Francis X. Maier |
O Holocausto é a maior catástrofe moral do Ocidente
moderno. Mas é com demasiada facilidade que nos esquecemos das suas lições. “A
criação do Estado de Israel” em 1948, escreve Galston, serviu de desculpa para
a renovação da “antiga acusação de deslealdade judaica”. Hoje, novamente, as
acusações de deslealdade são “uma presença constante da vida judaica” – e não
apenas na Europa. Globalmente, 38% dos inquiridos por uma sondagem da
Anti-Defamation League acreditam que os judeus são mais leais a Israel do que à
nação onde vivem.
Na Europa Ocidental o crescimento de comunidades muçulmanas
e o aumento da sua influência política agravaram o problema. A violência contra
os judeus em França aumentou mais de 20% em anos recentes e o rabino-mor da
Grã-Bretanha criticou publicamente o líder do Partido Trabalhista, Jeremy
Corbyn, pelo aumento do antissemitismo nas fileiras do seu partido, meros dias
antes das mais recentes eleições. O ódio aos judeus não é um monopólio da
direita populista na Europa. A esquerda progressista tem a sua própria
variedade tóxica do mesmo veneno.
No que diz respeito aos Estados Unidos, os americanos
geralmente revelam baixos índices de antissemitismo. Mas mesmo por cá, 33% dos
sondados acreditam que os judeus são mais leais a Israel do que ao país de que
são cidadãos. E crimes de ódio, como o esfaqueamento de vários judeus que
celebravam o Hannukah em Monsey, Nova Iorque, estão a tornar-se mais comuns.
O anti-judaísmo tem uma longa história na cultura cristã.
Começa com as discussões iniciais na comunidade judaica sobre a identidade
messiânica de Jesus e a teologia cristã que lhe sucede e procura substituir nos
séculos seguintes. Mas foi o próprio Cristo – obviamente um judeu – que disse
que “a salvação vem dos Judeus” (Jo. 4, 19-22) e o Cristianismo simplesmente
não faz qualquer sentido sem as suas raízes judaicas.
O Concílio Vaticano II procurou reformar e restaurar as
relações entre a Igreja Católica e a comunidade judaica através de documentos
como Nostra Aetate (“No Nosso Tempo”). E enquanto declaração da Igreja
tratou-se de um ponto fulcral no diálogo entre cristãos e judeus, mantendo-se
tão importante hoje como era em 1965, quando foi publicada. Mas palavras belas
e boas ideias não têm força antes de tomarem forma numa vida que prova, pelos
actos, que são verdadeiras. E desse ponto de vista, nada encarnou a recuperação
das raízes judaicas do cristianismo de forma tão forte como a vida e a obra de
Aaron Jean-Marie Lustiger.
Lustiger com o Papa João Paulo II |
Lustiger nasceu em 1926 numa família de imigrantes
judaicos da Polónia. O seu avô era rabino e os seus pais tinham uma chapelaria
em Paris. Na sua vida familiar eram em larga medida seculares, mas ainda assim
tiveram o cuidado de manter o Aaron afastado das celebrações e observâncias
católicas em França. Contudo, aos 10 anos o rapaz encontrou um exemplar do Novo
Testamento e leu-o em segredo, convertendo-se, contra a vontade dos seus
chocados pais, aos 14 anos de idade.
Nunca abandonou o seu nome judaico. Acrescentou-lhe o
nome cristão Jean-Marie no baptismo, mas nunca perdeu um intenso orgulho pela
sua identidade judaica. Sobreviveu à II Guerra Mundial, escondido por uma
família católica francesa. A sua mãe morreu em Auschwitz em 1942 e outros
membros da sua família alargada perderam-se na Shoah. Mais tarde foi ordenado
padre, serviu como capelão em universidades parisienses e eventualmente foi
nomeado bispo de Orleans, vindo a tornar-se mais tarde cardeal arcebispo de
Paris.
Lustiger tinha um forte intelecto – foi eleito para a
Academia Francesa em 1995 –, uma energia inesgotável e um gosto excêntrico para
as artes. Foi autor de uma quantidade prodigiosa de livros e conferências e
tinha uma personalidade maior que a vida. Estar e falar com ele, como eu fiz em
várias ocasiões, era uma experiência inesquecível, como entrevistar uma
locomotiva deambulante.
Para ele eram especialmente importantes as oportunidades
que teve, cada vez mais ao longo dos anos, de encontrar-se com líderes,
ouvintes e estudantes judaicos. Nem sempre era fácil. Os judeus tendem a ver os
convertidos ao cristianismo como apóstatas e repudiadores da comunidade.
Lustiger respeitava este sentimento mas não deixou que o impedisse de procurar
amizades e parceiros de diálogo na comunidade judaica. Mais para o fim da sua
vida escreveu o seu próprio epitáfio, resumindo-se da seguinte maneira: “Nasci
judeu. Recebi o nome do meu avô, Aaron. Tendo-me tornado cristão pela fé e pelo
baptismo, permaneci judeu. Tal como os Apóstolos.”
Recordo Lustiger, que morreu em 2007, aos 80 anos, por
esta simples razão: Ele compreendia que para os cristãos o
antissemitismo/anti-judaísmo não é apenas um mal, mas uma forma particularmente
grotesca de blasfémia e ódio por si mesmo; um ódio pelas nossas origens e
raízes no Deus de Israel. Qualquer católico que procure aprofundar a sua fé e
aprender a importância do judaísmo para os cristãos através das palavras deste
cristão profundamente judeu e judeu profundamente cristão tem apenas que ler os
seus livros “Choosing
God, Chosen by God” e “A
Promessa”.
Como o próprio Lustiger não se cansava de dizer:
Uma das tragédias
da civilização cristã é que se tornou ateia mas afirma permanecer cristã… A
sorte reservada aos judeus é uma prova para saber se nós, enquanto pagãos
cristianizados, aceitámos verdadeiramente Cristo. É verdadeiramente a prova
final. Não se trata simplesmente de uma relação entre o amor pelo vizinho e o
amor a Deus. O judeu permanece, de forma muito precisa, um sinal de Eleição e,
por isso, de Cristo. Não reconhecer a Eleição dos judeus é não reconhecer a
Eleição de Cristo. E é a incapacidade de reconhecer a nossa própria eleição. A
lógica é implacável.
A única resposta apropriada é: Amen.
Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do
arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do
National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da
Arquidiocese de Denver entre 1993-96.
(Publicado pela primeira vez em The
Catholic Thing na Quarta-feira, 8 de janeiro de 2020)
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