Howard Kainz |
É evidente que pelo menos alguns bispos europeus, e
talvez vários americanos, consideram que o uso do “foro interno” para
“reconciliar” católicos recasados é uma prática aceite. Porquê a polémica
então? Estaremos a lidar com um fait
accompli? Um pouco de história pode ajudar.
A distinção entre os “foros externos” (por exemplo os
tribunais eclesiásticos) e o “foro interno” (i.e. o confessionário enquanto
tribunal da consciência) tem sido alvo de discussões há séculos no âmbito do
Direito Canónico e da teologia. Mas ao longo dos últimos 47 anos surgiram
várias vicissitudes de interpretação que conduziram aos actuais
desentendimentos sobre o chamado “recasamento católico”.
Esta cronologia pode ajudar a mostrar como chegámos ao
actual cenário:
1969: O padre Joseph Ratzinger publica um artigo num
jornal teológico em que discute a possibilidade
de que “na comunidade da Igreja Primitiva, como aparece representada em Mateus
5 e Mateus 19, havia a prática de divórcio e recasamento depois de um caso de
adultério”.
1972: No artigo “Sobre a Questão da Indissolubilidade do Casamento”,
Ratzinger contradiz a sua afirmação anterior uma vez que “à luz da completa
unanimidade da tradição ao longo dos primeiros quatro séculos em sentido
contrário, esta posição é inteiramente improvável”.
Mas mantem que em certos casos existe a possibilidade “não judicial, com base
no testemunho do pastor e de membros da Igreja, de admitir à Comunhão aqueles
que vivem num segundo casamento”. Cita como justificação para isso a
falibilidade dos processos de nulidade e as eventuais novas obrigações morais
decorrentes de um segundo casamento.
1973: O Cardeal croata Franjo Šeper cita “a prática
aprovada do foro interno” de permitir aos católicos num segundo casamento
inválido que regressem aos sacramentos após o arrependimento.
1975: O Arcebispo Jean Jérôme Hamer, secretário da
Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) estipula que o foro interno pode
permitir aos católicos divorciados recasados receber os sacramentos caso
“tentem viver de acordo com as exigências dos princípios morais cristãos”.
1981: Essa estipulação, contudo, embora formalmente
aprovada pelo CDF, foi restringida pela Exortação Apostólica de João Paulo II,
“Familiaris Consortio”: “A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na
Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que
contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado
e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre
Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro
peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis
seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a
indissolubilidade do matrimónio.”
1991: Numa carta publicada no jornal católico inglês “The
Tablet”, o Cardeal Ratzinger clarifica a referência do Cardeal Šeper, de 1973,
à “prática aprovada”, sublinhando que este uso do foro interno implicaria um
“compromisso a abster-se de relações sexuais”.
2005: O Sínodo sobre a Eucaristia reafirma a decisão de
João Paulo II da “Familiaris Consortio”, de 1981.
2007: O Papa Bento XVI, na exortação apostólica “Sacramentum
Caritatis”, reitera a decisão do Sínodo de 2005.
2015: O Cardeal Christoph Schönborn, no seu livro “A
Vocação e Missão da Família: Documentos Essenciais do Sínodo dos Bispos” dá um
exemplo do uso correcto do foro interno: “Se uma mulher, por exemplo, teve um
casamento falhado e um aborto, mas mais tarde ‘recasou’ civilmente e agora tem
cinco filhos e deseja receber absolvição pelo seu anterior aborto… vocês
[padres] não a podem deixar partir sem a libertar do fardo do seu pecado.”
2016: O Papa Francisco escolhe o Cardeal Schönborn para
apresentar a exortação apostólica “Amoris Laetitia”, que aconselha os padres a
acompanhar aqueles que se encontram em “situações conjugais irregulares” a
evitar transformar o confessionário numa “câmara de torturas” ou a Eucaristia
como um “prémio para os perfeitos”.
É natural que alguns se questionem, por isso, se não
estamos perante uma regeneração da tese de Schönborn.
À luz do Direito Canónico ainda existem usos legítimos
para o foro interno na absolvição de católicos divorciados recasados. Se o
“foro externo” dos tribunais eclesiásticos não puder ser usado por falta de
testemunhas, provas ou simplesmente por indisponibilidade, então o foro interno
seria o lugar de último recurso. Também, em casos de morte iminente, um
penitente pode receber o sacramento da unção dos doentes e a absolvição.
Mais importante que qualquer foro interno... |
As “viúvas e os órfãos” criados pela prática actual de divórcio sem culpabilidade e as
dificuldades de mulheres católicas que ainda se sentem sacramentalmente ligadas
ao homem que as abandona são um problema dos nossos dias. Devem sair à procura
de um novo marido? Acrescentar mais um nome à lista de “divorciados recasados”?
A Bai Macfarlane dirige uma organização chamada Mary’s Advocates que se dedica “a
fortalecer o casamento, eliminar os divórcios forçados sem culpabilidade e apoiar
aqueles que foram injustamente abandonados pelos seus esposos”. Um dos seus
actuais projectos passa por apresentar petições online para entregar a bispos, pedindo-lhes
que intervenham para evitar rupturas e ajudar o potencial abandonador a “recordar
as suas promessas matrimoniais e a sua vontade inicial profunda de ser um
esposo dedicado”
De certeza que este tipo de acção preventiva é tão
importante e legítimo como o recurso ao “foro interno”. Neste Jubileu da
Misericórdia seria bom reconhecer que não só os bispos, mas a Igreja como um
todo, deve apoiar social, financeira e espiritualmente os esposos injustamente
abandonados.
Howard Kainz é professor emérito de Filosofia na
Universidade de Marquette University. Os seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and Reexamination (2004), The Philosophy
of Human Nature (2008),
e The Existence of God and the Faith-Instinct (2010)
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Sábado, 27 de Abril de 2016)
© 2016
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte:info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica
inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o
consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment