Wednesday, 11 May 2022

Joe e os Outros depois de “Roe”

Stephen P. White

O Presidente Biden conta já com quase cinco décadas a treinar os eufemismos necessários para defender o aborto sem parecer demoníaco. Ainda assim, de vez em quando tropeça. A semana passada, por exemplo, quando assegurou os jornalistas da sua convicção de que “o direito de escolha das mulheres é fundamental”, cometeu o erro de deixar claro que falava da escolha de “abortar uma criança”, o que parece bastante monstruoso. Porque é.

Claro que o contexto para estes comentários era a fuga de um rascunho da opinião maioritária do Juiz Alito no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, que está diante do Supremo Tribunal. Esse rascunho, já confirmado como autêntico pelo Tribunal, anulará a sentença Roe v. Wade, que legalizou o aborto a nível federal, e remeterá as leis do aborto de volta para os estados.

O truque para um político como Biden está em usar termos de que as pessoas gostam, como “direitos”, “liberdade”, “escolha”, enquanto evita os termos que recordam as pessoas de que o que está em causa é a eliminação de uma jovem e inocente vida. Mas mesmo as palavras “simpáticas” começam a perder o seu encanto se forem usadas de forma demasiado desonesta durante muito tempo. As pessoas começam a desconfiar quando aspirações nobres como liberdade e igualdade só podem ser alcançadas a um custo tão grotesco.

É uma loucura acreditar que a igualdade e a liberdade de metade da raça humana assentam necessariamente no direito ilimitado de usar força letal contra crianças inocentes. Contudo, esta é a opinião firme de Nancy Pelosi sobre o assunto. A eliminação de Roe seria uma “abominação”, avisou. “Ao eviscerar a liberdade fundamental das mulheres de gozar de plenos cuidados reprodutivos, os juízes radicais nomeados pelos republicanos preparam-se para infligir sofrimento inimaginável sobre dezenas de milhões de famílias”.

Este grau de histeria é uma boa indicação de como o argumento de Alito destrói por completo a lógica de Roe e de Casey. No meio de todo o clamor e ranger de dentes que ouvimos esta semana, temos assistido a uma ausência notória de críticas sérias aos argumentos jurídicos de Alito por parte da fação pro-Roe. Como já se disse infinitas vezes esta semana, a opinião é ainda um rascunho, e não uma versão final, mas os dados parecem lançados e é difícil não esperar que em breve o Roe v. Wasde seja revogado.

Claro que a revogação de Roe não porá fim ao aborto neste país. Por mais necessária e grandiosa que seria essa vitória, a guerra passaria apenas para outros campos de batalha – principalmente para os estados, mas também para o Congresso. Há muito que se presume que o retorno da questão para o nível estadual produziria um conjunto variado – mas no geral mais moderado – de leis do que aquelas que eram permitidas ao abrigo de Roe. Poderá ser isso mesmo que acontece. Mas não será automático. E não acontecerá sem muito esforço e coragem aos níveis local e estadual.

Norma McCorvey, a "Roe" original
Há muito que os grupos pró-aborto se preparam para o que vem de seguida. Já existem planos para transportar mulheres grávidas de estados com leis mais restritivas para estados com leis mais permissivas – uma espécie de caminho-de-ferro subterrâneo para abortos, à imagem do que existia para ajudar escravos a fugir para o norte. Também se tem falado muito em alargar o acesso postal a drogas abortivas.

Questões como atravessar fronteiras estaduais, ou enviar medicamentos abortivos de um estado para o outro vão certamente garantir que o Governo federal vai continuar a desempenhar um papel importante na restrição (ou promoção) do aborto. Mesmo que o Congresso demonstre não ser capaz, ou não ter vontade, de tomar medidas directas e substanciais, o executivo continuará a ser importante para redigir as regras e os regulamentos em torno do aborto. Não é implausível pensar que sem o Supremo Tribunal para tornar o aborto uma lei federal, ambos os partidos serão tentados a colocar as políticas federais sobre o aborto o mais possível no ramo executivo.

Escusado será dizer que o cenário pós-Roe tornará ainda mais urgente a expansão de programas para ajudar mães e crianças em situações difíceis. A Lei do Batimento Cardíaco no Texas, por exemplo, é famosa por proibir a maioria dos abortos e também pela forma pouco comum de aplicação, dependendo de denúncias remuneradas. Mas o que foi muito menos divulgado foi que essa mesma lei, que praticamente acabou com a indústria abortiva no Texas, também aumentou os subsídios estaduais para mães pobres, expandiu a cobertura social e providenciou 100 milhões de dólares todos os anos para o programa Alternativas ao Aborto.

Os estados que possam restringir o aborto depois da revogação de Roe devem fazê-lo, claro, mas os mesmos estados devem estar preparados para ser o mais generosos possível a confirmar que todas as mães e bebés (e pais) tenham o apoio de que precisam para que dizer sim à vida seja o mais fácil possível. À medida que as políticas sobre o aborto regressam aos estados tornar-se-á ainda mais politicamente imperativo vencer ao nível local e pessoal, tanto nas medidas concretas como na retórica.

Os milhares de centros de aconselhamento a mulheres grávidas em dificuldades que existem no país já fazem um trabalho fantástico neste campo. Não há qualquer razão para não coordenar as restrições ao aborto com o aumento de apoio a essas organizações, seguindo a decisão do Texas de disponibilizar recursos diretamente a mulheres que enfrentam gravidezes indesejadas ou difíceis. Não só é a coisa certa a fazer, como revela a falsidade de quem acusa os movimentos pró-vida de deixarem de se preocupar com a dignidade humana a partir do momento em que o bebé nasce.

Uma última coisa para os católicos terem em conta num cenário pós-Roe: Ao longo de décadas o Roe v. Wade definiu o status quo político e jurídico. Ao longo de décadas demasiados católicos revelaram uma deferência exagerada a esse status quo. Quando o Roe desaparecer, se Deus quiser, e se quebrar o impasse jurídico, deixará de ser sustentável a atitude de ficar nas margens e evitar abanar o barco. Quebrar o monopólio judicial da política do aborto significará que os cidadãos comuns, e os legisladores locais e estaduais, passam a ter uma maior responsabilidade na defesa da vida – ou na sua promoção ou destruição. Os católicos, incluindo os nossos bispos e pastores, devem estar preparados para tudo o que isso significa.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na quinta-feira, 5 de Maio de 2022)

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