Transcrição integral da entrevista feita a Nicolas, um
cristão da Terra Santa que se encontra em Portugal para vender artesanato produzido
pelos cristãos de Belém. A entrevista foi feita o ano passado, mas na altura
não publiquei a transcrição no blog. Os artigos estão à venda na Igreja dos
Mártires, no Chiado e é uma maneira concreta de ajudar os cristãos na Terra
Santa, que tanto precisam.
Estás em Portugal,
mas originalmente és da Terra Santa, não é?
Sim, da Terra Santa, da cidade de Belém.
Cidade essa que
ganha uma importância muito especial nesta altura do ano...
Sim.
És cristão?
Sou cristão, católico.
Os cristãos em
Belém têm noção do significado do sítio onde vivem?
Sim. Sinceramente, temos um grande valor. Porque vivemos
num lugar muito importante, muito religioso, que se pode considerar um dos
lugares mais sagrados do mundo, onde nasceu o nosso salvador Jesus Cristo, e
temos um grande amor, grande fé, desse lugar, o único lugar que temos, na
cidade de Belém.
Belém é governada
pela Autoridade Palestiniana?
Sim.
Houve uma altura
em que os cristãos eram maioria em Belém...
Sim. Éramos quase 60% de cristãos no território da
Palestina, hoje em dia somos perto de 1%.
Com as guerras e acontecimentos no país ao longo dos anos
muitos cristãos emigraram e foi afectando a população.
E em Belém em
Particular?
São cerca de 50 mil habitantes, os cristãos são cerca de
25%.
Com a causa
palestiniana cada vez mais focada em movimentos islamitas, os cristãos ainda se
identificam com ela?
Continuamos sempre a fazer parte da situação do
território, mas sinceramente, como minoria que somos já não temos muita voz nem
muitas opções. Temos que ficar calmos e ter fé que um dia os problemas passam.
A maioria dos
cristãos que saem vão para onde?
Em 1910, 1915, começaram a ir para a América Latina, por
causa da perseguição dos turcos. Mas hoje em dia, onde tiverem acesso fácil,
saem para a Europa, América, América Latina, porque vão à procura de uma vida
melhor, segurança, paz, tranquilidade. Formar uma família sem conflitos nem
problemas.
No teu caso, sais
da Palestina para vir temporariamente à Europa. Mas depois voltas?
Muitas pessoas ofereceram-me estadia aqui, mas
sinceramente a minha família depende do meu trabalho e gostaria de ficar, mas
prefiro voltar para a minha terra, porque somos a pedra e o sal desta terra e
sem cristãos os lugares santos, com tempo, tornam-se apenas pedras e prédios.
Prefiro ficar na minha terra, porque sou um da minoria
cristã que fica na Terra Santa e a Terra Santa sem cristãos é um problema
grande.
Tens irmãos?
Sim, somos dois rapazes e uma rapariga.
E o teu irmão vem
ajudar-te nestes tempos em Portugal?
Sim, porque ele não tem emprego na Terra Santa, na parte
da Palestina. Belém é como Fátima, vivem do Turismo, dos peregrinos, mas muita
gente que escuta e vê na televisão acha que é perigoso, que não vale a pena ir,
que tem bombas e essas coisas, e como o nosso petróleo é o fabrico de
artesanato de madre-pérola e madeira de oliveira, por causa destes problemas
muitos cristãos tiveram de fechar as suas oficinas e sair do país. Então nós,
como vários cristãos que têm contactos noutras partes do mundo, tentamos trazer
artesanato dessas oficinas para mover os seus produtos e assim eles ficam nas
suas oficinas, com a esperança de ainda poder sobreviver.
Vocês aqui vendem
artesanato, mas não produzem...
Não, só trazemos directamente das oficinas de Belém.
A tua irmã também
está lá em Belém?
Ela está em Espanha, a estudar. Em Julho termina.
Arranjou um diploma através da Universidade Católica, porque também não tem
trabalho na nossa terra, mas assim que terminar vai voltar à cidade de Belém.
Os
desenvolvimentos dos últimos anos têm tornado a vida mais difícil para quem
vive destas actividades em Belém, não é?
Sim. Está muito difícil. É difícil falar de como está a
situação. E na Síria e no Iraque ainda está pior, mas por exemplo Portugal teve
guerra, problemas políticos, agora económicos, mas tem liberdade, paz e
prosperidade. Nós na Terra Santa sempre tivemos problemas políticos, religiosos
e económicos, há dois mil anos. Não sabemos o que é paz, nem prosperidade nem
liberdade. Mas continuamos nesta terra. Viver na Terra Santa é ser um herói.
A principal
dificuldade nos últimos anos tem sido o muro...
Sim, são quase 720 quilómetros...
Que divide
territórios e impede a chegada de outras pessoas a Belém, não é?
Sim.
Como é que viveram
a ida do Papa à Terra Santa?
No tempo do Papa Bento XVI, quando ele foi à Terra Santa
em 2009, estive lá, e ele trouxe muita gente e uma mensagem. Mas com o Papa
Francisco veio ainda mais gente e mostrou ao mundo que precisamos de paz, que
não tem de haver muralhas, mas pontes e surpreendeu-nos ao parar diante do muro
e rezar diante do muro. Com a sua mensagem deu-nos uma grande paz e ânimo para
ficar nesta terra.
Os israelitas
defendem-se, dizem que desde que construíram o muro que de facto diminuíram os
ataques...
É preciso ver para crer...Eles dizem que baixou muito.
Mas com a muralha há pessoas que têm terrenos do outro lado e já não podem
cultivar, não podem construir. Dificulta muito o acesso. Como cristãos temos
direito a ir ao outro lado duas vezes por ano, no Natal e na Semana Santa, a
certas horas e em certas partes. É mais fácil para um turista conhecer a nossa
terra do que para nós mesmos.
Estava a dizer que
há muitos turistas que têm medo porque pensam que há instabilidade e bombas em
toda a parte. Para quem pensa eventualmente ir visitar, o que tem a dizer?
Diria que não há essas coisas. Claro que acontecem, mas é
longe. Nos lugares de turismo, de peregrinação, nunca aconteceram esses
conflitos. Estive com grupos em Junho e Julho e não se passou nada. É seguro e
recomenda-se. Recomendo muito, é uma viagem da vida, é onde nasceu a nossa
religião e não é como parece nas notícias.
Como é que é o
Natal em Belém? Claro que vão muitos turistas, mas para vocês, que tradições
têm?
Há dois anos colocaram uma árvore de Natal na praça da
Manjedoura, onde transmitem a Missa do Galo e deram um pouco mais de vida e de
sabor à cidade de Belém, com mais decoração, mais luzes, uma vez que este lugar
é a capital do Natal. Nós como cristãos temos a tradição de estar em família.
Jantamos juntos e depois ir à missa, mas com poucos cristãos a tradição, a
decoração, essas coisas, estão a perder-se um pouco cada ano.
Certamente têm
vizinhos e amigos muçulmanos, eles respeitam os vossos festejos?
Respeitam muito, sim. Assim como nós respeitamos o
Eid-al-Adha ou o Ramadão, duas festas muito importantes, cada um respeita o dos
outros.
Há quantos anos
vem a Portugal vender estes produtos?
Há quase cinco anos, de Novembro a Dezembro.
Vale a pena?
Vale. Eu diria que vale a pena porque conhecemos melhor
os países, vendemos os produtos das oficinas de Belém e gosto muito do país.
Também não tenho outra opção.
Consegue dinheiro
pelo menos para pagar as viagens?
Sim. Como trazemos as coisas directamente das oficinas e
não da loja, o preço é acessível e são coisas de artesanato e religiosas e
coisas de que os portugueses muito gostam, como presépios, cruzes, terços.
Há quanto tempo é
que a sua família é cristã?
Essa é uma pergunta que nos fazem muitas vezes, porque
trabalho como guia em Belém e muitas pessoas pensam que não há cristãos, pensam
que só há judeus e muçulmanos, mas a minha família, toda a vida foi cristã. Não
é como noutros países onde se pode trocar de religião, lá isso não acontece,
por tradição e por cultura. Toda a vida fomos católicos, desde a altura de
Jesus.