Padre Duarte Andrade e Sousa |
Transcrição integral da entrevista feita ao padre Duarte Andrade e Sousa, sobre a visão cristã da morte, a tragédia que se abateu sobre a sua família em 2014, com o assassinato do seu irmão, e rituais fúnebres. A reportagem pode ser lida aqui.
Existe alguma
confusão popular entre os dias 1 e 2 de Novembro. Pode explicar rapidamente o
que significam as datas para a Igreja?
No dia 1 de Novembro celebramos a solenidade de Todos os
Santos e no dia 2 de Novembro o dia dos Fiéis Defuntos. São duas celebrações
bastante diferentes, apesar de estarem sempre unidas, claro, na fé da Igreja, a
vida e a morte.
O dia 1 de Novembro, a solenidade de Todos os Santos,
como o nome indica, é a solenidade que reúne todos os santos. Durante o ano
cada dia tem os seus santos, uns mais conhecidos, outros menos conhecidos na
história da Igreja e na devoção das pessoas, mas há um dia consagrado a todos
os santos, aqueles que nós conhecemos e todos os outros que confiamos à
misericórdia de Deus, que acreditamos que já estejam no Céu e que já se
encontram plenamente com Deus.
Nessa grande celebração pedimos a intercessão de todos os
santos por cada um de nós que ainda estamos neste caminho da Igreja sobre a Terra.
A Igreja apresenta-nos os santos para usarmos como modelo, quase como provas
para a nossa vida de que é possível a santidade, que a santidade é algo que
Deus deseja para cada um de nós e que isso é possível, cada um segundo a sua
condição, no seu tempo, com a sua história, mas é um plano de Deus para cada um
de nós que é possível ser concretizado.
Nestas alturas as
pessoas aproveitam muito para ir visitar os cemitérios, deixar flores e cuidar
das campas. É uma tradição de que a Igreja aprova?
Sim, é uma tradição de que a Igreja aprova e recomenda.
Apesar de ser uma tradição que tem vindo a decair. O cuidado que as pessoas têm
pelos cemitérios, irem visitar os seus mortos, é uma devoção que vemos muitas
vezes, mas sobretudo nos meios urbanos, e no geral, tem vindo um bocado a
decair. Mas é importante rezarmos por aqueles que já partiram, confiá-los à
misericórdia de Deus, mesmo o costume de se pedir para celebrar uma missa por
intenção, como se costuma dizer, ou seja, oferecermos uma missa por sufrágio da
alma, rezarmos por aqueles que já partiram, faz parte deste nosso desejo de que
aquela pessoa que nós amamos, ou todos os que já partiram, mesmo que não os
conheçamos, que já estejam na misericórdia de Deus e que já o vejam face a
face.
O padre Duarte tem
apenas 30 anos. Ainda se lembra do primeiro enterro a que presidiu?
Lembro-me do primeiro enterro a que presidi porque foi do
meu avô, e portanto foi fácil de decorar. Eu era diácono ainda, não tinha sido
ordenado padre e marcou-me muito, claro, por ter sido do meu avô mas também por
ter sido o primeiro de muitos que entretanto fiz e que continuarei a fazer, se
Deus quiser, e pelo momento de encontro com Deus que foi para mim e para todos
aqueles que lá estavam.
Sem ser esse caso
do seu avô, o primeiro enterro a que presidiu, de uma pessoa que não conhecia.
Sentia que estava bem preparado?
Sentia-me preparado por que tenho fé e acredito que Nosso
Senhor me chamou a uma missão, que Nosso Senhor me havia de dar aquilo que era
preciso, desde que eu me dispusesse a colaborar com a Graça de Deus.
Os enterros são momentos de grande fragilidade das
pessoas, muitas vezes sabemos que é a única vez em que se aproximam da Igreja,
e estão num momento de fragilidade, revolta às vezes, incompreensão ou só
tristeza. Por isso é um momento muito delicado para nós nos aproximarmos das
pessoas, naquilo que fazemos, nos nossos gestos, no nosso acolhimento e
sobretudo a maneira como falamos da vida e da morte.
Para mim, enquanto padre, é sempre uma grande
responsabilidade. Lembro-me uma vez numa paróquia onde estava fiz um enterro de
uma senhora e três dias depois houve outra senhora que morreu também e que
tinha estado neste primeiro enterro. Telefonou-me o padre que sabia que essa
segunda senhora tinha morrido e disse-me: “Olha Duarte, aquela senhora que
morreu hoje tinha estado no enterro que fizeste há três dias, portanto a última
vez que ela esteve numa Igreja e ouviu falar de Deus foi pelas tuas palavras.
Espero que tenhas dito qualquer coisa de jeito."
Para mim isso foi muito importante para perceber a
responsabilidade que eu tenho. Naquele momento pode ser a última vez que alguém
ouve falar de Deus e eu penso, no meu exame de consciência, que testemunho é
que eu dou, o que é que eu digo às pessoas, sobretudo naqueles momentos.
Existe uma tensão,
não existe? Entre a tristeza e o luto natural que as pessoas sentem e a fé na
vida eterna. Quando se fala com pessoas que perderam familiares, como é que se
navega essa fronteira, sem esquecer a fé mas sem menosprezar o luto?
Acho que é importante, pelo menos eu procuro fazer isso –
até por experiência própria – primeiro compreender e aceitar aquilo que a
pessoa está a sentir e está a viver. E por isso é natural a tristeza, é natural
as lágrimas, humanamente falando, claro que é natural, porque se nós gostamos
de alguém, claro que nos custa, por mais fé que tenhamos, custa-nos a ausência
dessa pessoa, principalmente em situações de que não estávamos à espera.
Claro que uma coisa é se alguém morre porque é muito
velhinho e estava doente há muito tempo e tivemos tempo para nos preparar,
outra coisa é se alguém morre –
passe a expressão, que não é certa – sem razão nenhuma,
ou morre de uma maneira injusta. Não podemos ignorar isso, eu nunca ignoro
isso. Não podemos dizer às pessoas que não, que estamos contentes porque
acreditamos na vida eterna, claro que se percebe humanamente que aquela pessoa
esteja triste e confusa e é preciso aceitar isso, mas ao mesmo tempo fazer
aquilo que a Igreja faz, que é dar um horizonte maior, um horizonte de
esperança, dizer: “Claro que choramos agora mas a fé dá-nos aquela paz e aquela
serenidade de saber que isto não é um final, mas uma porta para uma vida melhor”.
E confiamos na misericórdia de Deus e apontamos à pessoa um caminho, para que
essa pessoa não fique presa só na morte, mas veja para além da morte.
Duarte Andrade e Sousa com o seu irmão e a mãe |
Faz hoje um ano e dois meses que o meu irmão foi
assassinado no Cais do Sodré. Apareceu na comunicação social, houve uma
discussão, foi esfaqueado, esteve vários dias no hospital de São José e acabou
por morrer. E isso, claro, na minha vida foi um momento muito marcante na minha
vida, na vida da minha família, dos nossos amigos, mas ao mesmo tempo não tenho
dúvida que foi dos momentos mais claros para mim da presença de Deus e foi isso
que eu sempre procurei dizer e viver, tanto naqueles dias em que nos juntávamos
a rezar pelo meu irmão Diogo, como nos dias que se seguiram.
Porque no meio daquela tristeza e daquele medo, daqueles
dias sem saber o que ia acontecer, senti de forma muito clara a presença de
Deus. Sobretudo a presença de Deus na Sua Igreja, naqueles que estavam à nossa
volta, na Igreja, na forma como rezamos, na maneira como senti que sempre que a
Igreja reza pelos moribundos, sempre que a Igreja reza pelos mortos, sempre que
reza pelos mortos (e fá-lo todos os dias), está a rezar por pessoas concretas,
não estamos a rezar por todos os defuntos no geral, e isso hoje em dia ajuda-me
a viver a minha fé.
No próximo dia dos Fiéis defuntos, para mim esses fiéis
defuntos não são só anónimos, mas são aqueles que tocaram a minha vida, o meu
irmão, os que estão à minha volta, os meus amigos que já partiram, que são
esses defuntos que têm caras. E se alguns deles têm caras e me dizem tanto,
imagino para Nosso Senhor que conhece o coração de cada um e de toda a
humanidade, imagino a importância que Nosso Senhor dá a cada um no seu coração.
O facto de, como
padre, ter lidado já muitas vezes com a morte de alguma forma o preparou melhor
para lidar com isso?
Acho que me deixou mais bem preparado, seguramente. Apesar
de, claro, quando nos calha um caso mais pessoal é completamente diferente,
porque nós fazemos muitos enterros, e claro que é diferente fazer um enterro de
uma pessoa mais velhota que não conheço, e que tem duas ou três pessoas – e às
vezes vemos também esta crueza da morte de pessoas que não têm quase ninguém na
sua vida – claro que é diferente fazer um enterro de um “anónimo” do que fazer
o enterro do meu irmão nas circunstâncias trágicas em que ocorreu. Mas, estando
preparado, porque muitas vezes lidamos com a morte, é sempre algo muito
impactante na nossa vida, na minha vida.
Sobretudo, qual é a minha resposta de fé? Eu que sei a
teoria e eu que sei a doutrina, como é que eu na vida consigo pôr isto em
prática? Porque isso é sempre o desafio na nossa vida, enquanto cristãos, não
fazer da nossa vida em Igreja apenas o conhecimento de uma doutrina, mas como é
que eu vivo o encontro com Jesus, que acontece na vida do dia-a-dia, nos bons
acontecimentos e também naqueles que são difíceis, como na morte de alguém?
Mas penso que foi muito importante para mim claro, e para
a minha família, o Diogo ter tido um irmão padre neste momento, acho que foi
muito importante para a família e para os amigos e ajudou-nos a todos a viver
de maneira verdadeiramente cristã, ou seja, não escondendo nada do que era a
tristeza e a perplexidade daquele momento, mas ao mesmo tempo com um grande olhar
de fé e de serenidade, por sabermos que Nosso Senhor estava ali e se isto
aconteceu, Nosso Senhor com certeza havia de tirar algum bem para as nossas
vidas, alguma maneira de nos aproximar. Se Nosso Senhor nos julgou dignos de
vivermos isto, foi porque com certeza tem um plano de grande amor para cada um
de nós, disso não tenho dúvidas.
O padre Duarte
acabou por não poder viver esse processo simplesmente como irmão mais novo que
é… Sendo padre viu-se projectado para o centro das atenções. Como é que lidou
com isso?
Graças a Deus tenho muitos e bons amigos, amigos
católicos, e uma família – graças a Deus – muito unida e muitas vezes
perguntavam-me isso, naqueles dias estavam preocupados, porque como eu disse o
Diogo ficou vários dias no hospital, ficou nove dias, sem sabermos o que ia
acontecer, e eu celebrei todos os dias missa no hospital, e muitos vinham ter
comigo dizer “Duarte, mas também precisas de chorar, se for preciso, de deixar
de estar no centro das atenções”.
Mas houve algo misterioso aqui, primeiro porque sempre me
senti acompanhado, e disse isso muitas vezes, Nosso Senhor não nos tirou aquele
sofrimento, não nos protegeu numa redoma em que nada de mal nos acontece,
porque nós católicos sofremos o que as outras pessoas sofrem, mas Nosso Senhor
não permitiu que vivêssemos isso sozinhos, e isso fez toda a diferença, porque
viver este drama sozinho seria muito mais difícil de aguentar.
A experiência de Igreja que fiz foi decisiva para mim.
Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, viver como pastor, como padre, esta
situação foi a melhor maneira que tive para lidar com isto. Consolar os outros,
dar um testemunho, sem pretensões de ser alguém que não sente e que está muito
resolvido com a morte, mas ao mesmo tempo estar ali no meu papel de pai e pastor
– que é o que sou, porque sou padre – foi a melhor maneira que eu tive de
viver. Consolando os outros há um grande consolo para mim. Saber que não estou
sozinho naquele momento, que não estava sozinho, e que se calhar através de
mim, que sou um instrumento imperfeito, houve outros que se encontraram
verdadeiramente com Deus, que quando chegavam ao hospital estavam cheios de
revolta e ouvindo as minhas palavras e o testemunho da minha família se
acalmaram e entregaram mais nas mãos de Deus, isso a mim dava-me um grande
consolo e ajudou-me a viver esses dias e até agora.
Sendo um padre
novo, deve acontecer-lhe estar em enterros, por exemplo, e do outro lado as
pessoas pensarem “o que é que este miúdo sabe da vida?” Sente que aquilo pelo
que passou o ajudou a estar mais próximo das pessoas que serve?
Claro. Foi uma diferença grande para mim. Sempre que
celebro a missa lembro-me do meu irmão e rezo pela alma do meu irmão. Mas é
diferente.
Nunca tive a pretensão de dar grandes lições de moral nos
meus enterros, mesmo quando não tinha morrido ninguém próximo como o meu irmão,
mas ao mesmo tempo é diferente. Quando passamos por isso percebemos melhor as
lágrimas das pessoas e, sobretudo, temos um olhar mais compreensivo. Não tira
nada a certeza da nossa fé, por isso digo sempre palavras de esperança e eu
procuro sempre, mesmo nos enterros, nas homilias que faço, olhar para a palavra
de Deus e partir da palavra de Deus, porque a palavra de Deus diz tudo, e
lendo-a e ajudando as pessoas a voltar ao que foi lido, ajuda-nos a todos.
E quando falo, falo para mim também, quando falo sobre a
morte, porque não é um assunto resolvido, porque me lembro do meu irmão todos
os dias, sofro com a sua ausência, quando falo, falo para mim e para os outros.
Falo da palavra de Deus, que mesmo que seja a vigésima vez naquele dia que a
leia, é Nosso Senhor que está a interpelar o nosso coração, e por isso de certa
maneira isso facilita a maneira como eu falo, porque não estou a dar recados a
ninguém, mas estou a partilhar com as pessoas aquilo que a palavra de Deus nos
diz a cada um de nós e a mim me diz sempre que celebro alguma missa.
Duarte Andrade e Sousa, o seu irmão Diogo e amigos na ordenação sacerdotal de Duarte. |
De facto nós não fomos feitos para a morte, fomos feitos
para a vida. Nosso Senhor criou-nos, Ele que é, como diz São João, capítulo 10,
versículo 10: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.
Nosso Senhor é um Deus da vida, que nos quer dar a vida.
Nós sabemos que pelo pecado vem a morte, ou seja o corte desta relação que temos
com Deus, e portanto é sempre algo que nos assusta porque é sempre algo que nos
afasta de Deus, a morte em si afasta-nos de Deus. Agora, Nosso Senhor, na sua
misericórdia, enviando ao mundo Jesus Cristo, venceu este corte de forma
absoluta na Ressurreição. Por isso é que Nosso Senhor encarnou, fez-se homem,
viveu como nós, em tudo igual a nós excepto no pecado, diz-nos a Escritura,
morreu, como consequência dos nossos pecados, mas venceu esse corte definitivo
que era a morte, para nos voltar a aproximar a Deus, para nos dar essa
oportunidade de, como era o desejo inicial de Deus, vivermos sempre junto dele.
Agora, claro que tudo o que é pecado e tudo o que é morte
nos assusta, porque fere o íntimo do nosso ser, que foi feito para a relação
com Deus, que é exactamente o contrário daquilo para o qual fomos criados, que
é o amor.
E por isso é sempre uma experiência em todas as épocas,
claro que depois há épocas em que se manifesta de forma mais clara este medo da
morte, tentar esconder tudo o que são referências à morte, mesmo em coisas
práticas. Hoje em dia, por um lado, expõem-se as crianças a todos os tipos de
violência e conteúdos que não são adequados às crianças, situações difíceis,
mas por outro lado esconde-se a morte, os mortos, situações de velhice e de
doença prolongada...
Já ouvi muitas vezes dizer “não, o avô está muito doente,
está quase a morrer, não quero que o meu filho veja o avô dele nesta fase final
para não ficar com uma má imagem”. Parece que estamos a proteger para não gerar
um trauma, mas na verdade não estamos a preparar para aquilo que sempre
aconteceu, a morte acontece na nossa vida e temos de olhar com olhar de fé para
a morte, um olhar de esperança, não negando aquilo que é humano em nós e da
dificuldade que sempre teremos com a morte, mas percebendo que não há melhor
maneira de lidar com a morte do que viver bem na graça de Deus, porque se nós
nos encontramos com Deus em cada dia, se para nós Deus deixa de ser um
desconhecido mas é aquele que está à nossa volta e que permite a nossa alegria,
não havemos de temer aquele encontro definitivo, porque já foi preparado por
centenas e milhares de encontros quotidianos na nossa vida com Deus. Agora,
claro que se não nos encontramos com Deus, claro que este último encontro nos
assusta, porque para nós não é uma certeza e para nós será sempre algo
assustador.
As cerimónias
fúnebres, fazem de facto diferença? Uma celebração digna e solene, pode ajudar
as pessoas a viver e enfrentar estas situações difíceis?
Absolutamente. Em relação às cerimónias eu conheço melhor
hoje em dia aquilo que vejo, porque não vou aos outros, mas ouço muitas vezes
pessoas – e isto é para nós padres em particular motivo de exame de consciência
– a maneira como os sacerdotes celebram as celebrações, a dignidade que põem,
conseguirem, mesmo que seja um desconhecido, que a celebração das exéquias não
seja um mero serviço que se presta durante meia hora, ou vinte minutos para
aquelas pessoas que não conheço nem me interessa conhecer.
É importante estarmos inteiros naquilo que fazemos. Fazer
o que Nosso Senhor fazia. Nosso Senhor tinha compaixão, isto é, punha-se no
lugar dos outros, compadecia-se dos outros, e é isso que devemos fazer. Não
falar para os outros, mas estar com os outros, alegro-me com quem se alegra e
entristeço-me com quem se entristece, e isso vê-se também na maneira como
celebro.
Eu procuro celebrar com solenidade, não apenas a solenidade
litúrgica, mas com a gravidade que a situação impõe, com as palavras de
esperança que são absolutamente necessárias, mas sobretudo no acompanhamento às
pessoas, nos pormenores de ir ter com as pessoas, de mostrar disponibilidade e
ajuda se a pessoa quiser, porque não é numa celebração de vinte minutos que
resolvemos a situação, mas mostrar que a Igreja pode e deve continuar a
acompanhar a família enlutada.
E é importante que as pessoas façam o seu luto. Mesmo em
sinais exteriores, que muitas vezes hoje em dia têm vindo a desaparecer, é
muito importante porque mesmo pessoas com muita fé não se podem esquecer que
humanamente é um embate quando alguém morre. E é bom estarmos preparados para
isso e aceitarmos esta condição.
Às vezes as pessoas ficam muito revoltadas e dizem-me “não,
eu tenho muita fé, acredito muito, como é que é possível estar assim tão
triste? Devia estar mais feliz, a pessoa está no Céu, mas mesmo assim estou
triste”. Claro! É normal a pessoa estar triste e é importante a pessoa aceitar
isso, integrar isso, e fazer um caminho.
Claro que não é ficar preso no luto para sempre, obcecado
pela morte de alguém, mas aceitar que é preciso um tempo para fazer luto e os
sinais exteriores e a maneira como celebramos ajuda as pessoas a assumir isso.
E mesmo a crueza dos sinais e muitas vezes vemos mesmo, com as cremações, um “não
quero enfrentar este assunto, faz-me confusão, ir a um enterro, ver a
sepultura, a campa, quero resolver isto...”. Mas pode ser importante para as
pessoas lidarem com isso. Custa, mas é importante que comecem desde logo a
lidar com isso, para depois integrarem e depois resolverem. Porque afastar o
assunto da morte para o lado é adiar um problema, e ele vai crescendo e sempre
vai embater connosco, porque à medida que vamos crescendo e vivendo, amigos e
familiares vão morrendo à nossa volta e não podemos fugir disso. E a maneira
como lidamos com a morte dos outros ajuda-nos a lidar com o assunto da nossa
própria morte.
Duarte e Diogo, em crianças |
Realmente as cremações podem acontecer hoje em dia. A
questão aqui é o respeito pela matéria, pelo corpo. Sabemos que o cadáver, para
nós não é apenas lixo. Portanto a cremação, quando era feita no sentido de
despojar-me daquilo que não interessa nada e deitar fora como se fosse lixo,
não era bem visto pela Igreja, porque era um desrespeito pela matéria. Nós
acreditamos no final dos tempos, na ressurreição da carne, como rezamos todos
os domingos no Credo, e na segunda vinda de Jesus. Portanto nós devemos dar
respeito aos nossos defuntos.
Agora, do ponto de vista pessoal, para mim faz mais
sentido o enterro que a cremação, porque para mim é importante haver um lugar
onde possa ir rezar. Muitas vezes as pessoas dizem “não vou estar a enterrar o
meu pai, filho ou o meu irmão, porque depois nunca vou ao cemitério e depois
para estar lá uma campa abandonada...” É verdade, não basta apenas a pessoa
enterrar os seus entes queridos, mas cuidar disso. Só que o próprio gesto de ir
ao cemitério, rezar e cuidar da campa é um processo de luto que pode ser
importante para a pessoa, confrontar-se com a morte, ir a um sítio.
Muitas vezes as pessoas dizem: “Cremei o meu pai, mas
sinto falta de um sítio onde possa ir rezar. Claro que rezo e falo com o meu
pai sempre em qualquer lado, mas era diferente se eu tivesse um sítio onde
pudesse ir pôr umas flores, rezar um terço, estar ali um bocadinho, no dia dos
fiéis defuntos, visitar”.
Não é por acaso que enterramos assim os nossos mortos e
acho que faz sentido, e ajuda-nos a viver a morte, ir ao cemitério. Para
algumas pessoas ir ao cemitério é algo assim assustador, mas não pode ser. A
morte e a vida acontecem todos os dias e é importante enfrentarmos isso,
enfrentar sempre com a esperança cristã.
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