A mente funciona de forma curiosa: as memórias e as ideias cruzam-se, conduzindo umas às outras. Como neste caso: eu adoro ficção científica, e por isso dei por mim, recentemente, a rever o filme Soylent Green, de 1973, com Charlton Heston e Edward G. Robinson. A história desenrola-se numa distopia marcada por sobrepopulação e desastre ecológico. Com a vida animal e vegetal destruída, as pessoas subsistem à base de bolachas orgânicas, Soylent Encarnado e Soylent Amarelo – manufacturadas pelo gigante transnacional, Soylent Industries.
A vida é dura e difícil. As pessoas são encorajadas a
optar pelo suicídio assistido no centro de eutanásia local, em vez de morrerem
nas ruas. Caso o façam, antes de serem terminados são recompensados com uma
breve imagem da beleza assoladora do planeta antes de ter sido estragado. Mas
surgem boas notícias. Um produto novo e melhor, Soylent Green, acaba de ser
lançado, mais saboroso e nutritivo que os anteriores. O segredo, conforme
descobre o nosso herói, desempenhado por Heston, está na fonte do novo produto:
cadáveres humanos.
Naturalmente, o herói fica horrorizado. Mas pensando bem,
será que isso faz sentido?
Pensemos por uns momentos. No estado de Washington já
estamos a fazer compostagem com cadáveres. Outros estados estão a pensar no
mesmo. A revolta contra o consumo daquilo que outrora foram pessoas é
claramente uma norma cultural herdada de um passado pré-racional. Para que é
que servem as ciências sociais, se não para nos conduzir da escuridão das
patologias sentimentais, para a luz de um futuro mais racional? Não é essa a
essência das nossas profissões de assistência?
Jonathan Swift compreendia isto. Ele era um homem à
frente do seu tempo. No seu ensaio “Uma proposta modesta” (1729), que alguns
idiotas insistem em chamar “sátira”, Swift avança, com muito bom-senso, uma
solução para o problema da pobreza e sobrepopulação da Irlanda naqueles tempos.
Os pais irlandeses deviam vender os seus bebés aos ricos para comer. Parece uma
crueldade, mas o que é pior? A garantia de uma vida horrível de pobreza para
recém-nascidos – que, de acordo com alguns bem-pensantes modernos nem serão bem
“pessoas” ainda – ou melhorar os padrões de vida de toda a gente com um caminho
lucrativo e satisfatório para a independência económica? Note-se ainda que este
género de pensamento futurista faz sentido do ponto de vista ambiental e
implica menos prejuízo para as preciosas espécies animais.
No século passado assistimos a alguns passos no sentido
de uma sociedade orientada pela lógica, livre de emoções debilitantes. O
Terceiro Reich é justamente odiado pelo seu lamentável registo de agressão e
brutalidade, mas se deixarmos de lado por alguns momentos a invasão da Polónia
e da Dinamarca, e já agora da Holanda, França, Noruega e Rússia – e o
Holocausto, evidentemente – podemos ver um interesse genuíno, embora
lamentavelmente estreito, pela ciência, sobretudo a ciências aplicada, por
parte do regime.
Como Michael Burleigh demonstrou em “The Racial State” e “Death and Deliverance”, a causa da eutanásia obrigatória para os deficientes,
doentes terminais e socialmente incapazes foi promovida não por políticos zelotes
e ignorantes, mas pela comunidade médica e científica, numa campanha que data
pelo menos desde 1900. Vários cientistas, médicos e intelectuais de outras
disciplinas encontraram muito trabalho prático no regime Nacional-Socialista.
Charlton Heston em Soylent Green |
E sejamos sinceros: O Reich era muito bom a aprender com
certas experiências. A remoção da sociedade alemã de mais de 300 mil pessoas
consideradas, nos anos 30, como deficientes mentais, doentes sem esperança ou
socialmente inúteis começou com uma operação desajeitada e cansativa de
injeções individuais. Mas rapidamente se progrediu para campanhas de marketing
articuladas e o uso de carrinhas móveis, e por isso mais baratas, para ajudar
grupos inteiros a chegar à sua recompensa eterna com a ajuda de monóxido de
carbono. Claramente foram aprendidas lições valiosas de organização, método e
tecnologia que foram depois aplicadas noutros locais, de forma mais eficiente
ainda e em muito maior escala.
Mas estou a divagar. Aqui na América, com excepção dos 60
milhões de abortos e mais algumas bizarrias, temos instintos mais decentes. E
temos de falar sobre isso. A decência é, em si mesma, uma questão de consenso
cultural, um artefacto ético flexível e – admitimo-lo – há muito que precisamos
de actualizar o conceito. A verdade é que a “decência” é muitas vezes usada
como mais uma desculpa humanitária para a cobardia, uma falta de vontade,
herdada e pré-racional, para fazer o que é audaz, urgente e necessário.
Porque é que haveríamos de seguir o caminho egoísta da
compostagem de cadáveres, quando temos milhões de pessoas a passar fome no
mundo? Por falar nisso, a nossa indústria de aborto poderia, sozinha, alimentar
a maior parte de África com os restos orgânicos. Desde que devidamente embalados,
claro. E já agora, porque é que estamos a desperdiçar tanto tempo e recursos
nos deficientes mentais e físicos, e nos doentes crónicos? O que é que eles
contribuem para o mundo? Estamos diante de uma enorme fonte de alimentos e um
grande passo em frente rumo à recuperação económica.
Temos de ver o Soylent Green através de olhos novos e
limpos. Temos de seguir a ciência. Cantei comigo, irmãos! Sigamos a ciência.
Devo, contudo, terminar com um reparo. Eu e a minha mulher temos um filho com trissomia 21 e três netos com deficiências que vão do moderado ao grave. Estamos ainda, lamentavelmente, possuídos pelo obscurantismo religioso (Josué 24,15). Por isso, eu e os meus vamos servir os nossos amados – e não como patê. Devo admitir, porém, que não me importava de dar umas dentadas em alguns dos nossos gurus científicos e médicos.
Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do
arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do
National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da
Arquidiocese de Denver entre 1993-96.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 24 de Julho de 2021)
© 2021
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment