Wednesday 9 November 2016

Eutanásia: Vidas Que Não Contam

David Walsh
Numa altura em que “Black Lives Matter” [Vidas Negras Contam] se tornou um slogan tremendamente eficaz, não deixa de ser irónico que em Washington D.C., uma cidade com uma grande proporção de afro-americanos, a Câmara esteja a pensar em legalizar o suicídio medicamente assistido.

A contradição tornou-se palpável numa reportagem franca, publicada pelo “Washington Post” recentemente, com as reacções dos cidadãos que tendiam a ver a medida como direccionada a “idosos negros”. Num claro contraste com o tom positivo do editorial do mesmo jornal sobre o assunto, os residentes não hesitaram em manifestar as suas desconfianças. Intuitivamente, eles sabem que a opção do suicídio assistido, quando colocada, dificilmente se manteria dentro dos limites da liberdade de escolha.

A pressão, por vezes subtil, por vezes nem tanto, será inevitável. Não há seguranças legais que removam a suspeição de que a opção do suicídio se torne uma forma de remover os membros mais fracos e marginais da comunidade.

Tal como acontece com grande parte destas iniciativas paternalistas, não é preciso atribuir um propósito nefasto a quem defende esta medida. O mal pode ser feito sem que isso seja intenção de ninguém. Isso é particularmente verdade quando a intenção é o alívio, por compaixão, do sofrimento dos doentes terminais.

O perigo do suicídio medicamente induzido não se encontra na possibilidade de ser mal utilizado nem na forma como ameaça a relação entre médico e doente, mas sim no próprio conceito. Mesmo sem que ninguém tenha sido eutanasiado, o Estado, ou neste caso o Distrito, já declarou que há vidas que não contam.

Quando o sofrimento ou o fardo se tornam suficientes, estas pessoas e os seus médicos têm luz verde para se eliminarem. Os profissionais de medicina que estão na linha da frente deste encontro têm bem presente o abismo que se abre nesta situação.

Mas o mesmo se aplica a todos nós, familiares, amigos e concidadãos. Podemos nós julgar, como temos de fazer no caso de aceitar o seu pedido, que a vida do paciente já não vale a pena ser vivida?

É particularmente quando pensamos que estamos a agir com os mais nobres motivos que esses motivos devem ser alvo de maior escrutínio. Quando ajudamos alguém a matar-se, essa ajuda esconde uma reverência diminuída pelo doente? Não falo aqui do perigo de um caminho que leva inevitavelmente à expansão do suicídio assistido dos doentes terminais para os meramente doentes, digo apenas que essa desvalorização já aconteceu no preciso momento em que temos a presunção de julgar o valor de uma vida.

Mesmo que o doente terminal esteja disposto a encarar a sua vida como indigna de ser vivida, nós não podemos simplesmente aceitar esse desânimo como definitivo. A nossa responsabilidade é afirmar que, mesmo nos seus últimos dias, essa vida tornou-se para nós ainda mais preciosa.

A morte não é o fim da vida, mas sim o momento em que ela existe com maior profundidade. Toda uma vida pode ser dada a conhecer no apertar de uma mão. Mesmo na morte, estamos ligados. É por isso que não podemos simplesmente aceitar a morte como sendo o fim da pessoa, porque os mortos já nos falaram de além da fronteira que nos separa.

Só quando seguimos a lógica da eutanásia é que começamos a ver a fonte das confusões em que nos deixámos apanhar. Pensando agir com compaixão, ajudamos a executar a pessoa, aniquilando precisamente aquele que tencionávamos servir.

O suicídio nunca pode ser um meio de tratamento médico, uma vez que todo o tratamento pressupõe a existência de um doente a quem se serve. A prática da medicina sofre uma bizarra distorção se passar a incluir a eliminação dos seus pacientes.

De igual forma, a comunidade política tem como obrigação primária guardar a vida, liberdade e felicidade dos seus constituintes. Não pode simplesmente declarar que eles serão mais bem servidos pondo fim às suas vidas.

É por isso que não se pode instalar na nossa constituição um “direito à morte”. O cuidado pelos mortos não pode incluir a imposição deliberada da morte. Quando a Santa Teresa de Calcutá saía às ruas daquela cidade para trazer consigo os moribundos, nunca tinha por objectivo acelerar a sua morte. Pelo contrário, era para esbanjar neles a maior quantidade de amor possível nas horas e nos dias finais das suas vidas. 

Não podemos dizer às pessoas que elas têm um valor inesgotável e depois, enquanto as ajudamos a morrer, dizer-lhes que o seu valor se esgotou.

Tal como a compaixão não pode incluir a abolição do outro, a liberdade não pode incluir a eliminação da vida em que assenta. Não nos podemos vender para a escravidão, porque isso é literalmente impossível. Da mesma forma, não podemos encarar a destruição da nossa liberdade como um exercício legítimo da mesma liberdade.

Ao concluir que um certo tipo de vida já não conta, lançamos uma sombra sobre toda a vida humana. A partir deste momento todas as vidas se tornaram susceptíveis de serem avaliadas e por isso sujeitas àquela negociação da qual são sempre os mais fortes que saem vitoriosos.

O perigo de admitir o suicídio medicamente assistido não está só no facto de que alguns indivíduos possam ser despachados antes de tempo, mas no facto de deslocarmos a primazia do direito à vida em todo o nosso entendimento político.

Se a vida deixar de ser absoluta, então nenhum dos nossos direitos são invioláveis. Em vez de ver cada vida humana como sendo de valor inestimável, atribuímos a todas elas um preço.


David Walsh é professor de política na Catholic University of America e autor de muitos livros, entre os quais “Politics of the Person as the Politics of Being”.
(Publicado pela primeira vez no Sábado, 5 de Novembro de 2016 em The Catholic Thing)

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