Anthony Esolen |
Comecemos com o termo “multicultural”. A Igreja tem-no
sido desde a sua criação. Lemos nos Actos dos Apóstolos que os seguidores de
Jesus que vinham da diáspora judaica – os judeus helénicos, de língua grega –
nem sempre eram bem acolhidos pelos que tinham vivido toda a vida na Palestina
e que, presumivelmente, falavam aramaico. Foi preciso resolver esse conflito,
mas reacendeu-se de forma ainda mais dramática quando São Paulo foi para
Jerusalém para interceder não pelos judeus helénicos, mas pelos gregos
helénicos, isto é gregos que tinham chegado a Cristo mas que nunca tinham sido
judeus, e por isso não tinham seguido os preceitos litúrgicos e civis da Lei de
Moisés.
A longa história da actividade missionária da Igreja
seguiu o caminho aberto por São Paulo, que sabia que sem Cristo o homem estava
perdido, mas também teve o cuidado de não transmitir a fé como se fosse uma
série de hábitos culturais. A revelação de Deus, embora insuficiente para a
salvação, é dada a todas as pessoas; por isso Paulo podia ser grego entre os gregos,
tal como Matteo Ricci podia tornar-se mandarim para pregar aos mandarins na
China.
Não pretendo com isto dizer que toda a gente devia ser
multicultural. A principal mensagem cultural de Deus para os hebreus do Antigo
Testamento é precisamente de que não devem ser como os seus vizinhos. Não
deviam obrigar os seus filhos a passar pelo fogo de Moloch. Não deviam
frequentar as bancas de Aserá nem participar na prostituição ritual com
mulheres e rapazes. Não deviam chorar a morte anual do deus da fertilidade
Tamuz.
Os judeus deviam ser judeus, e não pagãos que cantam um
salmo de vez em quando. A festa das Luzes, o Hanucá, celebra a purificação e re-dedicação
do Templo depois de os ocupadores gregos terem colocado uma estátua de Zeus – a
abominação da desolação – no Santo dos Santos, e contra os colaboracionistas
judaicos que encontravam formas de conviver com os esses cosmopolitas
sofisticados.
Judas “o Martelo”, estava bem dentro da longa tradição de
profetas intransigentes. Ele e Ezequiel haveriam de se ter entendido bem. Só na
fidelidade a Deus é que os judeus, o povo escolhido, podiam cumprir o seu papel
de levar a palavra de Deus às nações.
Uma pessoa sozinha pode ser multicultural, mas não é
fácil e é menos comum hoje em dia do que era na Idade Média, quando um rapaz
chamado Tomás, cuja língua mãe era italiano napolitano, podia viajar para
Colónia para ter aulas de Latim com um mestre chamado Alberto, cuja língua mãe
era alemão, e depois partir para Paris, para dar aulas numa cidade onde as pessoas
falavam francês, convivendo com estudantes e mestres que vinham de toda a
Europa, professando um Cristianismo carregado de aspectos de culturas locais,
desde Trondheim a Messina.
Para se ser multicultural é preciso estar inteiramente à
vontade com mais do que uma cultura e isso implica, normalmente, que é preciso
falar fluentemente mais do que uma língua. Para além disso, deve-se possuir
pelo menos duas arcas de tesouro de histórias e cantigas imemoriais; deve poder
cantar sobre Davy Crocket e Simon Bolivar; terá entre os seus amigos os amantes
de Manzoni e os Cavaleiros da Távola Redonda dos romances franceses; estará
familiarizado com Bach e com as melodias tradicionais pentatónicas dos
chineses. Não são coisas nas quais consegue meter um dedo, como um turista que
se banha no Mediterrâneo. Serão a sua herança.
Posto nestes termos, poderá ver que nem um aluno em cem,
talvez nem um em mil, pode dizer que possui sequer algumas das riquezas de mais
do que uma cultura. Não é por qualquer falha pessoal. É porque a própria
cultura, aquela coisa sobre a qual estamos supostamente a falar, está a
desaparecer da face da terra e a ser substituída por uma coisa nova na história
da humanidade, a que Gabriel Marcel chamou “Sociedade de Massas”, uma sociedade
manufacturada pela educação massificada, inflamada pela política massificada e
entretida pelo entretenimento em massa.
Por isso o estudante americano típico vem para a
universidade e nem reconhece o nome de Alfred Tennyson (pense nisso um bocadinho);
e o típico aluno hispano-americano vem para a universidade e não reconhece o
nome de Tennyson nem de Lope de Veja. Não se pode ser multicultural quando não
se pertence a cultura nenhuma.
Nesta fase, com os bárbaros de Wall Street, Hollywood,
Washington e Bruxelas às portas de cada reduto de cultura local, linguística e
nacional, o que é que a comunidade académica faz? Bem, faz aquilo que sempre
fez, desde que me conheço: Rende-se.
Claro que reveste a sua traição com o vocabulário da
respeitabilidade intelectual, mas quem não está interessado em Chretien de
Troyes também não terá interesse na Senhora Murosaki. As pessoas que não ficam
escandalizadas quando um anglófono com formação universitária não sabe nada
sobre Milton – porque eles próprios, os professores, não sabem nada de Milton –
não se vão escandalizar quando um francófono com formação universitária admite
que não sabe nada de Racine.
A única instituição que ainda existe que pode defender a
beleza e bondade da cultura é a Igreja. É nela que as culturas do mundo têm
alguma hipótese de sobrevivência. Talvez isso explique porque é que a
comunidade académica é tão hostil para com a Igreja. Os profissionais não
gostam de ser ultrapassados pelo “amador”.
Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence
College. Os seus mais
recentes livros são: Reflections on the Christian Life: How
Our Story Is God’s Story e Ten Ways to
Destroy the Imagination of Your Child.
(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 16 de Março
de 2017 em The Catholic Thing)
©
2017 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os
direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente.
As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o
consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment