre ela e o seu médico, e de a impedir de fazer um aborto se assim o entendesse. A decisão restringiu esse direito, contudo, à evolução da gravidez. Durante o primeiro trimestre o Governo – seja federal, seja estatal – não pode restringir de todo o aborto; no segundo trimestre pode apenas exigir certos requisitos de saúde e no terceiro o aborto pode ser proibido, desde que as leis incluam excepções nos casos em que a vida da mãe está em perigo.

O aborto era ilegal antes de 1973?

Não, não era. Antes de 1973 a questão cabia aos estados. Havia estados onde o aborto era legal. A diferença é que a decisão do Roe v. Wade forçou todos os estados a reconhecer um direito constitucional ao aborto.


E agora, vai passar a ser ilegal em todo o país?

Não. A anulação de Roe v. Wade, por si, não criminaliza o aborto. Segundo a decisão revelada pela imprensa – que ainda não é oficial – o Supremo Tribunal não considera que o aborto viola o direito constitucional à vida, simplesmente rejeita que exista na constituição um direito ao aborto.

O que vai acontecer agora, ou a partir do momento em que a decisão se torna lei, é que a questão voltará aos estados.

Há pelo menos 18 estados que têm leis que estão suspensas, por causa do Roe v. Wade, mas que no caso de este ser anulado entram em vigor e que proíbem completamente o aborto, outros têm leis que proíbem o aborto em quase todas as circunstâncias, excepto em caso de malformação, perigo para a vida da mãe, ou incesto. No total, é natural que pelo menos 22 estados passem a restringir totalmente ou pelo menos em larga medida o aborto legal.

Então como ficamos? O Supremo vai proibir o aborto ou não?

Sim, não e talvez. Todos os três.

Sim, na medida em que, a confirmar-se esta sentença, o aborto passará a ser ilegal em vários estados.

Não, na medida em que o aborto continuará a ser legal em vários estados, aliás, na maioria, e o tribunal não obriga ninguém a proibir o aborto.

Talvez, na medida em que neste momento nem sabemos se a decisão é verídica e se, caso seja, será idêntica à decisão final.

E quando é que sabemos?

As decisões do Supremo Tribunal nestes casos mais fracturantes costumam ser divulgados em Junho. Antes disso vamos ter de continuar todos a especular.

Mas caso se confirme, a luta dos pró-vida acabou, correcto?

Não! Ou melhor, esperemos sinceramente que não.

O aborto é um mal sempre. Não é menos mal por ser legal, nem por ser ilegal e “escondido”. Não me entendam mal, o reconhecimento formal de que a matança de seres humanos nascituros não é um direito fundamental é uma excelente notícia, da perspectiva de quem acredita que esses seres humanos não são inferiores, em dignidade, que qualquer outro ser humano. Mas isso, só por si, não deve satisfazer quem se diz pró-vida. É preciso continuar a criar condições para que as mulheres não se sintam sequer pressionadas ou tentadas a abortar quando se vêem grávidas de forma inesperada, ou com em circunstâncias difíceis. Essa deve ser sempre a missão principal.

E Portugal no meio de tudo isto?

Evidentemente este é um assunto interno dos Estados Unidos, e nada tem a ver com a realidade portuguesa, excepto no detalhe de que tudo o que se passa nos Estados Unidos acaba por afectar outros países, de uma forma ou de outra. Este passo nos EUA vai fortalecer e encorajar os movimentos pró-vida em diferentes partes do mundo, e em Portugal também. O tempo dirá da magnitude desse efeito.

3 comments:

  1. Muito boa explicação. Obrigado e abraço

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  2. Muito obrigada pela sua partilha com valor acrescentado desta notícia.
    Pelo enquadramento histórico,
    de pensamento e dos conceitos, e pelo tom da escrita.

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  3. Pedro Benjamim25 June 2022 at 01:13

    "E Portugal no meio de tudo isto?" O PSD tinha que voltar a ser pró-vida, como foi até ao final do séc. XX. Mas não devemos perder a esperança.

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