Randall Smith |
Os críticos modernos da Bíblia têm dificuldade em aceitar a longa tradição na Igreja de crença em múltiplos sentidos “espirituais” de um texto. Isto não significa que a Escritura pode significar o que quer que nós queiramos. Os vários sentidos “espirituais” – alegórico, moral e anagógico – devem ter bases literais firmes. Mas as lições que aprendemos dos sentidos “espirituais”, especialmente aqueles que compreendemos à luz da vida, morte e ressurreição de Cristo transcendem aquilo que podia ter sido conhecido pelos autores originais.
Enquanto Criador, Deus pode “escrever” na história da
humanidade através de eventos humanos. Ele pode transmitir o que quer dizer
através de coisas, e não apenas de palavras. Por isso, Deus pode prefigurar o
sacrifício de Cristo na Cruz através da sua ordem para que Abraão sacrifique o
seu filho Isaac. Reconhecemos, em retrospetiva, que aquilo que Deus não estava
disposto a pedir a Abraão – o sacrifício do seu próprio filho – era algo que Ele
próprio faria por nós. É por isso que a passagem do “sacrifício” de Isaac
(Génesis 22,1-18) faz parte das leituras da liturgia da Vigília Pascal.
O que o autor humano tinha em mente quando incluiu a
história nas Escrituras é difícil de saber. Mas numa altura em que o sacrifício
humano aos deuses era comum, este autor, inspirado pelo Espírito Santo,
provavelmente queria clarificar que Deus não queria este tipo de sacrifício
humano. O que Deus deseja é uma conversão interior de coração, não um
sacrifício exterior, numa espécie de negócio, em que nós sacrificamos algo
nosso para que Deus nos dê o que nós queremos. Não podemos comprar a vontade de
Deus sacrificando um touro ou um bode.
De igual forma, se formos tentados a transformar a nossa
ida à missa e observâncias religiosas num negócio com Deus – Eu faço X, ou
sacrifico Y para que Deus me premeie com Z – então devemos considerar-nos
abrangidos pela revolta de Cristo ao ver o templo do seu pai transformado num mercado.
Não podemos comprar a vontade de Deus, sobretudo porque tudo o que temos
foi-nos dado por Ele. Esta é outra das lições que devemos aprender com a
história de Abraão e Isaac. A disponibilidade de Abraão para sacrificar o seu
filho demonstra que ele compreende que tudo o que possui, no final de contas,
pertence a Deus.
Mas também nos diz algo sobre a fé nas promessas de Deus,
embora talvez não seja a lição que alguns comentadores pensem ter encontrado
nessa passagem. No Século XVI Martinho Lutero elogiou Abraão pela sua
obediência acrítica a Deus – pela “fé cega” demonstrada pela sua recusa de
questionar se era certo matar Isaac. No final do Século XVIII, Immanuel Kant
defendeu a perspetiva contrária, argumentando que Abraão deveria ter
compreendido que uma ordem tão claramente imoral não poderia ter vindo de Deus.
Para Lutero, a autoridade divina sobrepõe-se a qualquer posição racional ou
moral, enquanto para Kant nada se sobrepõe à lei moral. Este é um debate que
continua nos nossos dias.
Mas talvez não seja nada disto que a história tem para nos ensinar. Uma leitura “moral” clássica do texto talvez fosse algo como isto: Não há alturas em que temos mesmo a certeza de que conhecemos a vontade de Deus, quando nos parece evidente que estamos a cumprir os seus desígnios, e depois acontece algo mau? Não conseguimos o emprego que pensávamos ser perfeito para nós, ou perdemos a relação que tínhamos a certeza que Deus queria para nós. Morre um dos nossos pais. Uma pandemia atinge o mundo. “Como é que isto pode ser parte da providência de Deus?”, perguntamos. Encontramos corrupção e abusos na Igreja. “Como é que isto faz parte da promessa de Deus?”
Da mesma forma, Isaac é claramente a promessa que Deus
tinha feito a Abraão. Então como é que pode parecer razoável sacrificá-lo? Talvez
as palavras de Job sejam as mais adequadas: “O Senhor deu; o Senhor tirou;
bendito seja o nome do Senhor”. Não somos donos, somos administradores. A qualquer
momento o dono da vinha poder voltar para pedir a colheita, ou para exigir os
talentos que nos confiou, com juros. Pensamos, “porquê agora?” Perguntamos,
como Kant, “a história não faria mais sentido se…?” Mas a história não é nossa.
A história é de Deus. E não é irrazoável pensar que Ele a compreende melhor do
que nós.
É claro, através dos Evangelhos, que Jesus não é o
Messias que as pessoas esperavam. Mesmo o grande São Pedro disse a Deus feito
homem (sem perceber a irracionalidade de Dizer ao Deus de Toda a Criação o que
devia fazer): “Não podes ir para Jerusalém sacrificar-te na Cruz. Isso não faria
sentido. Tens de ir de grande vitória em grande vitória, como eu as entendo”.
Mas não era isso que Deus tinha em mente.
Será irracional pensar que pode haver uma sabedoria maior
a trabalhar no mundo do que a nossa? Ou seria irracional partir do princípio
que isso não é possível?
Continuaríamos a ter de lidar com a questão de saber se o
possuidor de tal sabedoria era benevolente. Mas se eu viesse a reconhecer que
este Deus Criador amou de tal forma a humanidade que estava disposto a
sacrificar o seu único filho por nós, então a minha disponibilidade para
alinhar a minha vontade com a dele não seria uma questão de “fé cega” e obediência
inquestionável. Seria o resultado de uma compreensão não desprovida de
racionalidade do grande poder e sabedoria de Deus, por um lado, e uma resposta
inteiramente sensata ao amor que Deus revelou através da sua disponibilidade
para sacrificar o seu Filho, por outro.
Não precisamos de compreender os propósitos de Deus para
acreditar que Ele os tem. Na verdade, é precisamente quando as nossas expectativas
do que Ele tinha em mente chocam mais diretamente com aquilo que nos acontece
que devemos recordar que Ele é Deus. E nós não.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 11 de Agosto de
2021)
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É importante perceber que no Novo Testamento é explicado este episódio, com a indicação de que Abraão cria de tal forma em Deus que acreditava que Deus iria ressuscitar o seu filho após o sacrifício, pois Deus tinha-lhe prometido descendência por aquele filho e portanto não iria faltar à sua promessa... Não deixe de ser um episódio difícil. Mas à luz da fé de Abraão, o sentido era outro...
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