Howard Kainz |
Já várias vezes ouvi pessoas a falar das suas vidas e a
dizer coisas do género “não mudaria nada, faria tudo igual”.
Fico sempre espantado com estas afirmações. Penso nas
minhas experiências, nas listas e de prós e contras que fazia quando confrontado
com grandes decisões (frequentemente com o mesmo número de prós e contras) e os
arrependimentos que às vezes se seguiam aos meus erros e/ou pecados.
Quando rezo pelas Pobres Almas do Purgatório imagino-as a
sofrer pelas consequências das suas más escolhas, talvez desejando poder voltar
atrás para remediar esta ou aquela decisão. Mas infelizmente o tempo só flui
para a frente, não se pode voltar atrás.
Sei que a minha forma de ver estes assuntos tem a ver com
o meu temperamento. No livro “Variedades de Experiências Religiosas” William
James explica que há dois tipos opostos de personalidade – os “nascidos uma vez”
e os “nascidos segunda vez”. Os “nascidos uma vez” são os crentes que caminham
ao longo daquilo que consideram ser um caminho recto, que estão geralmente
satisfeitos com as suas vidas e não têm arrependimentos. Já os “nascidos duas
vezes” são mais introvertidos, insatisfeitos com eles mesmos e/ou com o mundo,
experimentando desejos conflituosos, chegando por vezes a uma experiência de
conversão e “renascendo” para um estado de maior felicidade.
Em relação às cruzes – fardos nossos ou dos outros que
temos de carregar – penso que existe uma divisão parecida:
1) Há muitos indivíduos que são inocentes mas que todavia
são afectados por cruzes pesadas, como doenças genéticas, maus-tratos, rejeição
devido a um desfiguramento ou impedimento de fala ou que são perseguidos por
seguirem firmemente as suas consciências em vez da multidão.
2) No outro extremo há aqueles cujas cruzes são fruto das
suas próprias acções: um recluso a cumprir uma longa pena por causa de uns
breves momentos de paixão ou de vingança; uma mulher carrancuda, casada com um
malandro alcoólico devido a uma paixoneta de juventude ou por ter dado o nó
irreflectidamente; um homem ligado a um grupo de sócios corruptos por causa da
ambição e da ganância da juventude; ou alguém de meia-idade a lidar com as
debilidades de um corpo enfraquecido pelo abuso de drogas, álcool ou excesso de
alimentação, etc.
Infelizmente os que encaixam neste grupo não podem
propriamente perguntar “como é que Deus me fez isto?” ou “porque é que Deus me
envia estas cruzes?”, porque sabem muito bem como é que chegaram a este ponto e
que não podem voltar atrás para “dar o passo certo”.
Cruzes para todos os gostos |
Claro que a maior parte de nós encontra-se algures entre
estes dois extremos.
Mas se nos fosse dado escolher as nossas cruzes, o melhor
seria sempre optar pela que Jesus nos oferece: “Tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso
para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt.
11,29). Mais especificamente, o tipo de cruz que o Senhor promete dar-nos,
adequados às nossas fraquezas, que não se fazem acompanhar de ansiedade,
ressentimento ou a sensação de futilidade, mas que dão descanso às nossas
almas.
Carregar as cruzes pelas quais não somos responsáveis até
pode traduzir-se em deleite, como quando os apóstolos regozijaram “por terem
sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus” (Actos
5,41); ou então na serenidade do “pequeno caminho” de Santa Teresa de Lisieux,
aturando simplesmente as dores, doenças, irritações ou mesmo hostilidades do
dia-a-dia, “oferecendo-as” a Deus.
Se não for assim tão inocente e estiver com vontade de
fazer penitência pelos seus pecados, talvez a melhor abordagem seja aquela que
foi dada por São João Baptista quando os pecadores lhe perguntaram o que deviam
fazer, como lemos em Lucas 3, 12-14. Aos cobradores de impostos disse para cumprirem
os seus deveres e não cobrarem demais; aos soldados disse para se satisfazerem
com os seus ordenados, evitarem a extorsão e não acusar falsamente – por outras
palavras, cumpram os vossos deveres, não utilizem força desnecessária e
respeitem os outros. Não estamos perante actos dramáticos de penitência, mas
apenas progressos diários e conscientes.
Estes conselhos foram repetidos à Irmã Lúcia dos Santos,
a vidente de Fátima, que se tinha tornado freira e queria responder às questões
que recebia sobre que género de penitência Deus estava a pedir para o Século
XX. Em 1945 Nosso Senhor apareceu a Lúcia e clarificou: “O sacrifício que se
pede a cada um é o cumprimento dos seus deveres na vida e a observância da
Minha Lei. Esta é a penitência que procuro e quero”.
Não há como evitar as cruzes. Mas sejam elas o tipo que
trazemos sobre nós mesmos ou os que não pedimos, o mais relevante para nós são
os conselhos do Baptista e de Jesus, via Lúcia.
Se tivéssemos o privilégio de ver um panorama espiritual
do mundo, provavelmente ficaríamos espantados com a quase infinita variedade de
cruzes que existem, muitas merecidas, muitas imerecidas. Talvez
compreendêssemos que as pessoas que estão em melhor posição para compreender as
cruzes de outros são as que carregam cruzes semelhantes.
Talvez nos traga consolo ouvir um “eu compreendo” genérico,
mas é diferente alguém dizer-nos “sim, já estive na mesma situação, nisso somos
iguais”.
Também pode ser útil recordar que, na misteriosa economia
da salvação cristã, os sofrimentos que suportamos podem, de alguma forma,
assegurar a salvação de outros, provavelmente pessoas que nem conhecemos.
Seja como for, esperemos e esforcemo-nos durante esta
Quaresma para que a maioria das nossas futuras cruzes sejam “feitas à medida” e
não o género que criamos para nós mesmos por causa dos nossos erros.
Howard Kainz é professor emérito de Filosofia na
Universidade de Marquette University. Os seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and Reexamination (2004), The Philosophy
of Human Nature (2008),
e The Existence of God and the Faith-Instinct (2010)
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 4 de Março de 2017)
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