Wednesday 25 January 2023

Alhos, bugalhos e abusos

Em Agosto de 2018 o Procurador Geral da Pensilvânia, nos EUA, publicou um relatório sobre os abusos sexuais na Igreja na maior parte das dioceses daquele Estado. Não foi o primeiro relatório do género a ser publicado, e vários anos antes tinha sido publicado um relatório semelhante sobre a Arquidiocese de Philadelphia e a Diocese de Altoona-Johnstown, mas o relatório de 2018 foi divulgado apenas algumas semanas depois das revelações bombásticas sobre o ex-Cardeal Theodore McCarrick e o falhanço da Igreja em lidar com décadas de abusos por ele praticados.

Com detalhes de denuncias feitas por mais de 1.000 vítimas, sobre mais de 300 alegados abusadores em seis dioceses, o relatório da Pensilvânia lançou um camião cheio de combustível sobre um incêndio que já estava bem vivo. O resultado abalou a Igreja Católica nos Estados Unidos, provocando danos eclesiais e institucionais com as quais a Igreja terá de lidar, cá e a nível global, durante uma geração ou mais.

Alguns meses depois de ter saído este relatório, Peter Steinfels escreveu um artigo na revista Commonweal para colocar e responder a uma questão que a maioria das pessoas não estava sequer a contemplar. Os crimes descritos no relatório eram terríveis, os números assustadores. Mas a indignação gerada em 2018 tinha tanto a ver com encobrimento como com os crimes originais. Seria mesmo verdade, perguntou Steinfels, que enquanto “padres estavam a violar rapazes e raparigas, os homens de Deus responsáveis por eles não só não faziam nada, como escondiam tudo?”

A Igreja tinha mesmo passado décadas a investir a sua energia e esforços em esconder a verdade em vez de resolver o problema? A conclusão de Steinfels, cuidadosamente sustentada nas próprias conclusões do relatório, foi um claro “não”. Nas suas palavras:

No caso da Pensilvânia, quer se olhe para a forma como se lidaram com denúncias antigas ou para a prevenção de novos casos, a conclusão que surge de uma leitura cuidadosa e isenta do relatório é esta: A Carta de Dallas funcionou. Não funcionou na perfeição, e carece de melhorias regulares e constante atenção. Mas funcionou.

O fogo destrói, mas também pode purificar.

A crise de 2002 conduziu à Carta de Dallas, uma ferramenta imperfeita mas em larga medida eficiente que tornou as paróquias americanas muito mais seguras para crianças e permitiu responsabilizar centenas de abusadores. O novo escândalo de 2018 incentivou a Igreja – não só nos EUA, mas também em Roma – a fazer mudanças significativas na forma como lida com alegações de abusos, em particular as que dizem respeito a bispos e alto clero.

Ninguém deve supor que a conta – material e espiritual – da crise dos abusos já foi inteiramente paga. Nem de longe nem de perto. Nem devemos imaginar que o processo lento de purificação já terminou. Basta um olhar rápido pelas notícias (veja-se os recentes casos envolvendo o Pe Rupnik e D. Ximenes Belo) para se perceber que estamos ainda longe de onde gostaríamos de estar.

A forma como a Igreja lida com alegações de abusos sexuais clericais já progrediu muito, ainda que, duas décadas depois da Carta de Dallas, haja trabalho por fazer. Mas como podemos medir esse progresso? A Igreja está a progredir na protecção de menores em relação a quê? Melhorou muito na promoção da transparência em comparação com o quê?

Consideremos o seguinte.

No início deste ano o Gabinete do Inspector-Geral da Secretaria de Educação de Chicago publicou o seu próprio relatório, abrangendo o período entre 1 de Julho de 2021 e 30 de Junho de 2022. O relatório revela que houve mais de 600 denúncias de abusos praticados por adultos contra estudantes nas Escolas Públicas de Chicago só em 2021-2022. Destas, mais de metade foram consideradas fundamentadas e em 16 casos foram deduzidas acusações criminais.

Chicago é a terceira maior administração escolar dos Estados Unidos e é a única que tem uma unidade inteira de investigação dedicada a lidar com alegações de abusos sexuais nas escolas, uma iniciativa que começou em 2018. (Se é encorajador ou totalmente deprimente que exista sequer uma Unidade de Alegações Sexuais para escolas é uma questão de perspectiva.)

A comparação entre as dioceses católicas da Pensilvânia e as Escolas Públicas de Chicago não é propriamente uma questão de alhos e bugalhos, mas pode ajudar a compreender alguns dos avanços feitos pela Igreja neste país.

Ao longo do mesmo ano tratado pelo relatório da Inspecção-Geral de Chicago (2021) a Igreja Católica em todo o país recebeu 30 denúncias actuais de abusos envolvendo crianças, seis das quais foram consideradas credíveis. Das 3,103 denúncias históricas recebidas por dioceses católicas em 2021, apenas 38 diziam respeito a ofensas alegadamente cometidas depois do ano 2000. Nas escolas públicas de Chicago, repito, houve mais de 600 denúncias, das quais metade foram consideradas fundamentadas. Num só distrito escolar. Num só ano.

Para avaliar o progresso da Igreja em lidar com a crise de abusos é necessário fazer comparações razoáveis com outras instituições que também têm de lidar com a mesma praga de abusos. E isso significa ter expectativas razoáveis sobre a forma como medimos o progresso e o sucesso.

Se quer encontrar listas de professores ou pessoal educativo credivelmente acusados de abusos sexuais, procurará em vão. Não existem políticas de tolerância zero que permitam afastar funcionários escolares por denúncias que nunca são provados em tribunal. Também ninguém defende o casamento dos professores para travar a onda de abusos nas escolas, e o relatório da inspecção-geral de Chicago nunca refere a palavra “clericalismo”.

É claro que a Igreja tem outras responsabilidades morais, precisamente por ser aquilo que alega ser. A conduta dos padres e bispos católicos deve ser medido segundo a bitola do Evangelho, e não dos padrões impostos pela lei civil.

A Igreja não merece nenhum prémio por ser melhor a prevenir e a relatar o abuso sexual de crianças do que o sistema de escolas públicas. Mas deve ser vista – e ver-se – como um modelo para todos os que querem combater a epidemia de abusos sexuais, que afecta toda a sociedade.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 12 de Janeiro de 2023)

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