Alauítas na Síria em apoio a Assad |
A Síria continua emaranhada numa terrível violência, sem
solução à vista.
Nas últimas duas semanas houve notícia de duas deserções
muito significativas para regime, nomeadamente do embaixador sírio no Iraque e,
antes disso, de um importante general aliado de Bashar Al-Assad.
O que é que estas duas figuras têm em comum? São ambos
sunitas, como é quase toda a hierarquia da oposição ao regime, bem como a massa
dos opositores que nas ruas têm agitado pelo fim do regime de Assad.
Estas notícias apenas confirmam algo que tenho dito desde o
início do conflito: não é possível compreender o que se passa na Síria sem ver
e compreender o espectro religioso, não só internamente mas também a nível
regional.
Antes de mais, um rápido olhar ao país.
A Síria é composto por vários grupos éticos e religiosos. A
esmagadora maioria da população, cerca de 75%, são muçulmanos sunitas. Os
sunitas são o maior grupo islâmico a nível mundial e dominam também a maioria
dos países da região árabe.Contudo, na Síria o regime é dominado por outro grupo, os alauítas.
Os alauítas são um ramo do Islão Xiíta. São encarados como
heterodoxos tanto por sunitas como por a maioria dos xiítas, mas apesar de tudo
são mais próximos destes do que aqueles. Na Síria os alauítas constituem cerca
de 10% da população, mas tanto a família Assad como grande parte da estrutura
que o cerca, pertencem a este grupo.
Ainda dentro do Islão deve-se falar dos curdos. Em termos
religiosos os curdos, que são cerca de 5% da população, são sunitas também, mas
isso não significa um alinhamento automático com a oposição. A questão tem
grandes aspectos religiosos, mas a identificação religiosa não explica tudo.
Por fim, temos os cristãos. Cerca de 10% da população, há
décadas que os cristãos encaram a Síria como um oásis de paz, progresso e estabilidade
numa região volátil.
Sendo dominado por outra minoria religiosa, ao regime nunca
interessou usar um discurso religioso e por isso o secularismo era ferozmente
defendido em nome da unidade nacional. Não havia liberdade de expressão, é
certo, nem liberdades políticas, mas havia liberdade de culto e não existiam
problemas inter-religiosos.
Os cristãos estão divididos em várias igrejas católicas e
ortodoxas, mas no terreno as relações são normalmente próximas. Com o início do
conflito os cristãos não aderiram à revolta e alguns dos seus representantes
apoiaram clara e publicamente o regime. Com a intensificação das lutas esse
apoio foi-se moderando com apelos ao fim da violência, mas é claro que uma boa
parte da oposição identifica os cristãos como sendo aliados de Assad e há muita
preocupação entre a comunidade cristã de que o fim do regime traga os mesmos
problemas que se têm visto no Iraque desde a queda de Saddam.
O facto de os cristãos, por tradição, não terem milícias nem
recorrerem à violência torna-os alvos fáceis e, nalgumas aldeias, obriga-os a
alianças de ocasião, na maior parte dos casos com os alauítas, que são na
esmagadora maioria fiéis ao regime e temem uma verdadeira limpeza étnica no
caso de este cair. É de realçar que o ministro da Defesa, nomeado em Agosto de
2011, e por isso uma peça chave no combate à revolta, é cristão.
Assad com o Patriarca Ortodoxo-antioqueno da Síria |
O cenário interno é este, e é também isto que ajuda a
perceber a reacção dos países vizinhos, a começar pela Turquia. Depois de anos
a tentar entrar na União Europeia, sem qualquer sucesso para apresentar, Ancara
está a olhar para o que se passa no Médio Oriente e a dar sinais de se querer
impor como a grande força da região. Os turcos são, na esmagadora maioria,
muçulmanos sunitas e por isso não é de admirar que haja uma natural
solidariedade com a oposição, que tem usado terreno turco para se reunir e
planear os ataques ao regime.
Outra grande potência da região é a Arábia Saudita, que apesar
de ser tudo menos democrática, tem apoiado os esforços da oposição para
destronar Assad. A solidariedade saudita não chega, por exemplo, ao Bahrein,
onde um regime dominado por sunitas é contestado pela maioria da população, que
é xiíta.
É precisamente o contrário do que se passa com o Irão, a
grande potência xiíta mundial, que apoia os revoltosos do Bahrein mas tem todo
o interesse em manter o regime de Assad em Damasco.
A Síria é assim uma peça fundamental no jogo de influências
entre o mundo xiíta, liderado por um Irão prestes a conseguir uma arma nuclear,
e o mundo sunita, maioritário.
Ao lado da Síria reina o nervosismo no Líbano, onde
cristãos, sunitas e xiítas vivem mais ou menos em iguais proporções. O Líbano é
um país minúsculo, que durante anos viveu na órbita de Damasco. Mudanças na
Síria seriam muito importantes para o Líbano, principalmente porque um regime
sunita dificilmente permitira que o Irão continuasse a fornecer o Hezbollah, o
partido xiíta que hoje em dia tem mais força em Beirute e que mais mostra os
músculos a Israel.
Filipe d'Avillez
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