Wednesday, 25 August 2021

Palavras Duras

Pe. Paul Scalia

Muitos dos discípulos de Jesus que o escutavam diziam, “Estas palavras são duras, quem pode escutá-las?”

O que significa dizer que as palavras de Jesus são “difíceis”? Poderia significar que são difíceis de compreender. E como Nosso Senhor estava a falar da Eucaristia – o mistério da Fé – isso até seria aceitável. É demasiado complicado para perceber.

Mas não é isso que significa. A palavra “duras”, aqui, indica algo de ofensivo ou mesmo intragável. É por isso que Nosso Senhor pergunta: “Isto escandaliza-vos?”. Por outras palavras, “Consideram isto ofensivo e intolerável?”. Ele não pergunta se estão confusos, porque nesta altura do discurso sobre o Pão da Vida ele já tinha clarificado os seus ensinamentos muitas vezes. Eles compreendem-no perfeitamente. Simplesmente não estão dispostos a aceitar aquilo que Ele ensina. O obstáculo aqui não é ao nível do intelecto, mas da vontade.

Mais especificamente, eles não estavam dispostos a aceitar o que Ele ensinava porque isso obrigá-los-ia a mudar de vida. Ele estava a convidá-los a submeter os seus pontos de vista mundanos às suas verdades sobrenaturais. “O Espírito é que dá a vida, a carne não serve de nada” (Jo. 6,63). Eles intuíram bem o alcance das suas palavras: Se este ensinamento é verdadeiro, então eles têm de adaptar as suas vidas a ele. E por isso hesitaram. Mesmo depois de testemunhar os seus milagres e sinais, continuavam a não conseguir confiar-se aos seus ensinamentos. “A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se e já não andavam com Ele” (Jo. 6,66).

Estes discípulos entraram na mesma lógica que os seus antepassados no Êxodo. Os israelitas que seguiram Moisés para o deserto acabaram por se fartar de confiar no Senhor e na sua Maná milagrosa. A certa altura disseram: “Daqui não passamos”. Até começaram a ter saudades das panelas de carne no Egipto e a querer regressar à terra da escravatura (Cf. Ex. 16,3 e Num 14,4). Também assim, os discípulos que seguiram Cristo para o deserto procuravam-no porque Ele os tinha alimentado de forma milagrosa e não porque tinha palavras de vida eterna (cf. Jo. 6,68). E assim, aqueles que foram alimentados por Ele e testemunharam os seus milagres, regressam agora às suas antigas vidas.

Tudo isto traz à mente aquilo a que se chama “coerência eucarística” – a simples verdade de que aqueles que recebem a Eucaristia devem viver vidas coerentes com Ela. Inexplicavelmente, isto agora tornou-se polémico. De facto, a “coerência Eucarística” é uma fasquia bastante baixa. Afinal de contas, não devemos desejar apenas viver de uma forma coerente com a recepção da Eucaristia. Antes, devemos fazer por ir buscar vida e o sentido das nossas vidas à Eucaristia. Por outras palavras, as nossas vidas deviam ser coerentes com a Eucaristia porque são determinadas por Ela.

Os discípulos em Cafarnaum reconheceram aquilo que lhes estava a ser pedido. Acharam as palavras duras precisamente porque compreenderam que se as aceitassem teriam de viver em coerência com elas. Ao contrário de muitos que hoje recebem a Eucaristia de forma incoerente, aqueles discípulos pelo menos tinham a integridade para reconhecer a sua falta de vontade e simplesmente afastar-se.

Dietrich von Hildebrand escreveu que ser discípulo de Cristo requer “a aptidão para mudar, uma receptividade a Cristo como que da cera”. Embora seja operativa ao longo de toda a vida do cristão, esta disposição aplica-se sobretudo à nossa recepção da Eucaristia. No Diálogo de Santa Catarina de Sena, Nosso Senhor usa esta mesma imagem para descrever a recepção da Comunhão. “Quando esta aparência de pão é consumida, eu deixo uma marca, tal como um selo deixa a sua marca quando pressionado contra cera quente”.

A coerência eucarística requer a vontade – aliás, o desejo – de receber esta marca de Cristo, independentemente da “dureza” dos seus ensinamentos. Assim, devemos estar dispostos a receber aquilo que Ele nos deseja dar. Devemos desejar da Santa Comunhão aquilo que é a sua vontade, e não a nossa. O efeito em nós deve ser aquele que Ele quer, e não o que nós queremos.

Claro que não devemos ser demasiado duros com os discípulos em Cafarnaum. Para eles o ensinamento sobre a Eucaristia era algo extraordinário, sobrenatural e chocantemente novo. Já nós temos dois milénios de ensinamentos e de testemunhos para fortalecer a nossa fé. E mesmo assim continuamos a poder falhar na nossa devoção eucarística. Assim como os seus antepassados no deserto, estes discípulos são para nós um aviso. Não faz sentido tomar nota de (e lamentar) a incoerência eucarística dos outros se não fizermos mais por corrigi-la em nós mesmos.

Voltamos a Hildebrand: “Há muitos católicos religiosos cuja prontidão para mudar é meramente condicional”. Por outras palavras, estamos sempre em perigo de nos tornarmos como os discípulos em Cafarnaum, colocando limites à nossa disponibilidade para mudar, considerando que as suas palavras são demasiado duras e chegando àquele ponto em que dizemos, “Daqui não passamos”. Alguns atingem esse ponto quando enfrentam um ensinamento mais duro da Igreja de Cristo, outros quando sofrem alguma perda, dor ou escândalo. Seja qual for o caso, o resultado é o mesmo: uma dureza que resiste à Sua graça.

Eis, então, uma boa maneira de nos prepararmos para a Santa Comunhão – pedindo uma disposição dócil, como cera, para que a Eucaristia nos beneficie como Ele deseja e nos deixe a sua marca bem estampada.


O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo para o clero. É autor de That Nothing May Be Lost: Reflections on Catholic Doctrine and Devotion e coordenador de Sermons in Times of Crisis: Twelve Homilies to Stir Your Soul.

(Publicado pela primeira vez no domingo, 22 de Agosto de 2021 em The Catholic Thing

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