Wednesday 30 June 2021

Lançar as Redes

Elizabeth A. Mitchell
A cena final da famosa peça de drama existencial de Samuel Beckett, “À Espera de Godot” capta o medo entrincheirado, a dúvida e o desespero da modernidade. Um vagabundo desafeiçoado, Estragão, diz a outro: “Bom, vamos?”

“Sim”, diz Vladimir, o outro, “vamos”.

Direção de cena: “Permanecem imóveis”.

E não se irão mover, nunca. Os sem-abrigo de Becket, por patéticos que pareçam no palco, não são muito diferentes, se é que diferem de todo, do nosso dilema actual.

São tantas as coisas que paralisam a nossa esperança. Dor, falhanço, ressentimento, exaustão. Tentámos e não fomos bem-sucedidos. Amámos e fomos rejeitados. Tivemos esperança e fomos desapontados. E agora surge intensa a tentação de abraçar a segurança do cinismo. Se não tentarmos podemos evitar o fracasso. Se não amarmos não podemos ser rejeitados. Se não tivermos esperança não nos arriscamos a ser desapontados. É mais seguro assim.

Mas essa carapaça do cinismo é também uma prisão. É verdade que não nos podemos magoar, mas também não podemos sair. Quanto mais nos embrenharmos nessa carapaça de desafeição, mais apertada fica. Até que redefinimos a nossa natureza, porque é tão difícil acreditar, esperar, confiar e abandonar a dúvida depois de termos sido desapontados. Porém, a natureza de Cristo reflete todas estas qualidades para connosco.

Ele tem tantas razões para duvidar de nós. Tantas provas de que vamos desapontá-lo, mais uma vez. Porém, Ele encoraja-nos, sempre, a tentar de novo, e nunca mais do que quando passámos toda a noite na faina e não apanhámos nada. Ele leva-nos a confrontar esse lugar dentro de nós próprios e a tentar de novo, mas com a Sua graça.

“Tendo acabado de falar, disse a Simão: ‘Vai para onde as águas são mais fundas’, e a todos: ‘Lancem as redes para a pesca’.” (Lucas 5,4).

Lancem as redes. Baixem a guarda. Abandonem o vosso orgulho. Tentem de novo. Sejam vulneráveis ao falhanço e à humilhação. Tenham novamente esperança, sem qualquer garantia de sucesso. Confiando apenas no chamamento do Senhor.

“Simão respondeu: ‘Mestre, esforçámo-nos a noite inteira e não apanhámos nada” (Lucas 5,5)

Já tentámos isso. Sabíamos o caminho. Começámos um negócio. O negócio falhou. Dedicámo-nos à missão. A missão foi infrutífera. Esforçámo-nos nessa relação mas ficámos com uma mão cheia de nada.

“Mas porque me pedes, vou lançar as redes.” (Lucas 5,5)

Voltarei a perdoar. Voltarei a amar. Voltarei ao meu posto e tentarei de novo.

É tão difícil. O exemplo de Pedro e tão importante. Ele simplesmente obedece. A única graça a que ele tem acesso é a obediência. Não é o zelo, nem os resultados. Apens a escuta do Senhor.

É como se dissesse “Senhor, eu amarei, e lançarei novamente as redes”. “Senhor, eu perdoarei, e lançarei novamente as redes”.

E qual é o resultado? É o oposto do que esperaria qualquer cínico. O cínico diz a si mesmo: não o faças, vais fazer figura de idiota. As pessoas não merecem que tentes de novo. Ninguém valorizou o teu esforço anterior. Tens de ser superior a isso. Ter algum amor próprio. Mantém-te aqui, onde é seguro, nesta prisão da dúvida.

Mas Pedro lança as redes. E enquanto o faz toda a Igreja universal em florescimento, a dar os seus primeiros passos, sustém a respiração coletiva.

“Quando o fizeram”, revela o Evangelho, “apanharam tal quantidade de peixes que as suas redes começaram a rasgar-se”. (Lucas 5,6)


Sucesso. As redes estavam a rasgar-se. O resultado de amar em obediência a Cristo, de abandonar o orgulho e de perdoar apenas mais uma vez, aquela vez em que era menos merecido, é quando se dá o avanço!

Ungidos pela graça, os seguidores de Cristo alcançam tal sucesso, tal amor, tal abundância que “encheram ambos os barcos, a ponto de quase começarem a afundar (…) e Simão e os seus companheiros ficaram perplexos com a pesca que tinham feito” (Lucas 5,7-9)

A profundidade do nosso deslumbramento deriva do nosso entendimento do que seria de esperar. Tínhamos noção do nosso orçamento e da falta de liquidez. Tínhamos visto a indiferença dos nossos amados. Sentimos a injustiça das nossas feridas. Tínhamos experimentado os grilhões impiedosos do vício. Mas quando respondemos com obediência ao pedido de Nosso Senhor produziu-se o milagre.  

“Não tenhais medo” ordena o Senhor. “De agora em diante sereis pescadores de homens”. (Lucas 5,10).

Simão Pedro é o nosso exemplo. Neste momento crítico, debaixo do olhar de todos os discípulos, presentes e futuros, a sua vulnerável obediência dita o futuro da Igreja.

Tudo isto se passa nas profundezas, fora de pé. Onde não controlamos nada. O abandono é a parte funda da piscina espiritual. É a última paragem na nossa viagem. É também o verdadeiro começo.

Sem garantias. A forte possibilidade da humilhação, mas a certeza maior ainda daquele que nos chama, que pede, que ordena. O risco é real. A resposta é o prémio ungido de Cristo.

E o prémio é dele e só dele. Mais do que possamos pedir ou imaginar. Calcada e transbordante. A alegria que vem da entrega voluntária a Jesus na fé.

Santa Teresa de Lisieux escreveu: “Levou-me, confesso, muito tempo a chegar a tal entrega; já lá cheguei, mas foi o próprio Jesus que me trouxe até aqui.”

Jesus traz-nos até à margem, onde podemos deixar os nossos barcos, os nossos esforços humanos limitados, lançando-nos para as profundezas da sua graça.

“Então arrastaram os seus barcos para a praia, deixaram tudo e seguiram-no” (Lucas 5,11)

E assim devemos fazer também.


Elizabeth A. Mitchell, é doutorada em Comunicação Social Institucional pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma, Itália, onde trabalhou como tradutora para a Sala de Imprensa da Santa Sé e para o L’Osservatore Romano. É decana dos alunos na Trinity Academy, um colégio católico privado no Wisconson. A sua tese “Artist and Image: Artistic Creativity and Personal Formation in the Thought of Edith Stein,” trata o papel da beleza na evangelização pela perspetiva de santa Edith Stein. Mitchell faz ainda parte da direção do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe em La Crosse, Wisconsin, e é conselheira do Centro Internacional St. Gianna e Pietro Molla para a Família e para a Vida.

(Publicado pela primeira vez no Sábado, 19 de Junho de 2021 em The Catholic Thing)

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1 comment:

  1. Obrigada Filipe por estes dois últimos magníficos textos! Na mouche… Desponta já a aurora…
    Maria Cortez de Lobão

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