Randall Smith |
Pensemos, por exemplo, na história das condenações papais
da escravatura racial, a começar pela bula Sicut Dudum, de 1435, do Papa
Eugénio IV. Depois veio a bula Sublimis Deus do Papa Paulo III, em 1537,
em que ele caracterizou a escravatura como sendo elaborada pelos
correligionários do inimigo da raça humana, isto é, Satanás. E, finalmente,
temos a condenação da escravatura do Papa Gregório XVI em 1839 no In Supremo,
onde escreveu que “Numerosos pontífices romanos de venerando memória, nossos antecessores,
como imperiosa obra de seu ministério, nunca deixaram de repreender com firmeza
tal comportamento, contrário à salvação espiritual de quem o cumpre e
ultrajante para o nome cristão”.
Ele refere explicitamente documentos escritos por
Clemente I, Pio II, Paulo II, Bento XIV, Urbano VIII e Pio VII e termina com
esta firme condenação:
Por essa razão nós, querendo fazer desaparecer o
mencionado crime de todos os territórios cristãos (…) seguindo as pegadas de
nossos predecessores, com a nossa apostólica autoridade, admoestamos e
esconjuramos energicamente no Senhor todos os fiéis cristãos de qualquer
condição que, doravante, ninguém ouse fazer violência, desapropriar de seus
bens ou reduzir seja quem for à condição de escravo, ou prestar ajuda ou
favorecer àqueles que cometem tal delito ou querem exercitar o indigno comércio
por meio do qual os negros são reduzidos a escravos - como se não fossem seres
humanos, mas pura e simplesmente animais, sem nenhuma distinção, contra todos
os direitos de justiça e humanidade -, são comprados, vendidos e constrangidos
a trabalhos duríssimos.
Após o que conclui, com este aviso:
Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a qualquer
eclesiástico ou leigo defender como lícito o tráfico dos negros, qualquer seja
o escopo ou pretexto, e de presumir ensinar outro modo, pública e privadamente,
contra aquilo que com a presente carta apostólica expressamos.
O que nos obriga a pensar: Porque é que a escravatura não
acabou entre os donos de escravos católicos no Sul dos Estados Unidos? Como é
que as condenações papais podiam ser tão constantes e os efeitos tão
inexistentes? Uma das respostas está na reação de certos bispos e membros de
ordens religiosas.
Os Jesuítas, por exemplo, detinham escravos e
venderam-nos a um latifundiário do Sul em 1838 para pagar as dívidas da
Universidade de Georgetown. (O nome do padre que fez o negócio ornava a parede
do Holy Cross College até 2020).
O bispo John England, de Charleston, na Carolina do Sul, escreveu cartas
detalhadas a John Forsythe, secretário de Estado do Presidente Martin Van
Buren, explicando que ele e a maioria dos bispos americanos interpretavam o In
Supremo como condenando o negócio da escravatura, e não a escravatura em
si.
A atitude que prevalecia entre os bispos, segundo o autor
Joel Panzer, parece ter sido esta: “Muitos aspetos da escravatura eram maus”,
porém, “alterar a lei seria, em termos práticos, um grande mal”. (Para um bom
resumo, vejam o livro The
Popes and Slavery, de Joel Panzer). Clérigos como o bispo England
fizeram tudo o que estava ao seu alcance para dissociar os católicos dos
abolicionistas, que consideravam “fanáticos”.
Bispo John England |
O que é que os bispos que interpretaram o documento desta
forma pensavam que se estava a passar nos mercados de escravos no Sul? Não era
negócio de escravos? Como é que não reconheciam que estavam a ofuscar a
condenação clara da escravatura por parte da Igreja com distinções semânticas
parvas e a ignorar os horrores evidentes que se passavam diante dos seus olhos?
Porquê esta atitude dos bispos? Eis uma das razões,
segundo o próprio bispo England: “Se este documento condenasse a nossa
escravatura doméstica como uma prática ilegítima e por isso imoral, os bispos
não a poderiam aceitar sem se obrigarem à recusa dos sacramentos a todos os que
possuíssem escravos, a não ser que os libertassem”.
Que sugestão impensável! Bispos a ter de dizer a pessoas
comprometidas com um ato imoral que estavam envolvidos num ato imoral! Afinal
de contas, as pessoas dependiam do acesso à escravatura. Dizer-lhes que deviam
parar de se envolver num mal moral seria tão… impopular. E o sensus fidelium?
Tenho pensado longamente sobre este período da história.
Como é que os bispos se podiam convencer de que estavam a ser fiéis à sua
missão, aos ensinamentos de tantos papas e aos seus deveres morais diante de
Deus? Como é que católicos podem, em boa consciência, e sabendo que um ato já
foi condenado pela Igreja comos sendo um mal moral grave, continuar a
envolver-se nele? Como é que isso acontece?
Da mesma forma, como é que soldados católicos podiam
escutar o mandamento “Não matarás”, meses a fio, ler a condenação do nazismo no
Mit Brennender Sorge, ir à missa todos os domingos, rezar o terço
regularmente e depois voltar para trabalhar com o resto dos guardas em
Auschwitz? Não faz sentido nenhum.
Até que lemos os argumentos enrolados de alguns bispos
sobre porque é que seria impensável “recusar os sacramentos” a líderes
políticos que fizeram tudo o que está ao seu alcance para apoiar o assassinato
de milhões de crianças por nascer. E é então que percebermos, foi isso que se
passou com a escravatura. Agora compreendo.
Claro que os nossos bispos não se vêem a si mesmos dessa
forma – como maus infiéis. Obviamente o John England também não se via dessa
forma – nessa altura. Agora, certamente, já vê a verdade.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 15 de Abril de 2021)
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Conhecer a História é uma grande vantagem. Ter coragem para defender a verdade também. Quem não conhece a História e não tem coragem para defender a verdade não pode ser um bom pastor de almas e deveria resignar ou ser substituído. Biden não é Católico, logo, não deveria ser tratado como se fosse.
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