Austin Ruse |
Para além das etapas geralmente planas de mais de 160
quilómetros, também correrão nos topos de mais de 25 montanhas, incluindo os
picos e as passagens dos Vosges, Jura, Jura Suíça, Alpes e Pirinéus. Estas
montanhas são definidas com base na inclinação e na distância. Os mais
aterradores são os Hors Catégorie (HC) – “fora da escala”.
Os ciclistas correrão por estas inclinações HC acima a velocidades
superiores a 22 quilómetros por hora, o que não parece muito até percebermos
que estão quase na vertical. Descerão do outro lado a quase 100 quilómetros por
hora, tudo isto montados em cima de pneus de borracha com pouco mais de um
centímetro de largura.
Repetirão este processo todos os dias, com apenas dois de
descanso, ao longo de três semanas. Andam cinco horas ou mais no selim, jantam,
deitam-se e fazem tudo outra vez no dia seguinte, e no próximo, e no próximo.
Ponham de lado a questão física. A barreira psicológica é
enorme. Tente ir andar de bicicleta por uns meros 50 quilómetros amanhã, depois
faça o mesmo no dia seguinte. Veja como funciona a sua cabeça na manhã do
segundo dia. Você está dorido.
Sabe quanto custou o primeiro dia. Nem imagina fazer tudo de novo.
Vai correr ou vai fugir? Fazer-se à estrada, ou dar a volta
e adormecer outra vez? Agora multiplique essa distância por dois ou três e
faça-o durante 21 dias. Junte-lhe umas quantas subidas de montanha de 2000
metros. Eis é a Volta à França.
A maioria das pessoas vê ciclismo na televisão e adormece.
Não faz qualquer sentido, parece um caos sem razão. Ainda por cima é chato.
Há muitos propósitos para a corrida e muitas formas de
vencer, mas o objectivo principal é atravessar a meta com o menor tempo
acumulado de todas as 21 etapas, ao longo dos 3497 quilómetros. Cada etapa é
uma corrida separada, com um vencedor por etapa, mas cada uma adiciona ao tempo
acumulado que determina o vencedor final ao fim dos 21 dias de corrida. É
possível um corredor ganhar a volta sem ganhar uma única etapa, desde que o seu
tempo acumulado seja inferior ao de todos os outros concorrentes.
Uma vez que só um vence no final, parece um desporto
individual. Nada é mais longe da verdade. Há nove homens por equipa e todos têm
funções diferentes. Há os chefes de fila, cuja função é vencer as etapas
individuais e elevar o nome da equipa e dos patrocinadores. Outros são
escaladores, cuja função é ganhar a camisola de “Rei da Montanha”, mas apenas
um ciclista é escolhido, pelos seus talentos e capacidades, para se candidatar
à vitória final. Todos os outros trabalham em função dele. Chamam-se
“domestiques”.
Um homem não pode vencer a Volta à França sozinho. É
simplesmente impossível. Precisa que todos os seus homens corram com ele,
marquem o passo, protejam-no do vento, guiem-no pela montanha acima, deixem-se
ficar para trás para apanhar garrafas de água ou pacotes de comida. Às vezes os
seus homens liderarão o pelotão, marcando um passo altíssimo, só para desgastar
os seus concorrentes.
Nas etapas rápidas e planas, quando as velocidades chegam aos
55 quilómetros por hora, juntam-se à volta dele para o proteger dos acidentes
frequentes que quebram ossos, acabam com carreiras e chegam mesmo a matar. Numa
etapa de velocidade o pelotão é um dos locais mais assustadores de todo o
desporto. Mais de 100 homens, a meros centímetros uns dos outros, pedalando na
ponta da unha, protegidos apenas por um capacete e licra.
Já corri numa versão amadora disto. É verdadeiramente
assustador. Uma mera travagem inadvertida ou um ligeiro virar das rodas pode
originar um acidente.
Nas etapas de montanha os “domestiques” andam à frente,
puxando o candidato designado no seu rasto para que ele possa poupar esforço.
Podemos observar os “domestiques” a pedalar furiosamente, dando toda a sua
força física e psicológica e depois, exaustos, deixam-se ficar para trás
enquanto outro toma o seu lugar, dando-se totalmente em benefício da equipa. No
fim, o potencial campeão estará lado a lado com os outros concorrentes de
elite, mas sem a ajuda da sua equipa não tem hipótese.
Nós entramos sozinhos no Céu, sem companhia, mas chegamos lá
com a ajuda de outros. Tal como o vencedor da Volta à França, temos
“domestiques” ao longo da nossa vida, sem eles não conseguimos vencer. No juízo
final conhecê-los-emos. Conheceremos o professor que rezou por nós, o padre que
jejuou por nós. Conheceremos os sacrifícios de incontáveis pessoas que, sem que
déssemos conta, pedalaram por nós, protegeram-nos do vento, foram-nos buscar
garrafas de água e alimento.
Mas, talvez mais importante, conheceremos aqueles por quem
pedalámos, aqueles que não teriam chegado ao fim da corrida sem a nossa ajuda,
sem as nossas orações, jejuns e sacrifícios. Conheceremos os que guiámos pela
montanha acima e protegemos do vento. Nesta vida somos tanto concorrentes como
“domestiques”. Foi assim que Ele ordenou as coisas.
Este ano veja a Volta à França e, enquanto o faz, medite nas
Quatro Últimas Coisas*.
Os sete pecados mortais e as quatro últimas coisas de Jerónimo Bosch |
*Na tradição católica as Quatro Últimas Coisas são a Morte,
o Juízo, o Céu e o Inferno. A meditação sobre as quatro últimas coisas é uma
prática devocional antiga.
(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 29 de Junho
de 2012 em www.thecatholicthing.org)
Austin Ruse é presidente do Catholic Family & Human
Rights Institute (C-FAM), sedeado em Nova Iorque e em Washington D.C., uma instituição
de pesquisa que se concentra unicamente nas políticas sociais internacionais.
As opiniões aqui expressas são apenas as dele e não reflectem necessariamente
as políticas ou as posições da C-FAM.
© 2012 The
Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução
contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o
consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment