Thursday 2 January 2020

Para estar atento em 2020 – Trump e Ginsburg

Donald Trump tem sido uma das figuras dos últimos quatro anos e vai continuar a sê-lo pelo menos até novembro de 2020. O mais provável mesmo é continuar a sê-lo até 2024, para horror de quase todo o resto do mundo bem-pensante.

Naturalmente não tenho uma bola de cristal, mas há grandes possibilidades de Trump vencer a reeleição em novembro deste ano. Pessoalmente, preferia outro republicano, mas pessoas bem-informadas com quem tenho falado garantem-me que nenhum republicano tem possibilidade de o retirar da corrida.

Não devemos subestimar o apelo de Trump para uma grande parte do eleitorado americano e por mais que tentemos dizer que se trata simplesmente de um misto explosivo de racismo e estupidez, isso é demasiado simplista. A subida da direita populista é preocupante, sim, mas é uma reação natural a décadas de deriva populista de esquerda que nos brindaram com marcos de progresso humanitário como casas de banho mistas e homens a competir na categoria feminina em desportos vários.

Enquanto arranca os cabelos, a esquerda que considera que toda a gente que fica aquém do Bloco é fascista deve pensar no papel que desempenhou em promover a extrema direita. Se Passos Coelho é fascista, se Assunção Cristas é fascista e agora chamam a André Ventura fascista, então que se lixe, fascistas por fascistas voto naqueles que de facto dão voz às minhas preocupações, pensa o eleitor do Chega. Se acontece aqui, não haveria de acontecer em Itália, Espanha e nos Estados Unidos?

Para quem não se identifica com a esquerda progressista (vulgos fascistas, na terminologia do admirável mundo novo), mas também não está disposto a colocar os populistas no pedestal, a vitória de Trump tem coisas desagradáveis, mas tem uma que vale ouro, a possibilidade de reformular o Supremo Tribunal.

Desde que foi eleito, Trump nomeou dois juízes para o Supremo Tribunal americano. Um foi para substituir o porta-estandarte dos conservadores no tribunal, Antonin Scalia, que morreu inesperadamente. Entrou outro conservador, ficou ela por ela (ou ele por ele). O segundo foi para substituir Anthony Kennedy, que era um conservador moderado, que votava frequentemente com a ala liberal, incluindo em assuntos-chave. Foi o seu voto que permitiu legalizar o casamento homossexual no país inteiro, por exemplo.

Com Ruth Bader Ginsburg, porta-estandarte dos progressistas a caminho dos 87 anos e a combater cancro do pulmão e do pâncreas e outro juiz liberal, Stephen Brayer, a caminho dos 82, é muito provável que o próximo Presidente tenha de fazer pelo menos uma, talvez duas nomeações para o Supremo. Goste-se ou não do modelo, a nomeação de dois conservadores para substituir dois liberais seria sem sombra de dúvida a maior vitória para os conservadores nos Estados Unidos, provavelmente mais importante que quaisquer danos reais que Trump pudesse impor ao país durante o resto do seu mandato.

Ruth Bader Ginsburg
Mais, as duas nomeações anteriores comprovam que Trump não tem medo de nomear conservadores reais e que, caso tenha o apoio do Congresso, não terá de fazer cedências e nomear alguém que seja conservador para algumas coisas e liberal para o que interessa.

A importância religiosa disto é evidente, uma vez que a liberdade religiosa está sob ataque como nunca esteve nos Estados Unidos (ver exemplos práticos aqui) e a esmagadora maioria desses casos só se decidem no Supremo.

Claro que nem tudo são rosas. Ter de aguentar mais quatro anos de figuras absurdas como Trump fez no anúncio da morte do líder do Estado Islâmico é penoso, como é penoso ter como figura de referência para um movimento que se quer de valores um homem que tão claramente não os parece ter. Para mim, o discurso desumanizante sobre os migrantes é também uma coisa gravíssima e lamentável. Contudo, os efeitos práticos de uma ou duas vitórias destas no Supremo não podem ser subestimados, como não pode ser subestimada a deriva progressista que acompanhará a eleição de qualquer candidato democrata.

Por isso é natural que a direita e os conservadores americanos, incluindo os que pessoalmente não gostam de Trump, estejam dispostos a aguentar com mais quatro anos deste por vezes triste espetáculo.

De uma coisa podem ter a certeza absoluta. Se Trump vencer em 2020 vamos ver uma campanha concertada entre fazedores de opinião e imprensa progressista para mudar o sistema do Tribunal, onde as nomeações são vitalícias e que em muitos casos funciona como um órgão legislativo. Esses apelos virão de precisamente as mesmas pessoas que aplaudiram de pé o Roe v. Wade, que legalizou o aborto e o Obergefell v. Hodges que legalizou o casamento gay, mas o que é a coerência para os arautos da nova humanidade?

6 comments:

  1. Este é um texto surpreendente, também porque algo contraditório.

    Aponta, e bem, a importância do Supremo Tribunal dos EUA, em especial as vantagens de lá existir uma maioria de juízes conservadores. Denuncia, também bem, a agenda dita «progressista» da esquerda, e os perigos que ela suscita.

    Porém, como que faz eco das calúnias, das hipocrisias, até dos incitamentos à violência feitas pela mesma esquerda, em especial no que se refere à personalidade e à actuação de Donald Trump. «Horror de quase todo o resto do mundo bem-pensante»? Mas ele é um ditador que oprime o seu povo, como em Cuba, na Venezuela, Irão, Coreia do Norte? O «mundo bem-pensante» não deveria sentir «horror» por Castro, Maduro, e quejandos? Mesmo que numa perspectiva não simplista, é ofensivo caracterizar o eleitorado de Trump como um «misto explosivo de racismo e estupidez» - Hillary Clinton fez isso chamando-lhes «deplorables», e viu-se o resultado. Que «coisas desagradáveis» tem, teria a vitória de Trump para quem não é de esquerda? Não me ocorre uma... tal como não me ocorre que «danos reais» ele possa causar - a não ser, claro, à organização criminosa conhecida como Partido Democrata. Quais foram, exactamente, as «figuras absurdas», e penosas, que Trump fez no anúncio da morte (e não captura) do líder do Estado Islâmico? E, não, ele não tem um «discurso desumanizante sobre os migrantes»... a não ser que incluamos naqueles os imigrantes ilegais, em especial os traficantes de pessoas e de droga, membros de bandos culpados por agressões, violações e assassinatos em série.

    O problema do Filipe, e de muitos outros comentadores, é não distinguir, pelo menos neste caso, o essencial do acessório, a substância do estilo. O que fica claro nesta passagem: «é penoso ter como figura de referência para um movimento que se quer de valores um homem que tão claramente não os parece ter.» Pois, eu também gostaria de viver num mundo perfeito em que os líderes políticos seriam perfeitos. No entanto, e como isso não é razoável, devemos contentar-nos com o que vai sendo possível. Que interessa Donald Trump não (parecer) ter certos valores se, efectivamente, ele muito tem feito para os aplicar? Que é feito de «não se julgue pelas aparências»? Vendo para além destas, tanto de bom se tem feito desde Janeiro de 2017, como o «Right to Try Act», o «First Step Act», e outras medidas. «Triste espeCtáculo» só do outro lado, entre uma esquerda cada vez mais enlouquecida e perigosa.

    Afirma o Filipe que tem falado com «pessoas bem informadas» sobre esta temática. Todavia, ainda não falou com uma das mais bem informadas: eu, que há 11 anos mantenho e actualizo, pelo menos uma vez por mês, um blog sobre a política nos EUA. Se quiser, eu teria todo o gosto em reencontrá-lo, agora na nova sede da RR, para conversarmos, ouvidos por uma vasta audiência, sobre o que acontece no outro lado do Atlântico.

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    1. Boa tarde Octávio!
      Cometeu um erro, sem culpa sua... Esses termos que refiro são ditos com ironia. Se isso não é claro, fica aqui exposto. "Bem-pensantes" é um termo usado com alguma frequência para descrever as pessoas que pensam que pensam bem, e que são as únicas a pensar bem. É nesse sentido que o uso. Tal como a referência a "racismo e estupidez" é uma crítica implícita a quem, de forma simplista, assim caracteriza os eleitores americanos de Trump. Daí eu dizer que é simplista. Não é o que eu acho.

      Um discurso desumanizante é grave sempre, independentemente de ser em relação a ilegais, traficantes de droga ou pedófilos. Ninguém deve ser desumanizado. O discurso desumanizante e utilização de termos que assemelham pessoas a "inimigos" ou "invasores" ou perigosos criminosos abre as portas a tratá-los como sub-humanos, como aliás tem acontecido. É grave sempre. Não significa que se deva abrir as fronteiras, ninguém diz isso, mas mesmo os imigrantes ilegais devem ser tratados com dignidade.

      Quanto ao resto, sim, é penoso. Eu, que não sou de esquerda, acho penoso ver um Presidente a dar conferências de imprensa daquele estilo a anunciar a morte de al-Baghdadi (captura foi lapso, vou corrigir) e dizer que eles [terroristas] são muito bons a usar a internet, se calhar os melhores do mundo, depois de Donald Trump, ou explicar que qualquer outra pessoa chegaria lá e bateria à porta, mas não os soldados dele, porque são os maiores. Não há volta a dar, é uma anormalidade.

      Agora, que estamos de acordo de que a alternativa Clinton ou qualquer outra do Partido Democrata seria bem pior, isso sim.

      Abraço

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    2. Caro Filipe,

      eu prefiro a «anormalidade» de um presidente ser algo rude, «incorrecto», de ele responder, ripostar, aos - injustos - ataques de que é alvo, em vez de «comer e calar», como tem (tinha) sido habitual entre muitos políticos republicanos - e isto ao mesmo tempo que faz com que muitas medidas positivas sejam concretizadas, que várias promessas feitas sejam efectivamente cumpridas, o que não era habitual na política norte-americana (e não só).

      E «ninguém deve ser desumanizado»? Criminosos que cometem os actos mais hediondos desumanizam-se a eles próprios, são eles que se reduzem a sub-humanos. Descrever e condenar o que eles fazem nada tem de «desumanizante».

      Entretanto, reafirmo-lhe a minha disponibilidade para uma conversa radiofónica sobre esta temática, na qual, creio que concordará, é muito mais o que nos aproxima do que o que nos separa.

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    3. É certamente mais o que nos aproxima. Mas como já lhe expliquei noutras ocasiões, eu não sou editor e não tenho margem para propor as entrevistas que me apetece.
      Temos claramente uma diferença em relação à humanização. Eu creio que não há sub-humanos nem nada que se possa fazer que nos retire a dignidade e o direito a sermos tratados como tal.
      Abraço!
      Filipe

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  2. Obrigada, Octávio pela sua inteligente exposição! Vou passar a seguir o seu blog. Bom ano!

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    1. Obrigado eu, Isa, pelo seu interesse. Bom ano também para si!

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