Num mundo perfeito a Hagia Sophia seria ainda uma das
maiores igrejas da Cristandade, localizada numa cidade chamada Constantinopla,
ainda de maioria cristã.
Mas nós não vivemos num mundo ideal e, obviamente, há
muitos muçulmanos e turcos que discordam radicalmente da minha visão de como
seria esse mundo.
Ao contrário do que se poderia pensar lendo algumas das
críticas que têm surgido, a Hagia Sophia não foi repentinamente transformada de
igreja em mesquita pelo atual Presidente da Turquia, agora em julho de 2020,
mas sim pelo Sultão Mehmet, em 1453, quando as suas forças conseguiram ocupar a
cidade.
Durante quase 500 anos a antiga catedral funcionou como
mesquita.
Só em 1933 é que o pai da ocidentalização da Turquia,
Ataturk, transformou a mesquita em museu. Foi esse decreto que foi agora
considerado inválido pelo mais alto tribunal turco, que assim consumou a
transformação do museu novamente em mesquita. Mais do que um atentado ao
Cristianismo, foi um atentado ao secularismo da Turquia. Mais um.
Tendo em conta que a hipótese ideal de a Hagia Sophia
voltar a ser uma igreja não é viável, o que é que é melhor? Ser uma mesquita ou
ser um museu? A Igreja Católica reconhece que os muçulmanos adoram o verdadeiro
Deus. Isto é muito diferente de dizer que o Islão possui a verdade da revelação,
mas não deixa de ser significativo. Tendo isso em conta, é melhor que continuem
a ressoar louvores ao verdadeiro Deus – ainda que entendido de forma
incompleta, sem a sua dimensão trinitária – ou que seja um espaço secularizado?
Honestamente, não sei para que lado virar. Mas isso
também não é o mais importante. O que eu quero explicar com este texto é que o
problema de Erdogan ter transformado a Hagia Sophia numa mesquita não é a
mesquita, é mesmo Erdogan. Ou melhor, é o projeto de islamização da sociedade
que Erdogan tem em marcha na Turquia.
Depois de anos a baterem à porta da União Europeia os
turcos finalmente perceberam que Bruxelas nunca os ia deixar
entrar. Então Erdogan virou-se para o Oriente e vai, aos poucos, tentando ressuscitar
o cadáver do Império Otomano.
E se a transformação de um museu numa mesquita pode ferir
o nosso orgulho, e fragilizar o Patriarca de Constantinopla – razão pela qual a
Rússia, sempre tão ciosa dos direitos dos cristãos perseguidos, agora considera
que isto é um assunto interno de Ancara – são as outras medidas de Erdogan que
verdadeiramente ameaçam os cristãos.
A atuação da Turquia na Síria é inqualificável. Apoiando
os mesmos grupos jihadistas que andaram a decapitar cristãos e tantos outros e atacando
frontalmente os grupos curdos no nordeste da Síria, aliados dos cristãos, que
construíram o que há de mais próximo de uma democracia naquela região. No
interior da Turquia o clima continua a tornar-se cada vez mais hostil para os
cristãos que permanecem no país, tanto para os membros das comunidades
históricas – arménios, siríacos, gregos – como para os poucos turcos que se
convertem a confissões evangélicas, com grande sacrifício pessoal.
Tudo isto acompanhado de um aperto cada vez maior da democracia
interna, de que a eleição para a câmara de Istanbul foi apenas um exemplo, com
o Governo a mandar repetir o escrutínio depois do seu candidato ter perdido.
Mas é interessante ver o que aconteceu nesse caso. O tiro
saiu pela culatra e o candidato da oposição acabou por ver a sua maioria
crescer na segunda votação, ao ponto de ter sido impossível a Erdogan
interferir mais.
E este contexto é importante. Há dias eu escrevi no
Twitter que não tinha acreditado que Erdogan fosse ao ponto de tomar mesmo esta
decisão com a Hagia Sophia. Recebi uma resposta de um português que vive e
estuda na Turquia a dizer que este é um acto de desespero de quem está a
começar a perder o controlo do país e tem de recorrer a malabarismos cada vez
mais impressionantes para cativar a sua base.
Será esse o caso? Veremos. Talvez o canto do Muezzin que
vai voltar a ouvir-se dos minaretes que os otomanos colocaram à volta da
catedral dedicada à Santa Sabedoria sejam mesmo o canto do cisne do aspirante a
sultão.
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