Stephen P. White |
Apertei o pulso com força para diminuir a hemorragia. Temia
que se corresse sangrasse mais, por isso regressei a casa a andar. Lembro-me de
ter tido cuidado para não sujar com sangue a minha roupa. O meu pai, que era
médico, olhou para a minha mão e comentou: “Parece que isso vai ter de levar
uns pontos”.
Foi aí que me descontrolei e larguei a chorar.
Nunca tinha precisado de pontos. E de certa forma orgulhava-me
disso. Já me tinha magoado antes, claro. Arranhões, nódoas negras,
estiramentos. Mas era sempre o género de coisa que, com tempo, passava. Até aí,
sarar significava sempre que as coisas se restauravam ao ponto em que estavam
antes. Como novo.
Mas este corte na minha mão era diferente. Não iria desaparecer
com o tempo. As coisas jamais seriam como tinham sido antes. Nunca seria “como
novo”. Ainda tenho uma cicatriz rasgada, de cerca de um centímetro e meio, na
minha palma direita. Foi esta realização, esta compreensão imediata da corruptibilidade
irreversível do meu próprio corpo, que me incomodou tanto. Na altura não o
saberia explicar dessa forma, mas foi um despertar bastante forte para um miúdo
de oito anos.
Escusado será dizer que agora que me aproximo da meia-idade,
recordo-me de muitos outros momentos envolvendo ferimentos e perdas muito mais
graves que aquele corte na minha mão e alguns pontos.
Talvez seja só eu, mas estes dias em que vivemos parecem
revelar cada vez mais sinais da corrupção que nos rodeia. Talvez seja da
pandemia. Talvez seja do facto dos Chicago Cubs estarem a vender todos os meus
jogadores preferidos. Talvez seja a nossa vida política, interminavelmente cansativa.
Talvez a loucura de uma cultura cada vez mais divorciada da realidade. Talvez
os escândalos e as falhas da Igreja nas últimas décadas. Talvez seja tudo isso
junto.
Talvez estas sejam todas, de uma forma ou de outra, a
mesma coisa. Afinal de contas, “as raposas têm tocas e as aves do céu têm os
seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.
Fica mal a um cristão pensar assim precisamente porque
este tipo de pensamento ignora o mistério central da fé cristã: Deus amou de tal
forma o mundo – um mundo aparentemente indigno de amor – que enviou o seu único
Filho, que tomou sobre si a nossa frágil humanidade, sofreu a morte e ressuscitou.
Em Cristo encontramos a resolução perfeita e o cumprimento de toda a indeterminabilidade
da existência humana. Como disse o Papa João Paulo II, Cristo é “a resposta
existencialmente adequada para o desejo de bondade, verdade e vida que existe
em todo o coração humano”.
Não estamos aqui perante uma mera abstração. Jesus
conheceu a fome e a sede, a tentação e o sofrimento, a humilhação e a perda.
Chorou pelo seu amigo Lázaro. Mas o seu plano para a salvação não passava por
desfazer qualquer uma destas coisas. Alguns esperavam que ele restaurasse o reino
e devolvesse Israel ao seu antigo poder e glória, mas Ele tinha outra coisa em
mente. Quando ressuscitou, na manhã da Páscoa, as coisas não eram, certamente,
como antes, nem sequer como tinham sido no início.
A nossa Salvação não é uma restauração, o inverter da
corrupção, da fraqueza ou da mortalidade. O nosso destino não passa por retornar
à forma como as coisas foram em tempos, antes de serem sujeitadas à corrupção.
Antes, a nossa redenção passa precisamente através da corrupção, através do
sofrimento, mesmo através da morte, para aquilo que está além. E este mundo,
esta vida, simultaneamente quebrada e preciosa, é a nossa hipótese de aceitar
uma parte daquilo que Ele tem para nos oferecer:
Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles
serão os seus povos; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele
enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem
choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou.
Se, pela misericórdia de Deus, algum dia tiver a bênção
de habitar na presença do Senhor, não sei se a minha palma direita ainda
manterá a cicatriz. Não sei que outras marcas no meu corpo ou na minha alma me acompanharão
na próxima vida. Mas sei uma coisa. Se ali estiver, será pela graça daquele que
ainda carrega as marcas da sua própria crucificação.
E é esse quem declara: “Eis que eu renovo todas as coisas”.
Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.
(Publicado em The Catholic
Thing na Quinta-feira, 12 de Agosto de 2021)
© 2021
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment