Wednesday, 19 May 2021

Papas, Bispos, Escravatura – e Nós

Randall Smith

Há um velho ditado que diz que quem se esquece da história está condenado a repeti-la. Por outras palavras, podemos e devemos aprender as lições da história. Mas a experiência da atualidade pode ajudar a iluminar de forma inesperada coisas que sempre nos confundiram sobre o passado.

Pensemos, por exemplo, na história das condenações papais da escravatura racial, a começar pela bula Sicut Dudum, de 1435, do Papa Eugénio IV. Depois veio a bula Sublimis Deus do Papa Paulo III, em 1537, em que ele caracterizou a escravatura como sendo elaborada pelos correligionários do inimigo da raça humana, isto é, Satanás. E, finalmente, temos a condenação da escravatura do Papa Gregório XVI em 1839 no In Supremo, onde escreveu que “Numerosos pontífices romanos de venerando memória, nossos antecessores, como imperiosa obra de seu ministério, nunca deixaram de repreender com firmeza tal comportamento, contrário à salvação espiritual de quem o cumpre e ultrajante para o nome cristão”.

Ele refere explicitamente documentos escritos por Clemente I, Pio II, Paulo II, Bento XIV, Urbano VIII e Pio VII e termina com esta firme condenação:

Por essa razão nós, querendo fazer desaparecer o mencionado crime de todos os territórios cristãos (…) seguindo as pegadas de nossos predecessores, com a nossa apostólica autoridade, admoestamos e esconjuramos energicamente no Senhor todos os fiéis cristãos de qualquer condição que, doravante, ninguém ouse fazer violência, desapropriar de seus bens ou reduzir seja quem for à condição de escravo, ou prestar ajuda ou favorecer àqueles que cometem tal delito ou querem exercitar o indigno comércio por meio do qual os negros são reduzidos a escravos - como se não fossem seres humanos, mas pura e simplesmente animais, sem nenhuma distinção, contra todos os direitos de justiça e humanidade -, são comprados, vendidos e constrangidos a trabalhos duríssimos.

Após o que conclui, com este aviso:

Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a qualquer eclesiástico ou leigo defender como lícito o tráfico dos negros, qualquer seja o escopo ou pretexto, e de presumir ensinar outro modo, pública e privadamente, contra aquilo que com a presente carta apostólica expressamos.

O que nos obriga a pensar: Porque é que a escravatura não acabou entre os donos de escravos católicos no Sul dos Estados Unidos? Como é que as condenações papais podiam ser tão constantes e os efeitos tão inexistentes? Uma das respostas está na reação de certos bispos e membros de ordens religiosas.

Os Jesuítas, por exemplo, detinham escravos e venderam-nos a um latifundiário do Sul em 1838 para pagar as dívidas da Universidade de Georgetown. (O nome do padre que fez o negócio ornava a parede do Holy Cross College até 2020).

O bispo John England, de Charleston, na Carolina do Sul, escreveu cartas detalhadas a John Forsythe, secretário de Estado do Presidente Martin Van Buren, explicando que ele e a maioria dos bispos americanos interpretavam o In Supremo como condenando o negócio da escravatura, e não a escravatura em si.

A atitude que prevalecia entre os bispos, segundo o autor Joel Panzer, parece ter sido esta: “Muitos aspetos da escravatura eram maus”, porém, “alterar a lei seria, em termos práticos, um grande mal”. (Para um bom resumo, vejam o livro The Popes and Slavery, de Joel Panzer). Clérigos como o bispo England fizeram tudo o que estava ao seu alcance para dissociar os católicos dos abolicionistas, que consideravam “fanáticos”.  

Bispo John England

A bula do Papa Gregório a condenar a escravatura foi discutida pelos bispos no Concílio de Baltimore, em 1840. A interpretação do bispo England dominou e ele informou o secretário de Estado que:


Todos [os seus colegas bispos] consideram que a bula se refere ao “negócio dos escravos” e não à “escravatura doméstica”. Creio, senhor, que podemos considerar isto como prova bastante conclusiva da perspetiva da Igreja Católica Romana deste documento.

O que é que os bispos que interpretaram o documento desta forma pensavam que se estava a passar nos mercados de escravos no Sul? Não era negócio de escravos? Como é que não reconheciam que estavam a ofuscar a condenação clara da escravatura por parte da Igreja com distinções semânticas parvas e a ignorar os horrores evidentes que se passavam diante dos seus olhos?

Porquê esta atitude dos bispos? Eis uma das razões, segundo o próprio bispo England: “Se este documento condenasse a nossa escravatura doméstica como uma prática ilegítima e por isso imoral, os bispos não a poderiam aceitar sem se obrigarem à recusa dos sacramentos a todos os que possuíssem escravos, a não ser que os libertassem”.

Que sugestão impensável! Bispos a ter de dizer a pessoas comprometidas com um ato imoral que estavam envolvidos num ato imoral! Afinal de contas, as pessoas dependiam do acesso à escravatura. Dizer-lhes que deviam parar de se envolver num mal moral seria tão… impopular. E o sensus fidelium?

Tenho pensado longamente sobre este período da história. Como é que os bispos se podiam convencer de que estavam a ser fiéis à sua missão, aos ensinamentos de tantos papas e aos seus deveres morais diante de Deus? Como é que católicos podem, em boa consciência, e sabendo que um ato já foi condenado pela Igreja comos sendo um mal moral grave, continuar a envolver-se nele? Como é que isso acontece?

Da mesma forma, como é que soldados católicos podiam escutar o mandamento “Não matarás”, meses a fio, ler a condenação do nazismo no Mit Brennender Sorge, ir à missa todos os domingos, rezar o terço regularmente e depois voltar para trabalhar com o resto dos guardas em Auschwitz? Não faz sentido nenhum.

Até que lemos os argumentos enrolados de alguns bispos sobre porque é que seria impensável “recusar os sacramentos” a líderes políticos que fizeram tudo o que está ao seu alcance para apoiar o assassinato de milhões de crianças por nascer. E é então que percebermos, foi isso que se passou com a escravatura. Agora compreendo.

Claro que os nossos bispos não se vêem a si mesmos dessa forma – como maus infiéis. Obviamente o John England também não se via dessa forma – nessa altura. Agora, certamente, já vê a verdade.


 Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 15 de Abril de 2021)

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1 comment:

  1. Conhecer a História é uma grande vantagem. Ter coragem para defender a verdade também. Quem não conhece a História e não tem coragem para defender a verdade não pode ser um bom pastor de almas e deveria resignar ou ser substituído. Biden não é Católico, logo, não deveria ser tratado como se fosse.

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