Francis X. Maier |
No espaço de cinco meses, matou metade da população da
capital do Império Bizantino. A praga descarrilou os esforços do Imperador
Justiniano de restaurar o Império Romano do Ocidente. Paralisou os impérios
bizantino e persa durante gerações e deixou-os maduros para a expansão islâmica
no ano seguinte. Para todos os efeitos, pôs fim à Era da Antiguidade.
Pelo menos é essa a teoria de William Rosen no seu
entusiasmante livro de 2007, sobre a primeira grande pandemia da Europa, “A Pulga de Justiniano”. O mesmo tema – o poder da doença para promover as
mudanças civilizacionais – foi retomado no passado fim-de-semana (28 e 29 de
Março), pelo historiador Frank Snowden, de Yale, num artigo do Wall Street Journal. Snowden concentrou-se sobretudo nos surtos da Peste Negra
na Europa medieval e do renascimento. Cada uma destas pandemias ocorreu em
culturas cristãs. Os que sobreviveram ficaram impressionados com a ideia de que
podiam morrer a qualquer momento, sem aviso, por isso deviam preocupar-se com a
alma imortal.
Isto conduziu à prática generalizada do “arrependimento,
a autodisciplina e a oração”. A Igreja foi muito solicitada. Morreram
incontáveis membros do clero, na assistência aos doentes. Estas perdas, por sua
vez, moldariam o carácter e o rumo das igrejas por várias décadas.
A actual situação com o coronavírus é ao mesmo tempo
diferente e semelhante às pandemias do passado. É diferente na taxa de
mortalidade. A covid-19 é um assunto sério, muito perigoso para certas idades e
grupos de risco, e muito contagioso. Mas a grande maioria das pessoas que
ficarem infetadas vão recuperar. Isto deve-se também à capacidade das
autoridades sanitárias para compreender e responder à crise.
Ao mesmo tempo, a crise é semelhante na medida em que
lança uma sombra de mortalidade sobre culturas que se habituaram a décadas de
autoconfiança, distrações e riqueza. Toda a gente sabe que um dia vai morrer, mas
tornámo-nos especialistas em evitar pensar no assunto. Para as nações ricas e
para as suas elites a festa acabou. Pelo menos por agora.
Uma das coisas que torna esta crise diferente é a
resposta das pessoas, em termos religiosos. No Irão, e noutros países
muçulmanos, multidões forçaram a entrada nas mesquitas fechadas para poderem
rezar. Em contraste, no Ocidente muitos cristãos expressaram a sua frustração
com o encerramento das igrejas, mas na maioria aceitaram a prudência da
decisão.
Hoje é fácil acompanhar a missa dominical online. O mesmo
se aplica a retiros, reflecções e cursos católicos que preenchem o vazio
deixado pelo culto. Muitos padres estão a ouvir confissões em ambientes
cuidadosamente higienizados e regulados. A adoração eucarística, com
distanciamento social apropriado, está a realizar-se durante várias horas por
dia, todos os dias.
Mas o sentido de uma cultura cristã partilhada, com um
vocabulário que dá sentido ao sofrimento, perdeu-se – e com ele a viragem comum
para o “arrependimento, autocrítica e oração”. Enquanto nação desviámos os
olhos durante décadas enquanto outros apagavam Deus do nosso vocabulário, do
nosso pensamento e das instituições que sustentam a nossa vida pública. Agora
que precisamos dele as pessoas já não têm as palavras nem a memória para o
encontrar.
A lição mais comovente para os fiéis, durante esta crise,
pode ser o sentido de perda e de depressão por que passam muitos dos nossos
padres. O meu pároco ressuscitou uma comunidade moribunda no espaço de três
anos. Deu-lhe novamente um sentido. A participação na missa voltou a ser uma
alegria.
E ele é dos que têm sorte. Vem de uma família grande, com
muitos parentes, não está, por isso, sozinho; mas alguns dos seus colegas não
têm nada para além de uma casa paroquial vazia. Ainda assim, grande parte da
sua vida enquanto pastor de uma comunidade viva está suspensa há semanas.
A escola paroquial está fechada. Os donativos que
sustentavam a vida paroquial, e que tinham melhorado substancialmente,
diminuíram, porque ninguém está nas igrejas. E alguns dos mais tímidos não
voltarão quando a Igreja reabrir. Já estavam hesitantes, não os voltaremos a
ver.
A “mudança civilizacional” provocada pelo coronavírus
pode ser menos drástica que as pandemias do passado. Mas para os cristãos
ocidentais clarifica as lealdades de forma dolorosa.
Pouco antes de morrer, o grande romancista católico
francês Georges Bernanos escreveu que enquanto a fé e o amor cristãos “não desaparecerem
do mundo, enquanto o mundo tiver a sua dose de santos, certas verdades podem
ser esquecidas. Agora [essas verdades] estão a reemergir, como rochas na maré
vazia. São a santidade e os santos que mantêm a vida interior sem a qual a
humanidade se deve rebaixar ao ponto de extinção”.
A doença que nos cerca este ano, enquanto nos preparamos
para a Semana Santa, é para nós um espelho das nossas verdadeiras preocupações
e desejos. É uma oportunidade para rezar por todos os que sofrem com este vírus;
de recordar e rezar pelos nossos padres; de nos apoiarmos como pudermos; e de
valorizar o tempo precioso que temos com as pessoas de quem gostamos. E é ainda
um convite a examinar a infecção de mundanidade que alastra nos nossos
corações.
A vida, como somos agora forçados a recordar, é frágil.
Ninguém nos pode obrigar a oferecer-nos sincera e totalmente a Deus, mas se
alguma vez houve um tempo para o fazer, é agora.
Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do
arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do
National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da
Arquidiocese de Denver entre 1993-96.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 1 de abril de 2020)
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