Uma leitura superficial dos motins deste verão dir-nos-ia que se trata de
uma rejeição da autoridade. Claro que se trata, sim, de uma rejeição de algum
tipo de autoridade. Mas isso não significa que rejeitem a autoridade per se.
Pelo contrário, os manifestantes são uma autoridade para consigo mesmos.
Ninguém se atreve a divergir dos seus dogmas. A cultura “woke”, que despreza de
tal forma as figuras tradicionais de autoridade, exerce uma autoridade muito
mais severa e censória do que as instituições que rejeita. Amordaça a
dissidência e excomunga os hereges muito mais rápida e absolutamente do que qualquer
inquisição alguma vez fez.Pe. Paul Scalia
Nada disto nos deve surpreender e, de certa forma, não os podemos culpar. A
atitude autoritária anti-autoridade a que estamos a assistir é simplesmente uma
distorção de algo que é um bem para os homens. A questão é que teremos de
reconhecer alguma autoridade. Fomos criados para isso. Somos criados por e para
o Autor da vida. Enquanto criaturas estamos programados para escutar e obedecer
à voz do Criador, procurá-lo e à sua autoridade.
Infelizmente, devido à ferida profunda na nossa natureza humana, esta busca
pelo Autor porta-se, por vezes, como um míssil errante, que se desvia louca e
desastrosamente do seu alvo. Podemos remover Deus das nossas vidas, mas não podemos
remover das nossas almas a tendência para a autoridade. Por isso, na nossa revolta
contra o Autor da vida, em vez de nos libertarmos (como pensamos) submetemo-nos
a falsas autoridades e contentamo-nos com falsidades: o estado, seitas, raça,
ideologias, cientismo, etc. São ídolos que nós fazemos e que nos escravizam ao
erro.
Na sua misericórdia, nosso Senhor entregou-nos da escravidão. Estabeleceu a
sua Igreja para ser a voz do Autor no mundo.
Eu te digo, tu és Pedro,
e sobre esta rocha edificarei a minha igreja,
e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Eu te darei as chaves do reino do Céu.
O que ligares na terra será ligado no Céu;
e o que desligares na terra será desligado no Céu.
Estas são palavras solenes e autoritárias: E eu te digo. E são sobre
autoridade: Eu te darei as chaves do reino do Céu. Aqui o Autor de todas
as coisas estabelece a Igreja e confere-lhe a autoridade para ensinar a sua
verdade de forma autêntica e sem erro. A Igreja torna-se, assim, a sua voz no
mundo, o “Oráculo de Deus”, como lhe chamou o cardeal Newman. Esta autoridade
da Igreja corresponde ao nosso desejo de uma voz clara. Pela nossa natureza
procuramos o Autor, mas muito facilmente nos desviamos. Assim, Ele estabeleceu
a Igreja para ser para nós a sua voz infalível, contra a qual as portas do
inferno não prevalecerão.
Longe de ser uma imposição divina, então, a autoridade da Igreja dá-nos liberdade. Liberta-nos dessas autoridades falsas que escravizam. A sua voz diz agora, de facto, Não sigam essas falsas vozes que só conduzem à morte. Aqui está o Autor da vida que vos fala em verdade e autenticidade, para vos conduzir à vida.
É uma autoridade bem séria. Mas está ordenada para a nossa felicidade. E
não é contradição nenhuma ver que tal autoridade – de ligar e de desligar –
está intrinsecamente ligada à nossa felicidade. Como qualquer pessoa sabe, o
jogo só começa com o apito inicial do árbitro e essa autoridade – de validar e
de anular em campo – garante que o jogo seja divertido. Sem ela, as coisas
começam rapidamente a desenvencilhar-se. Um jogador faz batota para ganhar, o
outro pega na bola e leva-a para casa. A alegria dos filhos de Deus não é
diferente: dependemos da voz do autor para defender o jogo.
ideia de que podemos viver sem
autoridade é uma coisa singularmente moderna. As grandes disputas na Igreja
antiga não eram sobre a existência de autoridade, mas sobre quem a devia exercer.
Hoje o mundo descarta a autoridade da Igreja, como faz com todas as outras.
Isso não significa que as pessoas estão libertadas da autoridade, apenas que se
passaram a sujeitar às versões contrafeitas.
No mundo antigo a autoridade da Igreja defendia a verdade de Nosso Senhor
contra as grandes heresias cristológicas. No Século XVI defendeu a verdade da
Igreja contra a revolta protestante.
Hoje a voz do Autor deve defender a prerrogativa mais básica de Deus: a
Criação. O Papa emérito Bento XVI descreveu o nosso tempo como o “do pecado contra
Deus o Criador”. No centro disto encontra-se a ideologia transgénero, a rejeição
da natureza humana, que ao mesmo tempo que descarta a autoridade da Criação
condena todos os que questionam a sua própria autoridade.
“O que muitas vezes se expressa e se compreende com o termo ‘género’ acaba
por ser a tentativa do homem de se emancipar da criação e do Criador. O Homem
quer ser o seu próprio mestre, e determinar sozinho – sempre e exclusivamente –
tudo o que lhe diz respeito. Porém, desta forma vive em oposição à verdade, em
oposição ao Espírito Criador.”
(Bento XVI, 2008)
No início é uma liberdade intoxicante, a de sermos os nossos próprios
criadores, nossos próprios deuses. Mas rapidamente cansa. Sermos autoridade para
nós mesmos é demais para nós. As coisas, tais como são, acabarão por se desenvencilhar.
O Concílio Vaticano II fez uma observação maravilhosa: “Sem o Criador, a
criatura desaparece”. (GS 36; cf. CCC 49). Vemos agora que isso também funciona
no sentido contrário: ao negar a nossa natureza de criaturas, o Criador
desaparece de vista.
Mais razão ainda para rezar para que a voz infalível do Autor se torne mais
clara e mais forte, para defender a verdade do Criador e da criação. Pois “quando
Deus é negado, a dignidade humana também desaparece. Quem defende Deus defende
o homem” (Bento XVI, 2012).
O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo
Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo
para o clero.
(Publicado pela primeira vez no domingo, 23 de Agosto de 2020 em The
Catholic Thing)
© 2020 The Catholic Thing.
Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões
expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este
artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The
Catholic Thing.