Pe. Paul Scalia |
“Quem amar o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim, não
é digno de mim”, (Mt. 10,37). Pergunto-vos, o que é mais chocante nessa
afirmação? Que aquele homem, Jesus, um mero carpinteiro provinciano exigiu que
o amássemos mais do que aos nossos familiares mais próximos? Ou que Jesus,
nascido de Deus antes de todos os séculos, está a dizer que podemos ser dignos
dele?
Ambos os conceitos são chocantes, e é suposto. O primeiro
é de tal forma contrário à nossa forma de pensar que talvez nem apreciemos
suficientemente o segundo. Mas é precisamente o segundo que é a chave da
passagem.
Parece absurdo que possamos ser dignos dele. Em bom
rigor, não podemos ser dignos de Deus. Só Deus é digno de Deus. Porém, ao
contrário de outras afirmações de Cristo, Nosso Senhor não estava aqui a falar
em hipérboles ou figuras de estilo. Não é suposto arrancarmos os nossos olhos,
nem cortar as mãos, ou odiar o nosso pai e mãe (Mt 5,29-30; Lc 14-26) mas
devemos ser – ou devemos ser tornados – dignos de Cristo.
Esta é a verdade simples, mas assombrosa, sobre a graça
de Deus. É pela graça que Ele nos dá a participação na sua própria vida,
tornando-nos “participantes da natureza divina” (2 Pedro 1,4). Descrevemos essa
graça como deificante. O seu poder e o seu propósito não servem apenas para nos
tornar melhores, mas sim para nos divinizar, para nos dar a capacidade de amar
como Deus ama e – por mais chocante que possa parecer – ser dignos dele. De
facto, este é o propósito e o escândalo da Encarnação: “O filho de Deus
tornou-se homem para que nos tornássemos Deus” (Santo Atanásio).
Nesse sentido, encontramos orações sobre a dignidade em
várias vertentes da nossa religião. São Paulo escreve aos Tessalonicenses: “Por
isso também rogamos sempre por vós, para que o nosso Deus vos faça dignos da
sua vocação” (2 Tess 1, 11). O terço conclui com o pedido de que sejamos dignos
das promessas de Cristo. Igualmente, a colecta [oração de abertura] da festa do
Sagrado Coração de Jesus pede que “sejamos dignos de receber uma medida
transbordante de graça.
Não se trata de mera poesia ou metáfora, mas o apelo para
aquilo que o próprio Senhor deseja. A sua graça fez-nos participantes da sua
vida; pedimos a graça acrescida para podermos viver de forma digna dela. Das
duas uma, ou a sua Graça tem este poder, ou estamos a pedir um absurdo.
Se pensarmos sobre a fé em termos naturais – como uma
mera ajuda para viver uma vida neste mundo que nos realiza – então as palavras
de Nosso Senhor no Evangelho de domingo passado não são apenas erradas, são
verdadeiramente ofensivas. Mas quando apreciamos o dom da graça – que nos eleva
para participarmos na sua vida – então as suas palavras parecem-nos inteiramente
razoáveis. Não são ordens extremistas, mas a consequência lógica da graça.
Viver de acordo com a graça requer um reordenar radical
dos nossos amores: “Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não é
digno de mim, e quem ama o se filho ou a sua filha mais do que a mim, não é
digno de mim. Se queremos amar como Deus ama (que é o que a graça nos permite
fazer), então é preciso amá-lo primeiro – acima de, e por vezes mesmo contra, o
mais importante dos nossos amores naturais.
Todos os outros amores devem ceder ao divino. Se
colocarmos o afeto humano, ou a lealdade, acima de – ou até a par de – a graça
de Cristo, então perdemos a visão sobrenatural e começamos a vê-lo de um ponto
de vista humano (2 Cor, 5-16).
Mais do que isso, a vida de graça requer que renunciemos
a nós mesmos: “Quem não pegar na sua cruz para me seguir, não é digno de mim.
Quem encontrar a sua vida perdê-la-á e quem perder a sua vida por minha causa
encontrá-la-á”. No final de contas é disto que se trata: Recebemos a nossa
força de nós mesmos, ou da sua graça? Pegar na Cruz e perder as nossas vidas
significa transferir a nossa força e a nossa dignidade de nós para Ele.
A vida de graça requer ainda recetividade. De facto, é
este o propósito da auto-negação cristã. A renúncia e a auto-negação não
existem por si mesmas. Praticamo-la para criar espaço para Deus, para libertar
as passagens da alma para o fluir da sua graça. Esvaziamo-nos do orgulho e da
autossuficiência para termos espaço para o receber. A sua graça chega-nos livremente,
mas a sua eficácia depende da nossa vontade de receber e responder.
Consequentemente, depois de falar sobre renunciar, Nosso
Senhor fala sobre receber: “Quem vos recebe é a mim que recebe”. Receber
significa aceitar um dom, não de acordo com os nossos critérios e requisitos,
mas como nos é dado. “Quem receber um profeta por ser profeta receberá recompensa
de profeta”. Ter as nossas expectativas e requisitos em relação à graça de Deus
cria um obstáculo ao seu trabalho em nós. Recebemo-lo segundo os seus termos,
ou não recebemos de todo.
A oração do apóstolo não é em vão: Que o nosso Deus vos
torne dignos do seu chamamento”. Pela sua graça, Deus tornou-nos dignos dele,
participantes da sua própria natureza divina. Isto é um grande dom. A tarefa
que o acompanha é reconhecer esse dom – “Cristão, reconhece a tua dignidade!”
(São Leão) – e “leva uma vida digna do chamamento” (Efésios 4,1)
O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia,
do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o
delegado do bispo para o clero.
(Publicado pela primeira vez no domingo, 1 de Julho de 2020
em The Catholic Thing)
© 2020
The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de
reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião
católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade
dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o
consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment