David Walsh |
Numa altura em que “Black Lives Matter” [Vidas Negras
Contam] se tornou um slogan tremendamente eficaz, não deixa de ser irónico que
em Washington D.C., uma cidade com uma grande proporção de afro-americanos, a
Câmara esteja a pensar em legalizar o suicídio medicamente assistido.
A contradição tornou-se palpável numa reportagem franca,
publicada pelo “Washington Post” recentemente, com as reacções dos cidadãos que
tendiam a ver a medida como direccionada a “idosos negros”. Num claro contraste
com o tom positivo do editorial do mesmo jornal sobre o assunto, os residentes
não hesitaram em manifestar as suas desconfianças. Intuitivamente, eles sabem
que a opção do suicídio assistido, quando colocada, dificilmente se manteria
dentro dos limites da liberdade de escolha.
A pressão, por vezes subtil, por vezes nem tanto, será
inevitável. Não há seguranças legais que removam a suspeição de que a opção do
suicídio se torne uma forma de remover os membros mais fracos e marginais da
comunidade.
Tal como acontece com grande parte destas iniciativas
paternalistas, não é preciso atribuir um propósito nefasto a quem defende esta
medida. O mal pode ser feito sem que isso seja intenção de ninguém. Isso é
particularmente verdade quando a intenção é o alívio, por compaixão, do sofrimento
dos doentes terminais.
O perigo do suicídio medicamente induzido não se encontra
na possibilidade de ser mal utilizado nem na forma como ameaça a relação entre
médico e doente, mas sim no próprio conceito. Mesmo sem que ninguém tenha sido
eutanasiado, o Estado, ou neste caso o Distrito, já declarou que há vidas que
não contam.
Quando o sofrimento ou o fardo se tornam suficientes,
estas pessoas e os seus médicos têm luz verde para se eliminarem. Os
profissionais de medicina que estão na linha da frente deste encontro têm bem
presente o abismo que se abre nesta situação.
Mas o mesmo se aplica a todos nós, familiares, amigos e
concidadãos. Podemos nós julgar, como temos de fazer no caso de aceitar o seu
pedido, que a vida do paciente já não vale a pena ser vivida?
É particularmente quando pensamos que estamos a agir com
os mais nobres motivos que esses motivos devem ser alvo de maior escrutínio.
Quando ajudamos alguém a matar-se, essa ajuda esconde uma reverência diminuída
pelo doente? Não falo aqui do perigo de um caminho que leva inevitavelmente à
expansão do suicídio assistido dos doentes terminais para os meramente doentes,
digo apenas que essa desvalorização já aconteceu no preciso momento em que
temos a presunção de julgar o valor de uma vida.
Mesmo que o doente terminal esteja disposto a encarar a
sua vida como indigna de ser vivida, nós não podemos simplesmente aceitar esse
desânimo como definitivo. A nossa responsabilidade é afirmar que, mesmo nos
seus últimos dias, essa vida tornou-se para nós ainda mais preciosa.
A morte não é o fim da vida, mas sim o momento em que ela
existe com maior profundidade. Toda uma vida pode ser dada a conhecer no
apertar de uma mão. Mesmo na morte, estamos ligados. É por isso que não podemos
simplesmente aceitar a morte como sendo o fim da pessoa, porque os mortos já
nos falaram de além da fronteira que nos separa.
Só quando seguimos a lógica da eutanásia é que começamos
a ver a fonte das confusões em que nos deixámos apanhar. Pensando agir com
compaixão, ajudamos a executar a pessoa, aniquilando precisamente aquele que
tencionávamos servir.
O suicídio nunca pode ser um meio de tratamento médico,
uma vez que todo o tratamento pressupõe a existência de um doente a quem se
serve. A prática da medicina sofre uma bizarra distorção se passar a incluir a
eliminação dos seus pacientes.
De igual forma, a comunidade política tem como obrigação
primária guardar a vida, liberdade e felicidade dos seus constituintes. Não
pode simplesmente declarar que eles serão mais bem servidos pondo fim às suas
vidas.
É por isso que não se pode instalar na nossa constituição
um “direito à morte”. O cuidado pelos mortos não pode incluir a imposição
deliberada da morte. Quando a Santa Teresa de Calcutá saía às ruas daquela
cidade para trazer consigo os moribundos, nunca tinha por objectivo acelerar a
sua morte. Pelo contrário, era para esbanjar neles a maior quantidade de amor
possível nas horas e nos dias finais das suas vidas.
Não podemos dizer às pessoas que elas têm um valor inesgotável
e depois, enquanto as ajudamos a morrer, dizer-lhes que o seu valor se esgotou.
Tal como a compaixão não pode incluir a abolição do
outro, a liberdade não pode incluir a eliminação da vida em que assenta. Não
nos podemos vender para a escravidão, porque isso é literalmente impossível. Da
mesma forma, não podemos encarar a destruição da nossa liberdade como um
exercício legítimo da mesma liberdade.
Ao concluir que um certo tipo de vida já não conta,
lançamos uma sombra sobre toda a vida humana. A partir deste momento todas as
vidas se tornaram susceptíveis de serem avaliadas e por isso sujeitas àquela
negociação da qual são sempre os mais fortes que saem vitoriosos.
O perigo de admitir o suicídio medicamente assistido não
está só no facto de que alguns indivíduos possam ser despachados antes de
tempo, mas no facto de deslocarmos a primazia do direito à vida em todo o nosso
entendimento político.
Se a vida deixar de ser absoluta, então nenhum dos nossos
direitos são invioláveis. Em vez de ver cada vida humana como sendo de valor
inestimável, atribuímos a todas elas um preço.
David Walsh é professor de política na Catholic
University of America e autor de muitos livros, entre os quais “Politics of the Person as the Politics of Being”.
(Publicado pela primeira vez no Sábado, 5 de Novembro de
2016 em The Catholic Thing)
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