Wednesday 18 December 2019

Rumo à Novilíngua

Hadley Arkes
George Orwell imaginou, no seu livro “1984”, um regime totalitário a impor uma inversão da linguagem moral, uma Novilíngua em que “guerra” significa “paz” e “paz” significa “guerra”. Orwell causou um impacto tão forte que tínhamos a certeza que conseguiríamos detetar esse novo despotismo à distância, bem antes de ele nos atingir.

Mas essa deriva linguística já aconteceu, de forma tão suave que quase nem demos por isso. Isso revelou-se outra vez na semana passada, de forma tranquila, sem o som de trombetas. Veio numa decisão do Supremo Tribunal de não aceitar ouvir um processo. Ao recusar, o Tribunal deixou no lugar a decisão de um tribunal inferior a sustentar uma lei do Kentucky sobre o “consentimento informado” em relação ao aborto.

A lei estipulava que um médico que se preparasse para fazer um aborto tinha a obrigação de disponibiliza à mulher uma ecografia do seu bebé. A mulher não tinha a obrigação de ver a ecografia, mas ainda assim o mero acto de manter essa lei foi o suficiente para lançar uma onda de pânico entre os defensores do aborto.

Mas qual era o problema? Inicialmente foi-nos dito que o aborto era uma “escolha” privada, a ser respeitada, sem ter em conta o que a escolha implicava. Mas Aristóteles lembra-nos que uma decisão tomada em ignorância não é um acto voluntário. Esclarecer uma mulher sobre a realidade da cirurgia a que se vai submeter não foi considerado inconsistente com a “liberdade de escolha” e a lei do Kentucky continua a deixar essa decisão nas mãos da mulher.

Mas agora dizem-nos que essa prova, quase palpável, da natureza do ser no útero foi “extraordinariamente perturbadora” para uma mulher e que outras foram reduzidas a choro e pranto.  

Claro que se um homem mata injustificadamente outra pessoa, isto é, assassina-a, o facto de isso o deixar incomodado em nada afeta a natureza desordenada do assassinato. Esta noção de mal causado a qualquer pessoa a quem é negado um aborto depende, evidentemente, de uma total dissociação do aborto do raciocínio moral que entra em jogo noutras áreas da vida.

A Planned Parenthood argumentou que a lei obrigava a um “discurso ideológico”, porque obrigava a explicar que “o aborto acabará com a vida de um ser humano vivo, único, separado e inteiro”.

Mas claro que é exatamente disso que se trata. Se o organismo não estivesse vivo e a crescer, então o aborto teria tanta relevância como uma amigdalectomia. Estando vivo, não pode ser outra coisa que não um ser humano e, como nos dizem os manuais de embriologia, nunca foi verdadeiramente uma parte do corpo da mulher.

Ainda assim, o discurso tem sido de que a legislatura está a impor uma “ideologia anti-aborto”. A legislatura ordena que seja mostrado aquilo que é objetivamente verdade e essa verdade objetiva é depois descartada como sendo mera “ideologia”.

A única coisa que mantém o estatuto de verdade incontestável é, aparentemente, o direito a matar um ser humano inocente no ventre, por qualquer razão, ou por nenhuma. Paz é guerra, guerra é paz.

A decisão do tribunal inferior foi escrita por John Bush, um advogado com um currículo bem sucedido e uma das nomeações mais distintas do Presidente Trump. O juiz Bush conseguiu mostrar, com base em precedentes sobre o consentimento informado, incluindo decisões escritas pelo juiz Kennedy, que o Supremo Tribunal reconheceu de forma implícita que o “desconforto do paciente devido à revelação obrigatória de informação correcta e relevante não invalida uma lei de consentimento informado”. Saber que o propósito da lei é encorajar o nascimento em vez do aborto também não afecta a validade da lei.

E, no entanto, a juíza Bernice Donald, na decisão minoritária, achou importante argumentar que estes requisitos “ideológicos” não têm “qualquer base médica”. Não são relevantes para a mecânica da cirurgia e negam ao profissional o direito a exercer “o discernimento médico de decidir se o procedimento é apropriado ou ético”.

O argumento dela parte do princípio que as preocupações morais da legislatura constituem uma interferência despropositada com o juízo médico. Mas os juízos morais que dizem respeito à prática da medicina não são “juízos médicos”.

Num famoso caso em Long Island, com uma criança que nasceu com espinha bífica e com trissomia 21, a Administração Reagan disse que não teria qualquer objeção se uma cirurgia correctiva fosse fútil, mas que se a decisão de recusar cuidados médicos fosse tomada com base na ideia de que uma vida afectada por espinha bífida e trissomia 21 não era uma vida que valesse a pena viver, então isso já não seria uma avaliação médica, mas sim moral.

Houve um momento notável no julgamento de Adolf Eichmann em que o seu advogado, Robert Serviatus, se referiu às matanças nos campos de concentração como “matanças por gaseamento e assuntos médicos similares”. Questionado sobre uma afirmação tão bizarra, respondeu que estes assuntos eram “médicos” na medida em que eram “preparados por médicos… e matar é, também, um assunto médico”.
  
Por outras palavras, o acto de matar podia ser isolado da avaliação moral se fosse levado a cabo por médicos. A juíza Donald não parece ter mais noção que outros juízes progressistas de que já vimos estes argumentos antes e tal como eles não se lembra do mundo moral em que esses argumentos causavam embaraço entre os pensantes.


1984 já passou há muito, mas nem reparámos que já lá tínhamos chegado.

Hadley Arkes é Professor de Jurisprudência em Amherst College e director do Claremont Center for the Jurisprudence of Natural Law, em Washington D.C. O seu mais recente livro é Constitutional Illusions & Anchoring Truths: The Touchstone of the Natural Law.

(Publicado pela primeira vez na Terça-feira, 18 de Dezembro de 2019 em The Catholic Thing)

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