Wednesday 6 March 2019

Recordando o Corpo

T. Franche dite Laframboise
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Recentemente uma colega desafiou-me para ir ver os restos mortais de um padre santo, o que, para um católico, devia ser uma coisa normal. A tradição solene de venerar as relíquias dos santos tem antigas e profundas raízes. Mas o convite que me chegou por email assumia a forma de uma pessoa a explicar cuidadosamente ao mundo que os católicos não são de todo estranhos, enquanto procurava saber se certas relíquias em tournée estavam a distância de serem visitadas.

Compreendi a ironia.

Ela sabia que, há vários anos, eu me tinha candidatado a uma bolsa de investigação para tentar perceber porque é que as pessoas continuavam a ir ver os “Incorruptíveis” em Roma. Era por devoção ou por curiosidade macabra? Foi preciso dar muito mais explicações do que eu imaginara, porque a comissão simplesmente não fazia ideia que tais coisas “ainda existiam”.

A veneração de restos mortais de santos é vista por muitos como um resquício bizarro, impossível de justificar por pessoas modernas. A tradição pode ter milénios, mas os tempos e as crenças mudaram. Num mundo em que a ciência, segundo nos dizem, tem explicações para tudo, os corpos já não carregam nem mistério nem importância. São modificados e vendidos como bens, mutáveis e alteráveis, algo a transcender e a substituir.

Mas os corpos são importantes, tanto em vida como na morte. A antiga Igreja reconheceu isto desde logo. O que fazemos afeta o mundo material e transforma o corpo, para bem ou para mal. Deixar o poder de Deus fluir através de uma pessoa carrega com santidade a própria matéria de que é feita.

A Igreja estimava os restos mortais dos santos porque conhecia esta verdade. As Escrituras mostram-nos como os tecidos que tinham tocado na pele de Paulo eram usados para expulsar demónios e curar doenças (Actos 19,12) e como as pessoas acreditavam que a própria sombra de Pedro os poderia curar (Actos 5,15). Mostram até como os ossos de Eliseu reavivaram um morto que tinha sido sepultado ao seu lado (2 Reis 13,21).

Mas há mais a ter em conta aqui. Os corpos também têm importância comunitária. Isto tem menos a ver com milagres e mais a ver com a manutenção de identidade e relações. Quando os fiéis recuperaram os ossos de Policarpo, “mais preciosos que joias”, e os depositaram num local condigno, foi já com a ideia de se juntarem anualmente para celebrar o seu martírio e se prepararem para enfrentar a mesma prova. Policarpo mantinha-se assim vivo e capaz, mesmo na morte.

Não restou grande coisa de Inácio de Antioquia depois de ter sido despedaçado por feras, mas a Igreja juntou o que pôde e alegrou-se por poder levar de volta a Antioquia um verdadeiro tesouro, recebido pela graça de Deus. Voltou para o seio do seu povo, um membro ainda vivo da sua comunidade.

A Escritura mostra-nos ainda que José, antes de morrer, obrigou os filhos de Israel a jurar que quando saíssem do Egipto levariam com eles os seus ossos (Gen. 50,25). Assim fizeram, sepultando-os junto aos seus antepassados, sim, mas no meio deles.

São Jacques Marquette
O corpo é, de facto, importante, e o que fazemos com ele – na vida ou na morte – interessa. Apesar de se dizer que certas religiões são “Povos do Livro”, isto não é verdade. Não fomos fundados sob um livro; temos um livro. Na verdade somos fundados sobre um Corpo. Somos membros dele. Salvos por Ele. Vivemos nele. Não deve admirar, portanto, que a Igreja preserve os restos dos seus santos e construa Igrejas sobre os seus ossos, pois eles permanecem membros vivos do Corpo de Cristo.

Mas esta crença pode-se perder e, com ela, a identidade e a comunhão que formamos como Corpo. As pessoas raramente fazem peregrinações. As paróquias não sabem que relíquias possuem, se é que as possuem. Até a crença na Presença Real na Eucaristia está em declínio. Estas coisas estão ligadas. Os corpos deixaram de interessar.

Dou-vos um exemplo recente: O meu pai tinha uma forte devoção ao Père Jacques Marquette, o grande missionário francês do Século XVII. Era uma coisa dele, e antes de morrer queria ter visitado a sua campa, no Michigan, mas adoeceu e isso tornou-se impossível.

Mais tarde vieram parar-me às mãos cartas – velhas e frágeis – do padre Edward Jacker, escritas em 1886, que narravam a descoberta dos restos mortais de Marquette em Point Saint-Ignace, uns anos antes.

Marquette morreu e foi sepultado lá em 1675. Em 1677 os índios Kiskakon estavam a caçar nas proximidades e quiseram visitar o seu pai espiritual. Tal como os israelitas tinham feito com José, juntaram os seus ossos e levaram-nos, solenemente, para serem sepultados na capela de Saint-Ignace. O seu corpo era importante. Era importante para eles como comunidade. O Pe. Jacker escolheu os fragmentos maiores para doar à recém-criada Marquette College e sepultou o resto em Saint-Ignace.

A história fascinou-me e sempre que me encontrava com jesuítas de Marquette perguntava-lhes onde estavam os seus restos mortais. Numa capela? Na comunidade privada? Ninguém me sabia responder. A maioria respondia-me que a sua sepultura está no Michigan. Perplexa, fui aos arquivos, procurando algum indício que me pudesse ajudar. A senhora atrás do balcão disse-me que não seria necessário, os restos mortais do santo estavam preservados no arquivo, por detrás de si. A comunidade jesuíta tinha pedido que não fossem vistos. Estaríamos a falar da mesma comunidade que não sabia sequer que lá estavam?

Permitam-me expressar, não uma crítica, mas uma prece. Que nos recordemos das nossas relíquias sagradas. Jacques Marquette está vivo e pode interceder por nós. É um padroeiro a quem devemos recorrer. Devemos honrar o seu corpo.

Agora que entramos na Quaresma, recordemos as razões pelas quais valorizamos esses restos morais e os mantemos entre nós. Não corremos só o perigo de perder o rasto aos seus corpos, mas de nos esquecermos da raiz da nossa verdadeira identidade, enquanto Corpo de Cristo.

Dieu n’a pas voulu permettre qu’un deposit si pretieux, demeurast au milieu des bois sans honneur et dans l’oubly. («Deus não quis permitir que tão precioso depósito permanecesse no meio da floresta, esquecido e sem honra») [Vol. 59 Jesuit Relations and Allied Documents]


T. Franche dite Laframboise é escritora, oradora e estudante de Sagrada Escritura, com licenciaturas de Marquette e de Notre Dame. É especializada em antropologia teológica e exegese patrística. Considera-se uma académica em recuperação e está a trabalhar no seu mais recente livro, sobre a data da Última Ceia no Evangelho de São João.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no domingo, 3 de março de 2019)

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