Lenine – que deu ao mundo a máquina de extermínio
socialista conhecida por União Soviética – era um amante de música enquanto
esteve no exílio. Quando regressou à Rússia, para dar início à Revolução
Bolchevique, disse que já não era capaz de ouvir música. “Afecta-nos os nervos,
faz-nos querer dizer coisas parvas e simpáticas e fazer festinhas na cabeça de
pessoas capazes de criar tanta beleza enquanto vivem neste vil inferno”.
Sempre houve, e sempre haverá, aquele tipo de amante
radical da humanidade que está disposto a sacrificar “dizer coisas parvas”, ou
mesmo sacrificar pessoas, em nome de algum esquema marado que acabará por
tornar o nosso mundo decaído ainda mais vil. Mas há aqui uma lição para nós,
sobretudo os que vivem em sociedades ricas e ultra-tolerantes, que podem
sucumbir à tentação de pensar que todas as suas vidas devem ser consumidas por
guerras culturais, políticas ou espirituais.
Esta tentação é particularmente forte para pessoas em posições
como a minha, pelo que é necessário sempre tomar medidas activas, de outra
natureza. Da minha parte, tento tocar piano todas as manhãs pelo menos
meia-hora, pois isso recorda-me – ainda que não tenha esse efeito sobre quem me
ouve – de que a Criação de Deus é harmonia, uma harmonia discordante, por
certo, mas definitivamente uma concórdia de criaturas e não um estado de guerra
perpétua.
Muitas pessoas enviam-me livros, livros bons, sobre o estado
de confusão actual em que vivemos. Agradeço, mas como estou sempre envolvido em
leituras pesadas para vários projectos de escrita, muitas vezes não consigo
chegar a estes livros, nem agradecer as ofertas. Esta semana, contudo, recebi
um livro de um generoso mecenas do The Catholic Thing que me chamou a atenção: Spiritual
Lives of the Great Composers [A Vida Espiritual dos Grandes Compositore] de
Patrick Kavanaugh, um compositor que é também director do Christian Perfoming
Arts Fellowship.
Trata-se de um relato claro e sucinto das crenças
religiosas de vinte compositores clássicos de renome, desde Bach a Messiaen,
passando por muitos outros grandes nomes. É um registo maravilhoso de como o
espírito e a música andaram tão próximos na cultura ocidental, até há bem pouco
tempo.
O grande Johann Sebastian Bach, por exemplo, não teve
qualquer dificuldade em ver uma interligação entre Deus e a música, tendo dito:
“O único propósito da Música deve ser para a glória de Deus e a recreação do
espírito humano”. Músico humilde, embora prodigioso (chegou a caminhar 200
milhas para ouvir o então famoso organista Dieterich Buxtehude), costumava
assinalar as suas folhas com J.J. (Jesus Juva – “Jesus ajuda”), antes de
compor.
Há exemplos semelhantes do mesmo período. Certa vez um
criado interrompeu Georg Friedrich Handel enquanto terminava o refrão do
Aleluia, para o Messias, e encontrou-o em lágrimas: “Acredito que vi todo o Céu
à minha frente, e o próprio Senhor”. (Incrivelmente, se descontarmos a
inspiração divina, Handel produziu toda esta obra de evangelização sonora em
apenas 24 dias).
Georg Friedrich Handel |
Estes músicos viviam em paz e confiantes na sua fé
cristã. Kavanaugh não elabora muito sobre a época em que viveram, mas é
significativo que eles podiam atribuir a sua obra aos dons de Deus, apesar do
facto de muitos deles terem vivido ao mesmo tempo que grandes figuras
anticristãs do Iluminismo, como Diderot, Hume e Voltaire. É o género de coisa
que não encontramos na maioria dos textos sobre as nossas raízes no Iluminismo
do século dezoito.
Claro que Bach e Handel eram protestantes, mas é interessante,
e pouco conhecido, que muitos dos maiores compositores clássicos ao longo dos
séculos tenham sido católicos (em diferentes graus): Haydn (o mais firme e
ortodoxo de todos), mas também Mozart, Beethoven, Schubert, Liszt, Chopin,
Bruckner, Gounod, Dvorak, Elgar e Messiaen. Stravinsky, talvez o melhor
compositor do Século XX, era ortodoxo russo, mas compôs uma missa e outras
músicas sacras. Apesar das suas diferenças, estavam praticamente todos unidos
na crença de que a inspiração derivava de, e regressava a, o próprio Criador.
O poeta católico moderno Paul Claudel gostava de usar a
frase noli impedire musicam (“Não interrompas
a música”), uma referência a Eclesiástico 32,3 sobre a importância de não falar
durante um festim, enquanto se toca música.
Ele sugeria que o sentido era mais lato: que frequentemente estragamos a
música natural do mundo com as nossas arrogantes preocupações.
Fala-se muito, nestes dias, daquela misteriosa frase de
Dostoyevsky, “A beleza salvará o mundo”. São João Paulo II e Alexander
Solzhenitsyn já forneceram umas importantes reflexões sobre este tema. E de
Bento XVI temos isto:
O encontro com a
beleza pode tornar-se a ferida da seta que nos atinge no coração e, dessa
forma, nos abre os olhos, de modo a que depois, com base nesta experiência, adoptamos
os critérios para ajuizar e conseguimos avaliar correctamente os argumentos.
Lembro-me de um concerto de música de Johann Sebastian Bach, em Munique,
dirigido por Leonard Bernstein, depois da morte inesperada de Karl Rahner. Ao
meu lado estava o bispo luterano Hanselmann. Enquanto se dissipava,
triunfantemente, a última nota de uma das grandes Cantatas-Thomas-Kantor,
olhámos um para o outro e dissemos espontaneamente: "Quem tenha ouvido
isto sabe que a fé é verdadeira”.
Não estou inteiramente convencido. Bernstein e muitos
outros músicos modernos parecem transformar a própria da música num ídolo, e
duvidam do próprio Deus por detrás da música em quem tantos dos grandes
compositores acreditavam.
Mas numa coisa Bento XVI tem razão, nomeadamente na
importância da “ferida” que a beleza inflige ao coração e a importância que
estas feridas têm em abrir-nos a realidades com as quais os nossos argumentos e
a nossa lógica frequentemente lidam mal, ou ignoram.
Sempre que eu escrevo sobre este tipo de assunto,
normalmente durante o Verão, ou noutras alturas em que conseguimos respirar um
pouco mais fundo e pôr os olhos em reinos mais alargados, há alguém que me
escreve a dizer que devia deixar-me destas mariquices, porque o que precisamos
mesmo é de um partido político militante. De certa forma é verdade, precisamos
de facto de uma Igreja Militante.
Mas também me lembro de Lenine, e da importância de dizer
“coisas parvas e simpáticas” e do perigo de deixar que os bolcheviques
interrompam a música e ditem toda a agenda para as nossas vidas.
Robert
Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute
em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic
Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter
Books.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Segunda-feira, 16 de Julho de
2018)
© 2018
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o
consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment