Myroslav Marynovych |
Embora quase ninguém no mundo ocidental tenha reparado, houve
recentemente um desenvolvimento importante para o Cristianismo global. Durante
o Sínodo da Igreja Ortodoxa de Kyiv, no dia 15 de Novembro de 2018, foi criada
uma nova Igreja Autocéfala da Ucrânia. A medida foi saudada pela Igreja
Greco-Católica da Ucrânia.
Estaremos perante mais um caso de “nacionalismo
ucraniano” numa altura em que a Rússia se tem tornado cada vez mais ativa? Ou
será este o resultado da rivalidade entre Constantinopla e Moscovo por
influência sobre a Ucrânia? E o que é que isto representa para os Ortodoxos e
para a Igreja Católica?
Na realidade, estamos perante uma mudança gigantesca na
Igreja. O Papa João Paulo II convidou a Europa a respirar com dois “pulmões” –
o Ocidental e o Oriental. Normalmente sabemos bem o que é o “pulmão ocidental”,
mas o que é o oriental?
Entre os séculos XI e XIV a resposta era inequívoca: O oriente
cristão estava organizado em torno de dois centros: a Igreja de Constantinopla
(incluindo a Grécia e Atenas) e a sua Igreja “filha”, a Igreja de Kyiv, de onde
o Cristianismo se espalhou para outras terras orientais.
Entre os séculos XV e XVIII aconteceu uma “deriva
continental” tremenda e Moscovo acabou por substituir Kyiv (Kiev). A partir de
então o Oriente Cristão passou a estar centrado em Constantinopla e Moscovo.
Muscovy absorveu em si mesmo tanto o território da antiga Rus’ de Kyiv como a
Metropoly eclesiástica de Kyiv, tornando-se o Império Russo.
As características distintivas da antiga espiritualidade
de Kyiv foram rigorosamente limitadas para se conformarem com os interesses do
modelo russo de Cesaropapismo. Livros eclesiais “suspeitos” foram queimados.
Figuras dissidentes da Igreja foram reprimidas.
Kyiv passou a estar submetida à “Terceira Roma” (Moscovo)
tanto debaixo do Czar como das ditaduras comunistas. Foi só com o colapso da
União Soviética que o glaciar estalinista descongelou. O que a propaganda do
Kremlin classificava de nacionalismos locais, que alegadamente destruíam a
unidade cristã, era a libertação dos povos e das suas comunidades eclesiásticas
da influência monopolista do mais poderoso dos nacionalismos, o chauvinismo
russo.
Na Ucrânia voltou a nascer a ideia de uma Igreja Ortodoxa
autocéfala. O Kremlin, e a Igreja Ortodoxa Russa que lhe era subserviente,
responderam de duas formas.
A primeira foi uma descriminação metódica contra os
desenvolvimentos eclesiais e políticos na Ucrânia. Nas palavras de um
observador ucraniano, a propaganda russa usava terminologia aparentemente
retirada do “dicionário ocidental de ‘valores humanitários’, mas na verdade
operava com ideias-lobisomem, ideias-parasita e ideias-fantasma” (Andriy
Baumeister). O mundo ocidental não deu por esta manipulação e, pelo menos até
recentemente, aceitou-a de forma acrítica.
O segundo método consistia em propagar o conceito do
“mundo russo” avançado por Cirilo, o Patriarca de Moscovo, que na verdade é uma
doutrina imperial quasi-religiosa que proclama a “unidade espiritual” de todos
os russófonos e povos ortodoxos.
Isto tornou-se uma forma de legitimar a guerra da Federação
Russa contra a Ucrânia, alegadamente em nome da defesa da população russófona.
Agora a propaganda do Kremlin está a preparar o mundo para um possível novo
ataque contra a Ucrânia, para “proteger” a população ortodoxa.
Assim, hoje estamos a assistir a uma profunda transformação
do “pulmão oriental”. O Patriarcado Ecuménico de Constantinopla pressentiu para
onde as coisas estavam encaminhadas e tomou a medida pouco comum de
intensificar as suas atividades no mundo ortodoxo. Apesar de o Patriarcado
Ecuménico ser apenas um “primeiro entre iguais” – e não o líder solitário da
Igreja (como acontece com o Papa no Ocidente) – ele assumiu a responsabilidade
pelo destino da Igreja ucraniana, que tinha sido separada de Constantinopla.
Há vários sinais de que o Oriente Eslavo do “pulmão
Oriental” é ainda largamente disfuncional. O comunismo foi um profundo trauma
do qual os povos das antigas repúblicas soviéticas ainda não recuperaram
inteiramente. Em muitos lugares as pessoas perderam a cultura cristã e a
compreensão do verdadeiro significado da fé cristã. Por isso, ainda poderemos vir
a ter notícias preocupantes – tanto políticas como religiosas – de Kyiv. Mas,
apesar de tudo, está em curso uma importante reorganização e as mudanças
futuras afetarão o mundo cristão por inteiro.
Metropolita Epifânio, da nova Igreja Ortodoxa da Ucrânia |
A influência de Constantinopla poderá acabar por ser
extremamente importante. Isto já foi manifestado através da promulgação do
Estatuto da recém-constituída Igreja Ucraniana, que alterou substancialmente os
procedimentos administrativos, democratizando-os.
Até aqui os cristãos ocidentais têm-se preocupado
sobretudo com a preservação do status quo com Moscovo, como se o oriente cristão
se resumisse à Igreja Ortodoxa Russa. Aos olhos ocidentais isto parecia ser
essencial para a paz cristã e o diálogo ecuménico. A diplomacia do Vaticano tem
sido cuidadosa em não intervir nos assuntos internos dos ortodoxos.
Mas a situação atual apresenta um desafio claro para a
Igreja Católica. Nas palavras do cardeal Christoph Schönborn, de Viena: “Como é
que o Vaticano deve relacionar-se com a nova Igreja Ortodoxa da Ucrânia? Se a
reconhecer, isso levará a um conflito com o Patriarcado de Moscovo. Se não a
reconhecer, isso conduzirá a um conflito com o Patriarcado Ecuménico.”
As Igrejas Ocidentais têm de compreender que o antigo
status quo já não é sustentável. A situação exige uma mudança radical das
posições atuais, incluindo a reconsideração dos atuais modelos de ecumenismo.
Os cristãos conscientes não podem continuar a considerar aceitável
a linguagem de ultimatos e de exclusões usada pela Rússia. Os crentes ortodoxos
da Ucrânia são uma parte legítima da oikumene cristã e estão, atualmente, sob
cerco.
Eles podem tornar-se um catalisador para uma
transformação civilizada de todo o espaço pós-soviético, a começar pela Rússia.
Os ocidentais devem compreender as novas realidades na Europa Oriental e
perceber que a inclusão das Igrejas Ucranianas no diálogo com o mundo pode
trazer mais benefícios do que o isolamento continuado.
Depois da queda do comunismo muitos ocidentais esperavam
que o mundo eslavo, silenciado durante tanto tempo, ficaria finalmente livre
para contribuir corretamente para a cultura cristã e para todo o mundo. Hoje,
com a criação de uma Igreja Ortodoxa Ucraniana, pode ser que uma voz importante
esteja finalmente a fazer-se escutar.
Myroslav Marynovych é vice-reitor para missão na
Universidade Católica da Ucrânia, em Lviv, na Ucrânia, e president do Instituto
de Religião e Sociedade da mesma universidade. Foi fundador do Ukraninian
Helsinki Group e prisioneiro de consciência entre 1977 e 1987. Presidiu às
estruturas da Amnistia Internacional na Ucrânia entre 1991 e 1996 e foi também
president do Centro Ucraniano da PEN International.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 2 de Fevereiro de 2019)
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