Thursday 16 November 2023

Indi Gregory. Braço-de-ferro entre governo britânico e direitos paternais faz mais uma vítima

Morreu esta segunda-feira, com quase oito meses de idade, a pequena Indi Gregory.

Para quem não acompanhou a história, a Indi nasceu com uma rara doença mitocondrial que lhe causou danos cerebrais irreparáveis. Estando internada, os médicos sugeriram aos pais que nada havia a fazer, e que por isso deveria ser desligado o suporte de vida e administrados cuidados paliativos, deixando o bebé morrer.

Os pais contestaram, dizendo que a sua filha reagia aos estímulos e que queriam prolongar a sua vida. Perante este impasse, como tem acontecido com alguma frequência no Reino Unido, o hospital levou o caso a tribunal, que tem decidido sempre a favor dos médicos, contra a vontade dos pais.

Já perto do final do processo o hospital Bambino Gesú, em Roma, ofereceu-se para acolher a Indi e cuidar dela, tentando eventualmente umas terapias alternativas que não lhe conseguiriam restaurar à saúde plena, mas talvez permitissem prolongar a vida sem sofrimento. Para tal, o Governo italiano até aprovou a concessão de cidadania italiana à menina, mas ainda assim o tribunal não permitiu a transferência.

Perdidos os últimos recursos, o hospital retirou o suporte de vida, transferindo a pequena Indi para um hospício especializado em acompanhamento de final de vida, onde ela morreu. Não foi sequer permitido aos pais levar a sua filha para casa, para morrer perto deles.

Charlie, Alfie, Indi

Em primeiro lugar, este não é um caso extremo e isolado. Faz parte de um padrão de casos que têm surgido ao longo da última década no Reino Unido. Entre os que causaram mais polémica, e por isso se tornaram mais conhecidos, estão os casos de Charlie Gard e de Alfie Evans, mas há mais.

Nem todos os casos são iguais, claro, mas têm elementos comuns, nomeadamente o facto de a dada altura surgir uma diferença de opinião entre a equipa médica e os pais sobre o tratamento da criança e aquilo que concorre para o seu melhor interesse. Em todos os casos a equipa médica recorreu aos tribunais, tendo obtido destes o consentimento para cessar qualquer tratamento, deixando as crianças morrer.

Não vou entrar em detalhes, mas posso dizer que a minha opinião sobre os três casos não foi unânime. No caso de Charlie parece-me que o tribunal tomou a decisão correcta, e no caso de Alfie Evans e de Indi Gregory parece-me que tomou a decisão errada. Este texto que escrevi sobre o Alfie Evans explica os contornos gerais de ambos os casos.  

Filhos dos pais ou do Estado?

A questão polémica aqui não é a morte das crianças. Tristemente, as crianças também adoecem e morrem, e se desaprovamos a distanásia – o prolongamento desnecessário e forçado de uma vida em sofrimento – para os adultos, não há razão para a aprovar para crianças. Prolongar a vida a todo o custo não é uma solução ética, e nem a Igreja Católica, nem a bioética em geral, o defendem.

O verdadeiro cerne desta questão é o conflito entre pais e Estado sobre a custódia da criança e o direito a decidir o que é melhor para ela, e quais as abordagens clínicas que querem adoptar.

Deixem-me ser claro. Este é um direito fundamental dos pais. É deles a responsabilidade de decidir qual é o melhor interesse dos seus filhos. Contudo, a sociedade admite que em casos extremos o Estado possa retirar esse direito aos pais, como faz noutros casos extremos em que a criança é vítima de maus tratos, por exemplo. Mas sublinho: casos extremos.

Devemos então interrogar-nos: estávamos perante um caso extremo? Não vejo qualquer razão para pensar que sim. Ao contrário do que se passou no caso de Charlie Gard, os pais não estavam a tentar transferir a sua filha para outro continente, para prosseguir uma terapia vaga e experimental proposta por um médico isolado que tinha muito a lucrar. A proposta aqui, como já tinha sido no caso do Alfie Evans, era a transferência para um hospital sério, com excelente reputação e especializado no cuidado de crianças, onde a Indi seria acompanhada por uma equipa de médicos igualmente séria. A transferência para Itália, e o tratamento, não acarretariam qualquer custo para o sistema nacional de saúde do Reino Unido (embora esse não deva ser um factor decisivo, como é evidente).

Ao negar aos pais o exercício desse direito o Estado está a dizer, repetidamente, que é ele o melhor garante do bem-estar das crianças doentes e, o que é extremamente grave, a normalizar o princípio de se substituir ao poder e discernimento paternal.

No Reino Unido caminha-se – se é que não se chegou já – a uma situação em que os filhos são encarados como propriedade e responsabilidade do Estado, estando apenas emprestados aos pais enquanto as escolhas destes não colidirem com a visão da tutela. Isto é próprio de um estado autoritário, e não de um estado de direito, e põe em causa a aquela que é a célula base e essencial de toda a sociedade saudável: a família, unida e sólida.

Há outras preocupações com o sistema de saúde inglês, por um lado o protocolo para cuidados de fim de vida, o chamado Liverpool Care Pathway, que prevê a retirada de cuidados essenciais como a hidratação, a nutrição e a oxigenação, e por outro uma derrapagem do conceito de dignidade, que já não é vista como inerente à condição humana, mas sim ao conforto material e sanitário dos doentes. Mas não há espaço aqui para aprofundar todas estas complicações.

Em resumo, os pais da Indi merecem a nossa solidariedade. Porque perderam uma filha, sim, mas sobretudo porque lhes foi retirado o direito a tomarem – em consciência – as decisões que acreditavam melhor servir os interesses da sua filha e da sua família. E se a primeira dessas coisas é uma tragédia infelizmente comum e própria da vida humana, que é sempre frágil, a segunda não devia acontecer a ninguém.

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