Wednesday 18 August 2021

Como Novo

Stephen P. White

Quando estava na segunda classe saltei de uma árvore, num bosque ao pé da minha casa. Aterrei de pé, mas o terreno era desigual, por isso apoiem-me com as mãos para não cair. Em vez de encontrar terra, folhas secas ou raízes, a minha mão direita enfiou-se diretamente nos cacos de uma garrafa de cerveja partida. O vidro castanho enterrou-se na carne da palma da minha mão, mesmo abaixo do dedão.

Apertei o pulso com força para diminuir a hemorragia. Temia que se corresse sangrasse mais, por isso regressei a casa a andar. Lembro-me de ter tido cuidado para não sujar com sangue a minha roupa. O meu pai, que era médico, olhou para a minha mão e comentou: “Parece que isso vai ter de levar uns pontos”.

Foi aí que me descontrolei e larguei a chorar.

Nunca tinha precisado de pontos. E de certa forma orgulhava-me disso. Já me tinha magoado antes, claro. Arranhões, nódoas negras, estiramentos. Mas era sempre o género de coisa que, com tempo, passava. Até aí, sarar significava sempre que as coisas se restauravam ao ponto em que estavam antes. Como novo.

Mas este corte na minha mão era diferente. Não iria desaparecer com o tempo. As coisas jamais seriam como tinham sido antes. Nunca seria “como novo”. Ainda tenho uma cicatriz rasgada, de cerca de um centímetro e meio, na minha palma direita. Foi esta realização, esta compreensão imediata da corruptibilidade irreversível do meu próprio corpo, que me incomodou tanto. Na altura não o saberia explicar dessa forma, mas foi um despertar bastante forte para um miúdo de oito anos.

Escusado será dizer que agora que me aproximo da meia-idade, recordo-me de muitos outros momentos envolvendo ferimentos e perdas muito mais graves que aquele corte na minha mão e alguns pontos.

Talvez seja só eu, mas estes dias em que vivemos parecem revelar cada vez mais sinais da corrupção que nos rodeia. Talvez seja da pandemia. Talvez seja do facto dos Chicago Cubs estarem a vender todos os meus jogadores preferidos. Talvez seja a nossa vida política, interminavelmente cansativa. Talvez a loucura de uma cultura cada vez mais divorciada da realidade. Talvez os escândalos e as falhas da Igreja nas últimas décadas. Talvez seja tudo isso junto.

Talvez estas sejam todas, de uma forma ou de outra, a mesma coisa. Afinal de contas, “as raposas têm tocas e as aves do céu têm os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.


O meu objetivo aqui não é de lamentar a condição humana, por miserável que seja. Fica sempre mal um cristão queixar-se do tempo em que vive. Cheira sempre a ingratidão e a ingratidão carrega sempre o odor do orgulho – como se fossemos demasiado bons para o mundo que encontrámos, ou demasiado importantes para ter de aturar a fragilidade da nossa própria natureza humana.

Fica mal a um cristão pensar assim precisamente porque este tipo de pensamento ignora o mistério central da fé cristã: Deus amou de tal forma o mundo – um mundo aparentemente indigno de amor – que enviou o seu único Filho, que tomou sobre si a nossa frágil humanidade, sofreu a morte e ressuscitou. Em Cristo encontramos a resolução perfeita e o cumprimento de toda a indeterminabilidade da existência humana. Como disse o Papa João Paulo II, Cristo é “a resposta existencialmente adequada para o desejo de bondade, verdade e vida que existe em todo o coração humano”.

Não estamos aqui perante uma mera abstração. Jesus conheceu a fome e a sede, a tentação e o sofrimento, a humilhação e a perda. Chorou pelo seu amigo Lázaro. Mas o seu plano para a salvação não passava por desfazer qualquer uma destas coisas. Alguns esperavam que ele restaurasse o reino e devolvesse Israel ao seu antigo poder e glória, mas Ele tinha outra coisa em mente. Quando ressuscitou, na manhã da Páscoa, as coisas não eram, certamente, como antes, nem sequer como tinham sido no início.

A nossa Salvação não é uma restauração, o inverter da corrupção, da fraqueza ou da mortalidade. O nosso destino não passa por retornar à forma como as coisas foram em tempos, antes de serem sujeitadas à corrupção. Antes, a nossa redenção passa precisamente através da corrupção, através do sofrimento, mesmo através da morte, para aquilo que está além. E este mundo, esta vida, simultaneamente quebrada e preciosa, é a nossa hipótese de aceitar uma parte daquilo que Ele tem para nos oferecer:

Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou.

Se, pela misericórdia de Deus, algum dia tiver a bênção de habitar na presença do Senhor, não sei se a minha palma direita ainda manterá a cicatriz. Não sei que outras marcas no meu corpo ou na minha alma me acompanharão na próxima vida. Mas sei uma coisa. Se ali estiver, será pela graça daquele que ainda carrega as marcas da sua própria crucificação.

E é esse quem declara: “Eis que eu renovo todas as coisas”.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 12 de Agosto de 2021)

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