James Matthew Wilson |
O Simon During formulou um argumento deprimente, mas convincente, sobre a relação entre religião e
cultura na revista “The Chronicle of Higher Education”, uma referência no meio
académico actual. Diz ele que a secularização do Ocidente moderno não implicou
o abandono da religião, mas a sua redução a uma dimensão opcional da vida
humana (uma ideia retirada do importante livro “A Secular Age”, de Charles
Taylor). A despromoção da religião levou à promoção da cultura. A cultura, nos tempos
modernos, tornou-se um novo termo-divino que dá coerência à civilização e à
sociedade – uma espécie de substituto imanente para a transcendência da fé
cristã. Como defendia Matthew Arnold, a cultura salvar-nos-á da anarquia.
Mas essa substituição está agora a ser desfeita, argumenta During, por uma
segunda secularização. Tal como a autoridade da Igreja sofreu uma erosão por
causa de vários eventos que convergiram numa ordem política secular, agora uma
série de eventos, desde o neoliberalismo até ao feminismo e à política
identitária, levou à rejeição dos cânones da cultura.
Já não é necessário ter uma certa apreciação pela Paixão de São Mateus, de
Bach, ou da Eneida, de Virgílio, para
se ser considerado um ser humano minimamente civilizado. Pelo contrário, esse
tipo de conhecimento pode ser prejudicial. Mais vale passar o tempo a estudar
análise de risco ou cibersegurança, dizem-nos os tecnocratas neoliberais. Ou
então crítica pós-colonial de Virgílio ou, melhor ainda, deixar esse cadáver
para trás em troca pelo estilo lírico de uma representante de povos não-ocidentais,
ou um defensor da “pedagogia dos oprimidos”.
Esta versão da história proposta por During pode não seguir as leis férreas
da história, mas tem a sua própria dinâmica que é difícil de contrapor, ainda
que não sejamos fãs. Mas eu gostaria de olhar apenas para a ligação que ele faz
entre as secularizações religiosa e cultural e levantar algumas questões sobre
a própria ideia de a cultura ser um “substituto” da religião. Na minha opinião
as grandes obras culturais são antes expressões fortes da verdade do
Cristianismo.
Não é por acaso que autores do início do Século XX, como Henri Massis,
Charles Péguy, T.S. Elliot e Christopher Dawson tendiam a alternar entre a defesa
do Cristianismo e da cultura, usando o termo nebuloso “Ocidente”. Eles compreendiam,
e bem, que o Cristianismo transcende todas as realidades históricas, incluindo
a cultura ocidental, e sabiam também que seria difícil, se não impossível, ter
uma sem o outro.
Viam-no porque é, de uma forma muito particular, verdade. Devemos aos melhores
filósofos pagãos as descrições mais convincentes e bem articuladas sobre o que
significa ser humano. Os seres humanos são criaturas cuja alma aspira, por
natureza, ao conhecimento da verdade por si só; criaturas que não desejam
apenas a verdade, mas precisam de a contemplar. Assim nos sentimos preenchidos,
felizes, e as nossas vidas transformam-se da vã perseguição da glória mundana
para o descanso na eterna glória de tudo o que é, do próprio Ser.
Esta foi uma conquista cultural difícil, mas mais importantemente, foi uma
conquista religiosa. A revelação de Deus a Israel e o envio do seu Filho ao
mundo para proclamar a Boa Nova conduziu o mundo à plenitude predestinada da
sua compreensão. A contemplação da verdade preenche-nos porque a Verdade é uma pessoa
que nos criou para o conhecermos e amarmos. Encontrá-lo e viver nele não é
apenas uma boa nova, é a única nova que permanece sempre boa.
A era moderna descrita por During e Taylor como sendo secular nunca abandonou
verdadeiramente estas visões, embora as tenha truncado e despido dos seus verdadeiros
sentidos. Reconhecia que existia algo distintivo e misterioso sobre as pessoas:
Somos feitos para a transcendência. A era moderna simplesmente parou de especificar
de que tipo de transcendência estava a falar e, pelo caminho, ofuscou a sua
própria visão.
Sim, temos almas, dizem os modernos: elevamo-nos acima das nossas existências
materiais, pelo menos de tempos a tempos, num ato de autoconsciência. As obras
da alta cultura são tudo o que parecem ser – desde a filosofia de Kant às pinturas
de Friedrich, à opera de Wagner ou à poesia de Rilke. Recordam à alma esquecida
que é capaz de subir acima das leis mecânicas da natureza, ainda que apenas por
instantes.
Enfim, a cultura moderna também pôde afirmar esta elevação, este êxtase,
mas só como um tipo de patologia. Temos momentos de iluminação e depois
afundamo-nos novamente na carne. “Tangendo-me de ti [espírito eterno] de
volta à solidão”, como escreveu Keats. Eventualmente as pessoas compreenderam o
esquema. Para quê preocupar-se com uma transcendência sem sentido? Parece
demasiado etérea quando comparada com a transcendência mais funcional do
dinheiro, através do qual asseguramos para nós mesmos uma imortalidade em
miniatura. Já a elevação cultural parece uma indulgência narcisista quando
comparada com a transcendência de perseguir bens políticos que poderão
permanecer para além de nós.
Uma secularização sucede necessariamente à outra. A fundação da cultura,
como disse frequentemente Joseph Pieper, é o cultus – o culto. Sem um claro sentido da nossa orientação para a
contemplação de Deus, todas as obras do homem que parecem verdadeiras, boas, e
belas começam a parecer primeiro meras distrações e finalmente ilusões.
Em “A Pessoa e o Bem Comum” Jacques Maritain argumenta que o ser humano é
uma criatura ordenada para a comunhão imediata com Deus, mas que a
personalidade revela ainda uma tendência para a comunhão com outros seres. O tesouro
da cultura, como ele lhe chama, é simplesmente a irradiação da verdade e da
beleza produzidos pela nossa tendência natural para nos unirmos a Deus e aos
outros enquanto pessoas.
Se a Verdade não fosse uma pessoa com quem nos encontramos, não haveria uma
experiência primordial da qual a cultura é uma espécie de fruto, nenhuma
orientação para o sagrado, nenhuma expressão de nós mesmos na ordem “secular”.
Mas pelo contrário, todos os nossos encontros com a obras culturais são pistas,
reflexões, ecos sobre a natureza e o destino do homem. Escutem-nos.
James Matthew Wilson, é autor
de oito livros, incluindo, entre os mais recentes, “The Hanging God
(Angelico) and The Vision of the Soul: Truth, Goodness, and Beauty in the
Western Tradition” (CUA). É professor associado de religião e literatura no
departamento de Humanidades e Tradições Agostinianas na Universidade de
Villanova e já foi editor de poesia para a revista Modern Age, e de
series para a Colosseum Books, da Steubenville Press, na Franciscan
University. Veja aqui a sua página na Amazon.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 15 de janeiro de
2020)
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