Para um filho que perdeu o pai
é fácil desejar que as coisas não fossem como são. É tentador deter-nos nas
inumeráveis possibilidades do que poderia ter sido – netos que ficaram por
conhecer, músicas por cantar, alegrias por partilhar. Mas deixarmo-nos levar
por essa tristeza – e admito que há uma certa doçura em fazê-lo – apenas
disfarça a belíssima gratuidade da vida, por mais breve que seja. O facto de
tudo não ser como eu gostaria é um pequeníssimo preço a pagar por ter existido
de todo.
A Quaresma é um tempo de
preparação, de olhar para o futuro. De certa forma a Quaresma é-me mais cara
desde que o meu pai morreu. A esperança da Páscoa é a esperança do que há de
vir, a esperança da restauração, da ressurreição. Mas a esperança não é só para
o futuro. A esperança muda o espectro de como podemos sofrer, daquilo pelo qual
estamos dispostos a sofrer. A esperança permite-nos, como São Paulo, contar
tudo o que seja o aqui e agora como perda. A esperança liberta-nos.
Há um episódio da grande série
da HBO sobre a II Guerra Mundial, “Band of Brothers”, sobre o qual penso com
frequência e que ilustra esta questão. O cabo Albert Blithe salta de
paraquedas para a Normandia na véspera do Dia-D. No caos que se segue, separa-se
do seu pelotão. Mas em vez de partir em busca dos seus camaradas, Blithe
esconde-se numa valeta, por baixo de uma sebe, com medo. Tal é o pânico, que
sofre de “cegueira histérica”. Ou seja, teve tanto medo que ficou literalmente
sem ver.
Blithe acaba por recuperar a
visão e reagrupa-se com os seus camaradas, mas está assombrado por o que
considera ser a sua cobardia – um sentimento reforçado pelos actos de bravura
que testemunha à sua volta. Certa noite, na linha da frente, Blithe encontra o
Tenente Speirs, um homem com uma reputação de brutalidade sanguinária. Blithe
decide confessar a sua cobardia a Speirs e a resposta que este lhe dá, sobre o
medo face à morte, ficou na minha memória.
Speirs: Sabes porque é
que te escondeste nessa valeta, Blithe?
Blithe: Estava com medo…
Speirs: Todos temos medo.
Tu escondeste-te naquela valeta porque achas que ainda há esperança. Mas, Blithe,
a única esperança que tens está em aceitar o facto de já estares morto. E
quanto mais depressa o aceitares, mais depressa conseguirás agir como um
soldado deve agir, sem misericórdia, sem compaixão, sem remorsos. Toda a guerra
depende disso.
Esta visão de Speirs é obscura
e pagã. Mas se a sua visão é pagã também possui um certo realismo. A falsa
esperança da autopreservação, a falsa esperança de que podemos adiar
indefinidamente a morte, leva apenas a paralisia e medo ofuscantes (literalmente, no caso de Blithe). Se a morte significa o aniquilamento e o
esquecimento, então a única opção que temos perante a morte é a aceitação. Esta
realização livra-nos da cegueira da falsa esperança e permite-nos ver com mais
claridade a tarefa que temos pela frente.
Como o Papa Bento XVI escreveu
na Spe Salvi, “o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se
podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta
tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança,
vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova.”
Acrescente-se a esperança
Cristã, nascida da fé, à inevitabilidade da morte e toda a experiência humana
se altera. A esperança cristã não previne a morte. A esperança cristã não
atrasa sequer a morte. Mas uma vez que a esperança cristã é a esperança na vida
eterna, altera completamente a forma como vivemos o aqui e o agora. A nossa
esperança por aquilo que virá liberta-nos da necessidade de nos agarrarmos demais
à vida. A esperança permite-nos viver a nossa vida generosamente e sem medo. A
esperança liberta-nos para enfrentar a Cruz e abraçá-la.
Este é o coração da Boa Nova:
A esperança, nascida da fé, liberta-nos para o amor. Aquele que tenta salvar a
sua própria vida – para preservar aquilo que no final de contas não pode ser
preservado – perdê-la-á. Quem perder a sua vida por amor – aquele que sabe que
já morreu em Cristo, e para quem tudo o resto é perda – é quem receberá a vida
eterna.
A nossa esperança não está em
prevenir ou evitar a morte, mas em aceitar o facto de já termos morrido em
Cristo. Quanto mais cedo aceitarmos isso, mais depressa poderemos viver como um
cristão deve viver: cheios de misericórdia, cheios de compaixão, e cheios de
esperança.
A Quaresma é um tempo em que
devemos praticar a morte: morrer para nós mesmos de formas pequenas e grandes.
Para o mundo isto é mera cegueira. Mas as muitas mortes da Quaresma são uma
lembrança da nossa esperança que nos liberta para viver a Páscoa… E tudo o que
fica adiante.
Stephen P. White é
investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em
Washington.
(Publicado em The Catholic
Thing na terça-feira, 29 de Março de 2022)
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