Wednesday 15 July 2020

De Museu a Mesquita. A Importância da Hagia Sophia

Ines A. Marzaku

Hoje está na moda anular a história. Começou nos Estados Unidos, mas já se espalhou para Itália, Espanha, Inglaterra, Bélgica e, mais recentemente, a Turquia. Algumas das principais técnicas incluem o derrube e a profanação de monumentos e estátuas que funcionam como museus exteriores, contando a história das pessoas que fizeram História. Pode-se conhecer a história de uma cidade explorando as estátuas e os monumentos nos parques e áreas comuns.

O Presidente da Turquia, Tayyip Erdogan, juntou-se agora ao grupo quando declarou a sua intenção de converter a majestosa basílica cristã de Hagia Sophia (Igreja da Santa Sabedoria) – atualmente um museu nacional e um dos locais mais visitados na Turquia – numa mesquita. E o Conselho de Estado, o mais alto órgão administrativo da Turquia, concordou que o pode fazer.

Qual é a história da Hagia Sophia?

Distingue-se pela sua beleza indiscritível, sendo de tamanho e de harmonia de medidas excelentes, sem excesso nem deficiência; sendo mais magnífica que os edifícios normais, e muito mais elegante que aqueles que não são de tão justas proporções. A Igreja é singularmente repleta de luz e de sol; pode-se declarar que o espaço não é iluminado de fora, pelo sol, mas que os raios são produzidos no seu interior, tal é a abundância de luz que entra nesta igreja.

Assim escreveu Procópio de Cesareia (circa 500-565 A.D.), um importante historiador bizantino de Constantinopla (hoje Istambul), na descrição que fez da Hagia Sophia no seu livro "De Aedificiis" (Sobre Edifícios), que foi escrito por volta de 554. Nessa obra atribui ao Imperador Justiniano, entre outros, a responsabilidade por tão magnífico feito.

A Igreja de Justiniano tornou-se um ícone de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente. O imperador ficou tão satisfeito com o resultado que durante a cerimónia de dedicação, em Dezembro de 537, exclamou: “Oh Salomão, eu superei-te!”, comparando a sua igreja ao Templo de Salomão, em Jerusalém.

Durante 900 anos a Hagia Sophia esteve no centro do Império Bizantino. Era a sede do Patriarca Ecuménico de Constantinopla, o lugar onde se realizavam os concílios ecuménicos, onde os imperadores eram coroados e se faziam vigílias nocturnas e majestosas procissões até à queda de Constantinopla para os Otomanos, a 29 de Maio de 1453.

Andando a cavalo pelas ruas da cidade conquistada, o Sultão Mehmet II “desmontou às portas da igreja e baixou-se para pegar numa mão cheia de terra, que polvilhou por cima do turbante, como acto de humildade diante de Deus”. O sultão converteu a Igreja de Hagia Sophia na Grande Mesquita de Aya Sofya, como permaneceu até 1934, quando um decreto do primeiro presidente da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, transformou o edifício num museu.

Em 1985 a UNESCO declarou-a Património Mundial.

Porque é que é importante que a Hagia Sophia continue a ser um museu?

Interessa para a história e interessa às pessoas, tanto cristãos como muçulmanos. É importante preservar a memória e os museus e as estátuas são formas comprovadas de preservar a cultura e a religião – no que merece ser preservado, recordado, valorizado e transmitido a futuras gerações.

O museu comprovou ser uma excelente forma de recordar tanto a Igreja de Hagia Sophia como o Mesquita de Aya Sofya. Serviu não só como registo de uma história multissecular, mas como transmissor de conhecimento dos impérios romano e bizantino para a República Turca de Atatürk. Este edifício magnífico, e outrora religioso, é uma recordação visível e tangível de impérios e religiões do mundo Mediterrânico, numa belíssima síntese.

Desde cedo na sua carreira política, o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan lamentou a conversão por Atatürk da Mesquita de Aya Sofya num museu. Em vez disso ele prefere anular mais de nove séculos de história cristã, para grande consternação do Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, do Patriarca russo Cirilo e do Papa Francisco.

Para Bartolomeu I, a Hagia Sophia é um lugar sagrado em que o Oriente e o Ocidente se abraçaram. A anulação desta memória causará uma profunda divisão entre estes dois mundos. Mantendo o seu estatuto de museu, o local continuaria a servir como um exemplo de solidariedade e de compreensão mútua entre o Cristianismo e o Islão.

O Patriarca Cirilo da Rússia considera que a conversão da Hagia Sophia de museu em mesquita é uma ameaça ao Cristianismo. Numa recente entrevista à Interfax, o Metropolita Hilário, responsável pelas Relações Externas do Patriarcado de Moscovo, expressou o seu desapontamento com a atitude de Erdogan, dizendo: “A Hagia Sophia é património mundial. Não é por acaso que as notícias da mudança do seu estatuto abalaram o mundo inteiro, especialmente o mundo cristão. A Igreja é dedicada a Cristo, Sophia, a Sabedoria de Deus, é um dos nomes de Cristo.”

Ainda este fim-de-semana o Papa Francisco, que tem feito um grande esforço para cultivar boas relações com os muçulmanos, falou com uma franqueza incaracterística: “Penso em Istanbul. Penso na Hagia Sophia. Estou muito consternado”.

A história não pode ser destruída, cancelada ou alterada. Até alguns turcos têm-se queixado dos esforços do Presidente para tentar criar uma história única e falsa.

Para os católicos a história tem um sentido transcendente, uma mensagem a transmitir e uma lição a aprender – e o historiador é chamado a discernir as raízes desse sentido. A história não é linear nem ideológica – ou, pior ainda, para ser usada com motivos políticos – mas reclama continuamente nova reflexão e análise, para que o passado seja revisitado e os erros não sejam repetidos.

O grande filósofo romano Marco Túlio Cícero escreveu em “De Oratore” que Historia magistral vitae est (A História é mestre da vida). A história, os seus monumentos e museus não devem ser destruídos ou anulados, especialmente num esforço para dominar o presente. Eles têm o direito a falar connosco – e a serem ouvidos.

No que diz respeito à Hagia Sophia, o tempo dirá como esta moda de anular a história resultará para a Turquia. Por enquanto parece que a chamada para a oração voltará a ressoar no dia 27 de julho, na mais magnífica estrutura da Igreja Oriental.


Ines A. Murzaku é professora de Religião na Universidade de Seton Hall. Tem artigos publicados em vários artigos e livros. O mais recente é Monasticism in Eastern Europe and the Former Soviet Republics. Colaborou com vários órgãos de informação, incluindo a Radio Tirana (Albânia) durante a Guerra Fria; a Rádio Vaticano e a EWTN em Roma durante as revoltas na Europa de Leste dos anos 90, a Voice of America e a Relevant Radio, nos EUA.

(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 13 de Julho de 2020 em The Catholic Thing)

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