Ines A. Marzaku |
Hoje está na moda anular a história. Começou nos Estados
Unidos, mas já se espalhou para Itália, Espanha, Inglaterra, Bélgica e, mais
recentemente, a Turquia. Algumas das principais técnicas incluem o derrube e a
profanação de monumentos e estátuas que funcionam como museus exteriores,
contando a história das pessoas que fizeram História. Pode-se conhecer a
história de uma cidade explorando as estátuas e os monumentos nos parques e
áreas comuns.
O Presidente da Turquia, Tayyip Erdogan, juntou-se agora
ao grupo quando declarou a sua intenção de converter a majestosa basílica cristã de Hagia Sophia (Igreja da Santa Sabedoria) – atualmente um museu
nacional e um dos locais mais visitados na Turquia – numa mesquita. E o
Conselho de Estado, o mais alto órgão administrativo da Turquia, concordou que
o pode fazer.
Qual é a história da Hagia Sophia?
Distingue-se pela sua beleza indiscritível, sendo de
tamanho e de harmonia de medidas excelentes, sem excesso nem deficiência; sendo
mais magnífica que os edifícios normais, e muito mais elegante que aqueles que
não são de tão justas proporções. A Igreja é singularmente repleta de luz e de
sol; pode-se declarar que o espaço não é iluminado de fora, pelo sol, mas que
os raios são produzidos no seu interior, tal é a abundância de luz que entra
nesta igreja.
Assim escreveu Procópio de Cesareia (circa 500-565 A.D.),
um importante historiador bizantino de Constantinopla (hoje Istambul), na
descrição que fez da Hagia Sophia no seu livro "De Aedificiis" (Sobre
Edifícios), que foi escrito por volta de 554. Nessa obra atribui ao
Imperador Justiniano, entre outros, a responsabilidade por tão magnífico feito.
A Igreja de Justiniano tornou-se um ícone de
Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente. O imperador ficou tão
satisfeito com o resultado que durante a cerimónia de dedicação, em Dezembro de
537, exclamou: “Oh Salomão, eu superei-te!”, comparando a sua igreja ao Templo
de Salomão, em Jerusalém.
Durante 900 anos a Hagia Sophia esteve no centro do
Império Bizantino. Era a sede do Patriarca Ecuménico de Constantinopla, o lugar
onde se realizavam os concílios ecuménicos, onde os imperadores eram coroados e
se faziam vigílias nocturnas e majestosas procissões até à queda de
Constantinopla para os Otomanos, a 29 de Maio de 1453.
Andando a cavalo pelas ruas da cidade conquistada, o
Sultão Mehmet II “desmontou às portas da igreja e baixou-se para pegar numa mão
cheia de terra, que polvilhou por cima do turbante, como acto de humildade
diante de Deus”. O sultão converteu a Igreja de Hagia Sophia na Grande Mesquita
de Aya Sofya, como permaneceu até 1934, quando um decreto do primeiro
presidente da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, transformou o
edifício num museu.
Em 1985 a UNESCO declarou-a Património Mundial.
Porque é que é importante que a Hagia Sophia continue a
ser um museu?
Interessa para a história e interessa às pessoas, tanto
cristãos como muçulmanos. É importante preservar a memória e os museus e as
estátuas são formas comprovadas de preservar a cultura e a religião – no que
merece ser preservado, recordado, valorizado e transmitido a futuras gerações.
O museu comprovou ser uma excelente forma de recordar
tanto a Igreja de Hagia Sophia como o Mesquita de Aya Sofya. Serviu não só como
registo de uma história multissecular, mas como transmissor de conhecimento dos
impérios romano e bizantino para a República Turca de Atatürk. Este edifício
magnífico, e outrora religioso, é uma recordação visível e tangível de impérios
e religiões do mundo Mediterrânico, numa belíssima síntese.
Desde cedo na sua carreira política, o Presidente turco
Recep Tayyip Erdogan lamentou a conversão por Atatürk da Mesquita de Aya Sofya
num museu. Em vez disso ele prefere anular mais de nove séculos de história
cristã, para grande consternação do Patriarca Ecuménico de Constantinopla,
Bartolomeu I, do Patriarca russo Cirilo e do Papa Francisco.
Para Bartolomeu I, a Hagia Sophia é um lugar sagrado em
que o Oriente e o Ocidente se abraçaram. A anulação desta memória causará uma
profunda divisão entre estes dois mundos. Mantendo o seu estatuto de museu, o
local continuaria a servir como um exemplo de solidariedade e de compreensão
mútua entre o Cristianismo e o Islão.
O Patriarca Cirilo da Rússia considera que a conversão da
Hagia Sophia de museu em mesquita é uma ameaça ao Cristianismo. Numa recente
entrevista à Interfax, o Metropolita Hilário, responsável pelas Relações
Externas do Patriarcado de Moscovo, expressou o seu desapontamento com a
atitude de Erdogan, dizendo: “A Hagia Sophia é património mundial. Não é por
acaso que as notícias da mudança do seu estatuto abalaram o mundo inteiro, especialmente
o mundo cristão. A Igreja é dedicada a Cristo, Sophia, a Sabedoria de Deus, é
um dos nomes de Cristo.”
Ainda este fim-de-semana o Papa Francisco, que tem feito
um grande esforço para cultivar boas relações com os muçulmanos, falou com uma
franqueza incaracterística: “Penso em Istanbul. Penso na Hagia Sophia. Estou
muito consternado”.
A história não pode ser destruída, cancelada ou alterada.
Até alguns turcos têm-se queixado dos esforços do Presidente para tentar criar
uma história única e falsa.
Para os católicos a história tem um sentido
transcendente, uma mensagem a transmitir e uma lição a aprender – e o
historiador é chamado a discernir as raízes desse sentido. A história não é
linear nem ideológica – ou, pior ainda, para ser usada com motivos políticos –
mas reclama continuamente nova reflexão e análise, para que o passado seja
revisitado e os erros não sejam repetidos.
O grande filósofo romano Marco Túlio Cícero escreveu em “De
Oratore” que Historia magistral vitae est (A História é mestre da vida).
A história, os seus monumentos e museus não devem ser destruídos ou anulados,
especialmente num esforço para dominar o presente. Eles têm o direito a falar
connosco – e a serem ouvidos.
No que diz respeito à Hagia Sophia, o tempo dirá como
esta moda de anular a história resultará para a Turquia. Por enquanto parece
que a chamada para a oração voltará a ressoar no dia 27 de julho, na mais
magnífica estrutura da Igreja Oriental.
Ines A. Murzaku é professora de Religião na Universidade
de Seton Hall. Tem artigos publicados em vários artigos e livros. O mais
recente é Monasticism in Eastern Europe and the Former Soviet Republics.
Colaborou com vários órgãos de informação, incluindo a Radio Tirana (Albânia)
durante a Guerra Fria; a Rádio Vaticano e a EWTN em Roma durante as revoltas na
Europa de Leste dos anos 90, a Voice of America e a Relevant Radio, nos EUA.
(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 13 de Julho
de 2020 em The Catholic Thing)
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