Wednesday 19 September 2018

Quando o Padre se Torna Ateu

Anthony Esolen
Quando John Milton, no seu poema épico “Paraíso Perdido”, identifica e descreve os piores dos anjos caídos, diz-nos em que parte do mundo mediterrânico e do Levante eles se estabeleceram, quais falsos deuses, para serem adorados. Quanto mais perto de Sião, pior o demónio. Nesse sentido Moloch, que é o primeiro a ser referido, é o pior de todos, depois de Satanás e Belzebub.

Não bastava que fosse adorado pelos vizinhos amonitas:

Cioso por ver de Deus o altar vizinho,
Com fraudulenta sedução pôde ele
De Salomão levar o peito egregio
(Salomão, o mais sábio d’entre os homens)
A edificar-lhe um majestoso templo
Na montanha do Opróbrio, bem defronte
Do Templo do grão Deus, e a consagrar-lhe,
Como parque, de Hinom o vale ameno
Que ficou desde então, sob outro nome
De Tofete e Geena, emblema do Orco.[1]

Consegue imaginar algo pior do que seduzir o construtor do templo de Deus, Rei Salomão, a construir um templo para si, colado ao verdadeiro? Pode-se estar mais próximo que isso?

Sim, pode. É aí que Milton quer chegar. O último demónio que ele nomeia, supostamente o oposto do sanguinário e guerreiro Moloch, é o lascivo, efeminado Belial, amante do vício pelo vício.

E onde é que Belial é adorado? A resposta é preocupante:

Em honra desse monstro
Não se erguem templos, nem altares fumam;
Porém, com refinada hipocrisia,
É quem templos e altares mais frequenta
Chegando a ser ateus os sacerdotes,
Bem como de Eli sucedeu aos filhos
Que de Deus os alcáçares encheram
De atroz fereza, de brutal lascívia!
                                
Belial não precisa que lhe construam templos ou altares. Ele já ali está, quando o padre se torna um verdadeiro ateu. Não que isso sirva de desculpa para os leigos, porque Belial também se instalou nas sedes de governo e nos costumes lascivos do povo:

Reina ele pelas cortes, nos palácios,
E nas cidades onde os vícios moram,
Onde a devassidão, a infâmia, o ultraje,
Sobem por cima das mais altas torres.
Ali, assim que tolda a noite as ruas,
Os filhos de Belial n’elas divagam
Pela insolência e pelo vinho insanos.

O vício específico de que disfrutam os filhos de Belial é perverso:

Testemunhas as ruas de Sodoma
E a noite em Gaba quando a virtude,
Por amparar os hóspedes, decide
Dar às torpezas a infeliz matrona,
Para evitar mais feios atentados!

Temos então de um lado Moloch, o devorador de crianças, brutal e sangrento, de templo encostado ao de Deus, e do outro lado o mal sexual e antinatural de Belial, que penetra tanto templos como cortes e que toma conta das ruas pela noite, determinando o estilo de vida das pessoas ou levando-as a esconder-se em casa, se puderem.

Moloch e Belial; infanticídio e sodomia; sangue derramado em vão e semente espalhada em vão; guerra pela guerra, lascívia pela lascívia; um deus da fertilidade que come a sua prole e um deus da esterilidade, cujo vício nem prole chega a conceder.

Como dizia o pregador, não há nada de novo debaixo do Sol.

As pessoas têm perguntado se é possível que os padres que tiveram relações sexuais com jovens, consensuais ou não, acreditavam em Deus. Eu tenho tentado recordar a capacidade ilimitada do homem para o fingimento e autoengano, para não falar de mera contradição. Mas talvez devêssemos olhar a questão de outra perspetiva. Milton não disse que Finéias e Hofni, filhos de Eli, eram ateus quando assumiram o seu cargo em Siló. Ele diz que eles se tornaram ateus.

Algumas pessoas perdem a sua fé em Deus por causa das tribulações que sofrem. Desesperam, sucumbindo à sensação de abandono. Outros perdem a fé em Deus por causa dos sucessos de que gozam. Presunçosos, são seduzidos pelo sentimento de invencibilidade. Qual é o caso do padre?

Não estou a estabelecer uma regra universal. Cada padre é um homem, como qualquer um de nós, e pode sofrer aquilo que qualquer um de nós sofre. Mas se perguntarmos quais as ameaças específicas para a fé dos padres, teremos de concluir que no nosso mundo elas vivem do lado do poder, do conforto e do prestígio, e não do lado da fraqueza, privação física e humilhação.

Isto não é uma acusação. Não estou a sugerir que os padres devam viver a pão e água, e que devem ser agredidos em via pública. Estou apenas a constatar um facto. Não é a perseguição que leva os nossos padres a perder a fé, é a complacência.

A Justa Ana com o Profeta Samuel
E o que acontece se perdem mesmo a fé? Mais uma vez, devemos ter o cuidado de recordar o enlear e as contradições do coração humano. Fugimos das verdades difíceis. Talvez o desgraçado cardeal McCarrick acreditasse que acreditava. Mas o que é que você faria se estivesse a tornar-se ateu e toda a sua vida tivesse sido orientada para uma só coisa, o ministério de Deus?

Não pode voltar à sua antiga profissão, porque não existe. Não pode vender os seus serviços, porque não existem. Não tem recursos para voltar à escola, mesmo que pudesse aguentar a vergonha. Não está preparado para trabalho físico, por isso as obras não são uma opção. Então fica quieto.

Se for sincero, reza, reza e mortifica-se, arranja um bom director espiritual e tenta sobreviver à tempestade. Se for fraco e insincero, deixa a sua fé enfraquecer cada vez mais enquanto tenta robustecer a sua imagem, convencendo-se de que é o arauto de uma nova fé, uma nova forma de crença. Só você sabe o que pertence verdadeiramente à fé e o que não pertence. Destrói. Tem ciúmes de pessoas que têm devoções que não o movem. Secretamente, regozija com o falhanço dos outros.

Segue o mundo, porque tem de seguir alguma coisa. Todos os seres humanos seguem uma bandeira, os ateus não são excepção. Mas o dia do pequeno Samuel está para chegar, e não será para si qualquer conforto. Senhor Deus, que seja em breve!


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Os seus mais recentes livros são:  Reflections on the Christian Life: How Our Story Is God’s Story e Ten Ways to Destroy the Imagination of Your Child. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 16 de Setembro de 2018 em The Catholic Thing)

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[1] Na versão portuguesa baseei-me nesta edição, modernizando apenas alguma da ortografia

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