O Tiago escreveu um testemunho pessoal, defendendo a eutanásia. Pode ser lida no Twitter, aqui.
Segue-se uma resposta ao Tiago.
Olá Tiago
Quero começar por agradecer a forma como partilhaste
parte da tua vida, certamente na convicção de que estás a contribuir para um
debate esclarecido sobre o assunto da eutanásia. Não deve ter sido fácil.
Queria responder ao teu texto para te explicar porque é
que não posso concordar com a tua posição e porque é que rejeito a ideia de que
a tua vida valha menos que a minha, mesmo que tu insistas.
Porque no fundo é disso que se trata. Quando tu dizes:
“tenho mais 20 anos de vida útil”, ou 30, o que é que isso quer dizer? Que a
vida só é útil enquanto consegues caminhar e mover-te? Que a vida só é útil
quando não sentes dor? É que se isso é assim, se é essa a tua definição de
utilidade, então neste momento eu, que caminho sem dores, que me movo sem
grandes dificuldades, sou mais “útil” que tu. Não acredito que penses isso,
como é evidente. Mas não percebes que é essa a ilação lógica do que afirmas?
Dizes depois que quando o teu corpo chegar ao fim da
linha, queres poder decidir não ser um peso na vida da tua família, que eles
não merecem isso.
Mas isto é uma questão de merecimento? De obrigação?
Enquanto membros da sociedade, enquanto familiares e amigos, só tomamos conta
uns dos outros porque de alguma forma merecemos esse “castigo”? Tu podes pensar
que a tua vida é um fardo, que és um peso para todos os que estão à tua volta.
Eu duvido muito que eles olhem para ti dessa forma e, acima de tudo, rejeito
viver numa sociedade em que seja permitido que as pessoas sejam classificadas
como fardos e pesos que são impostos aos outros. Mesmo que sejas tu a pensar
isso, sobre ti mesmo, eu não posso aceitar.
É essa a chave desta discussão. Mesmo que tu consideres
que a tua dignidade depende da tua mobilidade, autonomia e ausência de dor, eu
não posso simplesmente cruzar os braços e acenar, dando-te palmadinhas nas
costas. Tenho de discordar.
Da mesma forma que discordaria de alguém que diz que não
merece ser livre pela cor da pele, ou que vale menos do que eu porque é de um
sexo diferente, ou que tem menos dignidade porque é doente.
Eu não tenho doença degenerativa alguma, mas
provavelmente um dia estarei numa cama, ou demente e precisarei que os meus
filhos, talvez a minha mulher, cuidem de mim. Como um dia talvez precise de
cuidar dos meus pais. E espero poder fazê-lo, como espero que os meus filhos
estejam lá para mim. Porque é isso que as pessoas fazem, é isso que as
comunidades pedem e é isso que a sociedade tem de exigir. Cuidamos uns dos
outros.
Temos urgentemente de recuperar a ideia de que cuidar de
quem precisa não é um fardo, ou um peso, é um privilégio. Poder partilhar do
momento de fraqueza e vulnerabilidade de alguém, olhar por ela, é um
privilégio. Tens o direito de privar a tua família dessa experiência? Têm eles
o direito de o recusar? Penso que não.
Dizer que sim é admitir que não somos sociedade nenhuma,
somos um aglomerado de indivíduos sem redes nem ligações. Há um nome para isso.
É inferno. Um mundo assim é um mundo bem pior que o sofrimento que te espera e
que nos espera a todos, de uma forma ou de outra.
Eu não quero isso para mim e não posso aceitar que assim
seja para ti, ainda que tu o queiras.
Espero que compreendas esta minha posição. Não é desprezo
pela tua liberdade, é uma admiração assombrada pela tua dignidade e pelo teu
valor intrínseco, por mais aparelhos nas pernas e por mais limitações físicas
que tenhas.
Tu não vales menos que eu, e não te admito que digas o
contrário.
Totalmente de acordo Filipe, sem tirar nem por.
ReplyDeleteSó reforço que neste ponto "Temos urgentemente de recuperar a ideia de que cuidar de quem precisa não é um fardo, ou um peso, é um privilégio.", secalhar parte de nos partilharmos a história dos 'fardos' que acomapanhámos e de como não são (foram) fardos para nós. Mesmo que a lei passe, é uma cultura de cuidar que vale a pena testemunhar (como dizia à frente de S Bento hoje o Afonso: não podemos esperar que o Estado faça tudo, temos nós também de nos mexer).
Conto contigo para isso.
Bjs, Catarina
Filipe, este é para mim um ponto crucial:
ReplyDelete"Um mundo assim é um mundo bem pior que o sofrimento que te espera e que nos espera a todos, de uma forma ou de outra."
Como nos relacionamos? O que esperamos uns dos outros? O que esperam os outros de nós? O que eu espero dos outros? Vivemos do cuidado, da atenção ao cuidado, ou habituamo-nos a pensar que é normal os outros sentirem-se mal por precisarem de ser cuidados?
Mas este é um desafio enorme porque muitos familiares não têm condições, nem físicas nem económicas,que permitam esse cuidado e muitos lares que existem são mais depósitos do que espaços de vida!
Cristina Maria