Wednesday 8 March 2017

Diferentes Tipos de Cruzes

Howard Kainz
Já várias vezes ouvi pessoas a falar das suas vidas e a dizer coisas do género “não mudaria nada, faria tudo igual”.

Fico sempre espantado com estas afirmações. Penso nas minhas experiências, nas listas e de prós e contras que fazia quando confrontado com grandes decisões (frequentemente com o mesmo número de prós e contras) e os arrependimentos que às vezes se seguiam aos meus erros e/ou pecados.

Quando rezo pelas Pobres Almas do Purgatório imagino-as a sofrer pelas consequências das suas más escolhas, talvez desejando poder voltar atrás para remediar esta ou aquela decisão. Mas infelizmente o tempo só flui para a frente, não se pode voltar atrás.

Sei que a minha forma de ver estes assuntos tem a ver com o meu temperamento. No livro “Variedades de Experiências Religiosas” William James explica que há dois tipos opostos de personalidade – os “nascidos uma vez” e os “nascidos segunda vez”. Os “nascidos uma vez” são os crentes que caminham ao longo daquilo que consideram ser um caminho recto, que estão geralmente satisfeitos com as suas vidas e não têm arrependimentos. Já os “nascidos duas vezes” são mais introvertidos, insatisfeitos com eles mesmos e/ou com o mundo, experimentando desejos conflituosos, chegando por vezes a uma experiência de conversão e “renascendo” para um estado de maior felicidade.

Em relação às cruzes – fardos nossos ou dos outros que temos de carregar – penso que existe uma divisão parecida:

1) Há muitos indivíduos que são inocentes mas que todavia são afectados por cruzes pesadas, como doenças genéticas, maus-tratos, rejeição devido a um desfiguramento ou impedimento de fala ou que são perseguidos por seguirem firmemente as suas consciências em vez da multidão.

2) No outro extremo há aqueles cujas cruzes são fruto das suas próprias acções: um recluso a cumprir uma longa pena por causa de uns breves momentos de paixão ou de vingança; uma mulher carrancuda, casada com um malandro alcoólico devido a uma paixoneta de juventude ou por ter dado o nó irreflectidamente; um homem ligado a um grupo de sócios corruptos por causa da ambição e da ganância da juventude; ou alguém de meia-idade a lidar com as debilidades de um corpo enfraquecido pelo abuso de drogas, álcool ou excesso de alimentação, etc.

Infelizmente os que encaixam neste grupo não podem propriamente perguntar “como é que Deus me fez isto?” ou “porque é que Deus me envia estas cruzes?”, porque sabem muito bem como é que chegaram a este ponto e que não podem voltar atrás para “dar o passo certo”.

Cruzes para todos os gostos
Mas tanto eles como nós podemos ter a certeza de que Deus está sempre disposto a ajudar-nos, seja pela reforma, pelo redireccionamento ou pela aceitação paciente. O simples reconhecimento do poço que cavámos para nós próprios pode ser um catalisador para a redenção e para a santidade. A lista de grandes santos que seguiram este caminho já vai longa.

Claro que a maior parte de nós encontra-se algures entre estes dois extremos.

Mas se nos fosse dado escolher as nossas cruzes, o melhor seria sempre optar pela que Jesus nos oferece: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt. 11,29). Mais especificamente, o tipo de cruz que o Senhor promete dar-nos, adequados às nossas fraquezas, que não se fazem acompanhar de ansiedade, ressentimento ou a sensação de futilidade, mas que dão descanso às nossas almas.

Carregar as cruzes pelas quais não somos responsáveis até pode traduzir-se em deleite, como quando os apóstolos regozijaram “por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus” (Actos 5,41); ou então na serenidade do “pequeno caminho” de Santa Teresa de Lisieux, aturando simplesmente as dores, doenças, irritações ou mesmo hostilidades do dia-a-dia, “oferecendo-as” a Deus.

Se não for assim tão inocente e estiver com vontade de fazer penitência pelos seus pecados, talvez a melhor abordagem seja aquela que foi dada por São João Baptista quando os pecadores lhe perguntaram o que deviam fazer, como lemos em Lucas 3, 12-14. Aos cobradores de impostos disse para cumprirem os seus deveres e não cobrarem demais; aos soldados disse para se satisfazerem com os seus ordenados, evitarem a extorsão e não acusar falsamente – por outras palavras, cumpram os vossos deveres, não utilizem força desnecessária e respeitem os outros. Não estamos perante actos dramáticos de penitência, mas apenas progressos diários e conscientes.

Estes conselhos foram repetidos à Irmã Lúcia dos Santos, a vidente de Fátima, que se tinha tornado freira e queria responder às questões que recebia sobre que género de penitência Deus estava a pedir para o Século XX. Em 1945 Nosso Senhor apareceu a Lúcia e clarificou: “O sacrifício que se pede a cada um é o cumprimento dos seus deveres na vida e a observância da Minha Lei. Esta é a penitência que procuro e quero”.

Não há como evitar as cruzes. Mas sejam elas o tipo que trazemos sobre nós mesmos ou os que não pedimos, o mais relevante para nós são os conselhos do Baptista e de Jesus, via Lúcia.

Se tivéssemos o privilégio de ver um panorama espiritual do mundo, provavelmente ficaríamos espantados com a quase infinita variedade de cruzes que existem, muitas merecidas, muitas imerecidas. Talvez compreendêssemos que as pessoas que estão em melhor posição para compreender as cruzes de outros são as que carregam cruzes semelhantes.

Talvez nos traga consolo ouvir um “eu compreendo” genérico, mas é diferente alguém dizer-nos “sim, já estive na mesma situação, nisso somos iguais”.

Também pode ser útil recordar que, na misteriosa economia da salvação cristã, os sofrimentos que suportamos podem, de alguma forma, assegurar a salvação de outros, provavelmente pessoas que nem conhecemos.

Seja como for, esperemos e esforcemo-nos durante esta Quaresma para que a maioria das nossas futuras cruzes sejam “feitas à medida” e não o género que criamos para nós mesmos por causa dos nossos erros.


Howard Kainz é professor emérito de Filosofia na Universidade de Marquette University. Os seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and Reexamination (2004), The Philosophy of Human Nature (2008), e The Existence of God and the Faith-Instinct (2010)

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 4 de Março de 2017)

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