João Paulo II |
“E a partir daquele momento, o discípulo recebeu-A em sua
casa” (Io. 19, 27)
Com estas palavras termina o Evangelho da Liturgia de
hoje, aqui em Fátima. O nome do discípulo era João. Precisamente ele, João,
filho de Zebedeu, apóstolo e evangelista, ouviu do alto da Cruz as palavras de
Cristo: “Eis a tua Mãe”. Anteriormente, Jesus tinha dito à própria Mãe:
“Senhora, eis o Teu filho”. Este foi um testamento maravilhoso.
Ao deixar este mundo, Cristo deu a Sua Mãe um homem que
fosse para Ela como um filho: João. A Ela o confiou. E, em consequência desta
doação e deste acto de entrega, Maria tornou-se mãe de João. A Mãe de Deus tornou-se
Mãe do homem… Em João, todos e cada um dos homens d’Ela se tornaram
filhos.
Uma manifestação particular da maternidade de Maria em
relação aos homens são os lugares, em que Ela se encontra com eles; as casas
onde Ela habita; casas onde se sente uma presença toda particular da Mãe.
Estes lugares e estas casas são numerosíssimos. E são de
uma grande variedade: desde os oratórios nas habitações e dos nichos ao longo
das estradas, onde sobressai luminosa a imagem da Santa Mãe de Deus, até às
capelas e às igrejas construídas em Sua honra. Há porém, alguns lugares, nos
quais os homens sentem particularmente viva a presença da Mãe. Não raro, estes
locais irradiam amplamente a sua luz e atraem a si a gente de longe. O seu
círculo de irradiação pode estender-se ao âmbito de uma diocese, a uma nação inteira,
por vezes a vários países e até aos diversos continentes.
Em todos estes lugares realiza-se de maneira admirável
aquele testamento singular do Senhor Crucificado: aí, o homem sente-se entregue
e confiado a Maria e vem para estar com Ela, como se está com a própria Mãe.
Abre-Lhe o seu coração e fala-Lhe de tudo: “recebe-A em sua casa”, dentro de
todos os seus problemas, por vezes difíceis. Problemas próprios e de outrem.
Problemas das famílias, das sociedades, das nações, da humanidade inteira.
Não sucede assim, porventura, no santuário de Lourdes
na França? Não é igualmente assim, em Jasna Góra em terras polacas, no
santuário do meu País, que este ano celebra o seu jubileu dos seiscentos anos?
Parece que também lá, como em tantos outros santuários marianos
espalhados pelo mundo, com uma força de autenticidade particular, ressoam estas
palavras da Liturgia do dia de hoje: “Tu és a honra do nosso povo” (Iudit.
15,10).
Estas palavras ressoam aqui em Fátima quase como eco
particular das experiências vividas não só pela Nação portuguesa, mas
também por tantas outras nações e povos que se encontram sobre a face da terra;
ou melhor, elas são o eco das experiências de toda a humanidade
contemporânea, de toda a família humana.
Venho hoje aqui, porque exactamente neste mesmo dia do
mês, no ano passado, se dava, na Praça de São Pedro, em Roma, o atentado à vida
do Papa, que misteriosamente coincidia com o aniversário da primeira aparição
em Fátima, a qual se verificou a 13 de Maio de 1917.
Estas datas encontraram-se entre si de tal maneira, que
me pareceu reconhecer nisso um chamamento especial para vir aqui. E eis que
hoje aqui estou. Vim para agradecer à Divina Providência, neste lugar, que a
Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular. “Misericordiae Domini,
quia non sumus consumpti” – Foi graças ao Senhor que não fomos aniquilados
(Lam. 3, 22).
Se a Igreja aceitou a mensagem de Fátima, é sobretudo
porque esta mensagem contém uma verdade e um chamamento que, no seu
conteúdo fundamental, são a verdade e o chamamento do próprio Evangelho.
“Convertei-vos (fazei penitência), e acreditai na Boa
Nova (Mc. 1, 15): são estas as primeiras palavras do Messias dirigidas à
humanidade. E a mensagem de Fátima, no seu núcleo fundamental, é o chamamento à
conversão e à penitência, como no Evangelho. Este chamamento foi feito nos
inícios do século vinte e, portanto, foi dirigido, de um modo particular a este
mesmo século. A Senhora da mensagem parecia ler, com uma perspicácia
especial, os “sinais dos tempos”, os sinais do nosso tempo.
O apelo à penitência é um apelo maternal; e, ao mesmo
tempo, é enérgico e feito com decisão. A caridade que “se congratula com a
verdade”(1Cor 13, 6) sabe ser clara e firme. O chamamento à penitência, como
sempre anda unido ao chamamento à oração. Em conformidade com a tradição
de muitos séculos, a Senhora da mensagem de Fátima indica o terço que
bem se pode definir “a oração de Maria”: a oração na qual Ela se sente
particularmente unida connosco. Ela própria reza connosco. Com esta oração
do terço se abrangem os problemas da Igreja, da Sé de Pedro, os problemas
do mundo inteiro. Além disto, recordam-se os pecadores, para que se convertam e
se salvem, e as almas do Purgatório.
À luz do amor materno, nós compreendemos toda a mensagem
de Nossa Senhora de Fátima. Aquilo que se opõe mais directamente à caminhada do
homem em direcção a Deus é o pecado, o perseverar no pecado, enfim, a negação
de Deus. O programado cancelamento de Deus do mundo do pensamento humano. A
separação d’Ele de toda a actividade terrena do homem. A rejeição de Deus por
parte do homem.
Na verdade, a salvação eterna do homem somente em Deus se
encontra. A rejeição de Deus por parte do homem se se tornar definitiva,
logicamente conduz à rejeição do homem por parte de Deus (Cfr. Matth. 7, 23;
10, 33), à condenação.
Poderá a Mãe, que deseja a salvação de todos os homens,
com toda a força do seu amor que alimenta no Espírito Santo, poderá Ela ficar
calada acerca daquilo que mina as próprias bases desta salvação? Não, não pode!
Por isso, a mensagem de Nossa Senhora de Fátima, tão
maternal, se apresenta ao mesmo tempo tão forte e decidida. Até parece severa.
É como se falasse João Baptista nas margens do rio Jordão. Exorta à penitencia.
Adverte. Chama à oração. Recomenda o terço, o rosário.
E objecto do Seu desvelo são todos os homens da nossa
época e, ao mesmo tempo, as sociedades, as nações e os povos. As sociedades
ameaçadas pela apostasia, ameaçadas pela degradação moral. A derrocada da
moralidade traz consigo a derrocada das sociedades.
Consagrar o mundo ao Coração Imaculado de Maria significa
aproximar-nos, mediante a intercessão da Mãe, da própria Fonte da Vida, nascida
no Gólgota. Este Manancial escorre ininterruptamente, dele brotando a redenção
e a graça. Nele se realiza continuamente a reparação pelos pecados do mundo.
Tal Manancial é sem cessar Fonte de vida nova e de santidade.
Consagrar o mundo ao Imaculado Coração da Mãe significa
voltar de novo junto da Cruz do Filho. Mais quer dizer, ainda: consagrar este
mundo ao Coração trespassado do Salvador, reconduzindo-o à própria fonte da
Redenção. A Redenção é sempre maior do que o pecado do homem e do que “o pecado
do mundo”. A força da Redenção supera infinitamente toda a espécie de mal, que
está no homem e no mundo.
O Coração da Mãe está conscio disso, como nenhum outro
coração em todo o cosmos, visível e invisível.
E para isso faz a chamada. Chama não somente à conversão.
Chama-nos a que nos deixemos auxiliar por Ela, como Mãe, para voltarmos
novamente à fonte da Redenção.
O mundo e o homem foram consagrados com a potência da
Redenção. Foram confiados Àquele que é infinitamente Santo. Foram
oferecidos e entregues ao próprio Amor, ao Amor misericordioso.
A Mãe de Cristo chama-nos e exorta-nos a unir-nos à
Igreja do Deus vivo, nesta consagração do mundo, neste acto de entrega mediante
o qual o mesmo mundo, a humanidade, as nações e todos e cada um dos homens são
oferecidos ao Eterno Pai, envoltos com a virtude da Redenção de Cristo. São
oferecidos no Coração do Redentor trespassado na Cruz.
João Paulo II baleado por Ali Agca em 1981 |
Deste modo, foi ainda mais aprofundada a compreensão
do sentido da entrega, que a Igreja é chamada a fazer, recorrendo ao
auxílio do Coração da Mãe de Cristo e nossa Mãe.
Hoje João Paulo II, sucessor de Pedro apresenta-se com
ansiedade, a fazer a releitura, daquele chamamento materno à penitência e à
conversão, daquele apelo ardente do Coração de Maria, que se fez ouvir aqui em
Fátima, há sessenta e cinco anos. Sim, relê-o, com o coração amargurado,
porque vê quantos homens, quantas sociedades e quantos cristãos foram indo em direcção
oposta àquela que foi indicada pela mensagem de Fátima. O pecado adquiriu
assim um forte direito de cidadania e a negação de Deus difundiu-se nas
ideologias, nas concepções e nos programas humanos!
E precisamente por isso, o convite evangélico à
penitência e à conversão, expresso com as palavras da Mãe, continua ainda
actual. Mais actual mesmo do que há sessenta e cinco anos atrás. E até mais
urgente.
Assim, se por um lado o coração se confrange, pelo
sentido elo pecado do mundo, bem como pela série de ameaças que aumentam no
mundo, por outro lado, o mesmo coração humano sente-se dilatar com a
esperança, ao pôr em prática uma vez mais aquilo que os meus Predecessores
já fizeram: entregar e confiar o mundo ao Coração da Mãe, confiar-Lhe
especialmente aqueles povos, que, de modo particular, tenham necessidade disso.
Escreve o Autor do Apocalipse: “Vi depois a cidade santa,
a nova Jerusalém, que descia do Céu, da presença de Deus, pronta como noiva
adornada para o seu esposo. E, do trono, ouvi uma voz potente que dizia: Eis a
morada de Deus entre os homens. Deus há-de morar entre eles: eles mesmos serão
o Seu povo e Ele próprio – Deus-com-eles – será o Seu Deus” (Apoc. 21, 2ss).
A Igreja vive desta fé. Com tal fé caminha o Povo de
Deus.
O Povo de Deus é peregrino pelos caminhos deste mundo na
direcção escatológica. Está em peregrinação para a eterna Jerusalém, para a
“morada de Deus entre os homens”. Lá, onde Deus “há-de enxugar-lhes dos
olhos todas as lágrimas; a morte deixará de existir, e não mais haverá
luto, nem clamor, nem fadiga. O que havia anteriormente desapareceu” (Cfr.
Apoc. 21, 4).
Mas “o que havia anteriormente” ainda perdura. E é
isso precisamente que constitui o espaço temporal da nossa peregrinação. Não
podemos ignorá-lo. Isso permite-nos, no entanto reconhecer que graça
imensa foi concedida ao homem quando no meio deste peregrinar, no horizonte da
fé dos nossos tempos, se acendeu esse “Sinal grandioso: uma Mulher”!
Sim, verdadeiramente podemos repetir: “Abençoada sejas,
filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres sobre a Terra!...
Procedendo com rectidão, na presença do nosso Deus... Aliviaste o nosso
abatimento”.
Verdadeiramente, Bendita sois Vós! Sim, aqui e em toda a
Igreja, no coração de cada um dos homens e no mundo inteiro: sede bendita ó
Maria, nossa Mãe dulcíssima!
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(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 13 de Maio de 2017)
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