Há muitos argumentos fortes, tanto a favor como contra,
sobre a existência de Deus. Mas um dos desafios maiores à ideia de um Deus
benigno e que nos ama, segundo o modelo Bíblico (os deuses sanguinários e
caprichosos dos pagãos são uma coisa à parte), é o sofrimento dos inocentes. Um
ateu britânico contemporâneo comentou que se lhe perguntassem porque é que Deus
não existe, responderia simplesmente: “Crianças com cancro dos ossos”.
Austin Ruse, um dos fundadores do The Catholic Thing e
antigo colunista, aceitou este desafio e a resposta é um livro conciso mas
importante, chamado “The Littlest Suffering Souls: Children Whose Short Lives Point Us to Christ”
[As Pequenas Almas Sofredoras: Crianças cujas curtas vidas nos apontam para
Cristo]. Ele argumenta que o Cristianismo é único entre as diferentes religiões
e filosofias, porque encontra sentido no sofrimento. O estoicismo, e a maior
parte das outras fés, simplesmente assumem que o sofrimento é um facto da
natureza e oferecem técnicas para o suportar.
Mas este livro não é um argumento abstracto. Ruse trata
com detalhe de alguns casos concretos: A Margaret Leo e o Brendan Kelly (ambos
da zona de Washington D.C.) e a “Audrey”, uma pequena rapariga que viveu e
morreu perto de Paris e cujo apelido não foi divulgado, a pedido dos pais.
O Austin é um amigo e colaborador de longa data (estas
histórias começaram como crónicas do The Catholic Thing e provocaram centenas
de reacções de todo o mundo). Mas posso dizer que o resultado é quase
milagroso. Quem diria que estas crianças santas e sofredoras poderiam ser prova
viva, para aqueles que as conheciam ou que simplesmente ouviram falar delas, da
existência de um Deus que nos ama?
É quase impossível escrever bem sobre a dimensão
espiritual de crianças que enfrentam situações de saúde dramáticas. O resultado
costuma ser beato, no mau sentido, e por isso falsamente sentimental. A grande
e irredutível Flannery O’Conner vacilou, por essa razão, quando as dominicanas
de Hawthorne lhe pediram para escrever uma introdução às Memórias de Mary Ann,
um relato de outra pequena sofredora da década de 60.
O prefácio deste volume é escrito pelo Cardeal Burke, que
o recomenda, citando João Paulo II sobre a unicidade do Cristianismo que ensina
que os nossos sofrimentos – até os das almas mais novas – participam no sofrimento
redentor de Jesus.
Neste livro Ruse capta esta ideia melhor do que qualquer
outro autor que eu conheço, preservando os sentimentos adequados (e não o
sentimentalismo) mas também transmitindo o humor ocasional, bem como a
inspiração final destas vidas, sem recurso a palavras falsas. (E já que estamos
numa de elogios, parabéns à TAN Books por ter produzido um volume tão simples e
bonito).
A verdade é que mesmo os pais e as famílias podem chegar
a odiar Deus quando confrontados com provas destas – e frequentemente são as
crianças sofredoras que as ajudam.
Duas das crianças que aparecem no livro têm pais
importantes. Leonard Leo é vice-presidente executivo da Sociedade Federalista,
um grupo de advogados que aconselhou o Presidente Trump sobre a recente
nomeação para o Supremo Tribunal e Frank Kelly chefia o departamento de
assuntos governamentais globais da Deutsche Bank. Ambos estiveram esta semana
no Centro de Informação Católica em D.C. para a apresentação do livro, homens
altamente qualificados mas – via-se – sem palavras quando questionados sobre os
seus filhos. Daí o valor adicional deste livro.
Brendan Kelly, com o Papa João Paulo II |
Brendan Kelly nasceu com trissomia 21 e aos dois anos foi diagnosticado com
leucemia. Só morreu aos 16 anos depois de uma série de dramas médicos, pontuados
por muito amor e eventos incríveis – incluindo inexplicáveis e milagrosos – que
tocaram uma enorme quantidade de pessoas, incluindo um episódio com São João
Paulo II em Castel Gandolfo que o fará rir-se desalmadamente. Duas mil pessoas foram
ao seu enterro.
Margaret Leo tinha uma forma de espinha bífida tão severa que costuma ser fatal, não
obstante os avanços médicos. A maioria das crianças que são diagnosticadas com
esta condição através da amniocentese são abortadas porque a sua “qualidade de
vida” vai ser tão baixa. A Margaret passou a vida toda numa cadeira de rodas
por causa de distorções tão severas na sua coluna que quando inseriram barras
de titânio para manter as costas direitas, as barras entortaram. Mas esta
criança minúscula nunca se queixou nem parecia sentir medo. Tinha uma fé
simples e um dom para a amizade, apesar de muitas pessoas se sentirem
incomodadas por deficientes em cadeiras de rodas. Ela acabou por morrer, de
forma quase inesperadas, mas a sua morte foi seguida de acontecimentos
miraculosos.
A Audrey morreu depois de sete anos a lutar contra uma leucemia. A sua
família francesa era nominalmente católica e não a instruiu na fé, mas aos três
anos começou ela a instruí-los a eles. Vendo um crucifixo num confessionário,
comentou: “Só de olhar para Ele, amamo-Lo”. Instintivamente adoptou a
mortificação, abdicando de comer doces; fazendo actos de penitência sem que
alguém lhe tivesse explicado o sentido; insistindo na oração antes das refeições
– o que não se fazia em casa. Parecia conhecer passagens do Evangelho sem as
ter aprendido e vivia perpetuamente – pelo menos era isso que as pessoas
sentiam – na presença de Deus.
Estes são apenas alguns detalhes das histórias de três
crianças santas que têm muito para nos ensinar, o resto das histórias segue
muito a mesma linha. Mas o facto de terem nascido em famílias importantes
também tem significado, como explica Ruse. À medida que ele explica as suas
várias ligações familiares, comenta que: “Tenho noção que estou a citar nomes,
mas é de propósito e espero que me desculpem, pois faço-o para sublinhar um
aspecto particular destas ‘pequenas almas sofredoras’… Estes não eram filhos de
camponeses a tratar dos rebanhos. Nasceram em famílias influentes, famílias que
habitavam um certo meio: os corredores de poder de Washington, D.C. Resumindo,
nasceram numa espécie de deserto espiritual, um ambiente em que as coisas do
mundo facilmente prevalecem sobre as coisas de Deus e tinham – e ainda têm –
coisas a ensinar aos habitantes desse deserto em particular.”
Ultimamente temos debatido a Opção Beneditina, a Opção
Dominicana e muitas outras “opções” do género na nossa Igreja e no nosso país
atribulados. Todas essas opções têm algo que se lhes diga, mas na minha
opinião, e não só em Washington, a opção das almas sofredoras ganha aos pontos.
Leia também:
Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 27 de Abril de
2017)
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Olá, Filipe
ReplyDelete“Deus benigno e que nos ama, segundo o modelo Bíblico (os deuses sanguinários e caprichosos dos pagãos são uma coisa à parte)”
O termo “pagão” é de pura propaganda, e surgiu aliás como técnica de propagar a fé da “cidade” para os “campos”. Um termo negativo (pagão = não-cristão) nunca pode ter determinações positivas pois só indica aquilo que a coisa não é; qualquer zoroastrista, taoista, epicurista, estóico, hindu e até o Iggy Pop (que cabe evidentemente sob o género “pagão”) não se devota bem a um deus sanguinário e caprichoso (ou pelo menos, não mais que qualquer um de nós nesta vida sanguinária e aleatória – seja o que fôr que façamos, o último acto é sangrento, dizia o Pascal, um rapaz não-pagão…) A saída da violência do sagrado e da sacrificialidade sanguinária não é um exclusivo do cristianismo; parece até mais uma espécie de tarefa ética clamada de Abraão a Confúcio…
“Instintivamente adoptou a mortificação, abdicando de comer doces; fazendo actos de penitência sem que alguém lhe tivesse explicado o sentido”
Veja lá se o deus “sanguinário e caprichoso” não passeia mais por aqui o ar da sua graça, numa curiosa negociação entre sofrimento e salvação (e que não me parece um treino, uma ascese, como no estoicismo). A introjecção da violência não é bem a sua superação…
Há também uma relação congénita com a sacrificialidade sanguinária na interpretação da crucificação como “pagamento pelos nossos pecados”.
E já que estamos em Maio: em Fátima passeiam-se deuses sanguinários e caprichosos, para dizê-lo sem pejo. Claro que também se “passeiam” outros sentidos religiosos – é apenas a pretensão católica deste texto em pôr-se totalmente de fora da violência religiosa e sacrificial que é muito problemática.
O problema da propaganda sempre foi o solipsismo e a fundamentação falseada que só funciona para dentro. Infelizmente, o olhar que se desvia dos outros também se desvia dos espelhos, e é natural que acabe por imaginar o seu rosto numa espécie de perfeição celestial mais ou menos alienada da sua própria realidade.
Nem toda a gente é o René Girard. Este texto, do ponto de vista analítico e histórico, é do pior que tenho lido ultimamente, e por isso mesmo me interpelou.
Vai me dizer que é um texto de um católico para católicos. Certo. Eu estava apenas nas redondezas e comentei ;)
Cumprimentos
alexandre